Tradução e liberdade criativa

Tradução e liberdade criativa

Salão do Livro de Paris, 2015

 

Agradeço por me terem convidado pela segunda vez ao Salão do Livro de Paris. Em 1998, o Brasil era, como agora, o país homenageado no Salão, e eu estava na delegação brasileira. Lá se vão 17 anos. Como o tema desta mesa-redonda é também a história, reli o texto que escrevi na época, se chamava “Antes amefricanos que latino-americanos”.

Explico o porquê desse título. Eu insistia na ideia de que nós, brasileiros, somos amefricanos para destacar o valor da contribuição da África para a nossa língua, que se distanciou mais e mais da matriz portuguesa e se tornou tão musical que é exportada para o mundo inteiro por meio da música. É uma língua cantante e calorosa, graças à substância amorosa dos negros. Nós não vivemos sem o diminutivo. Assim, por exemplo, o café será servido com a expressão: “Aceita um cafezinho?”. Desnecessário dizer que um cafezinho nada tem a ver com um simples café.

Podemos dizer, sem risco de errar, que existe um português do Brasil e uma língua literária feita da contribuição de todos os nossos erros e equívocos e que privilegia o ritmo. No outro Salão, eu já dizia que traduzir português do Brasil é o grande desafio para que nossa literatura seja difundida, e eu poderia dizer exatamente a mesma coisa hoje.

 

A importãncia do tradutor literário

A literatura que se funda no trabalho do escritor sobre a palavra depende do tradutor; este transmissor é que permite ao escritor desenvolver sua arte em vez de submeter seu trabalho aos imperativos da comunicação de mercado. É o tradutor que permite que o escritor ouse a originalidade sem a qual não existe arte.

A valorização do tradutor não tem absolutamente nada a ver com nacionalismo literário. Como dizia Octavio Paz, o nacionalismo literário é menos nocivo que o realismo socialista, mas é igualmente estéril. Meu argumento diz respeito ao desejo de escrever livremente no português do Brasil e de, mesmo assim, pertencer à pátria sem fronteiras da literatura.

 

A violência contra a literatura

Existe uma violência que é exercida contra a literatura brasileira pelas exigências do mercado. Ela nos obriga a nos afastar dos temas e dos modos de fazer que nos distinguem. Quando cheguei na França, um grande escritor francês, que era também editor, me disse para não escrever sobre o Brasil, porque eu não seria lida. Dito de outro modo, o Brasil não era um bom tema. Na época, esse conselho me revoltou. Eu tinha acabado de escrever O Papagaio e o Doutor, que foi traduzido como Le Perroquet et le Docteur. É um romance inspirado em minha análise com Lacan, na qual eu fazia a sátira dos latino-americanos que não conseguiam encontrar seu rumo sem imitar a Europa.

Escrevi este romance porque aprendi com meus ancestrais imigrantes que a única via que vale a pena é a que nós inventamos e que, por isso, pagamos um preço pessoal. É preciso correr um risco semelhante ao dos jornalistas, que não renunciam em hipótese nenhuma à liberdade de expressão.

O Brasil de hoje precisa muito desses homens corajosos para ultrapassar a corrupção que instaurou em nosso país uma nova ditadura. A ditadura que compromete a segurança, a educação, a saúde… Felizmente, nós temos excelentes jornalistas e eles desempenham um papel essencial em nossa democracia.

 

O lugar dos escritores no Brasil

No que diz respeito aos escritores, especificamente, o lugar deles no Brasil não é muito importante. O imaginário dos escritores conta pouco, a menos que eles escrevam folhetins televisionados, a telenovela. Eis a razão pela qual, quando se trata de obras literárias, a publicação no exterior se tornou fundamental. Quando comecei a escrever, muito tempo atrás, não era assim. Nós escrevíamos para o público da nossa língua e tínhamos certeza (talvez ingenuamente) de que, para um bom texto, sempre haveria uma tradução. Mas hoje a tradução é uma questão de best seller

 

A importância do Salão do Livro de Paris

É exatamente por isso que eu estou feliz por vir a este Salão como parte da delegação brasileira. Na situação atual, nossa presença na cena internacional é necessária para sustentar a liberdade temática e formal, para não precisarmos renunciar ao que somos. Em outras palavras, para não responder unicamente aos imperativos do mercado e escrever sempre o mesmo romance que esperam de nós, ou seja, para não termos de nos submeter a um “esperanto” qualquer.

A censura, hoje, é feita pelo mercado. Ele pode não impor o conteúdo, mas impõe a forma ao escritor. E é o romance cuja língua não é poética que tem mais chance de ser traduzido e publicado. Para sermos livres em nossa escrita, precisamos nos opor a isso.

É verdade que demorou muito para Joyce ser publicado. Hoje, porém, talvez nem fosse, porque ele escrevia numa língua antes inexistente – a língua dele. Joyce não podia escrever em gaélico, que era uma língua quase morta, e não podia escrever na língua do opressor, o inglês. Então, inventou uma língua própria.

Nada é pior para uma pessoa do que renunciar à sua particularidade; nada é pior para um escritor que trabalha com sua língua, como é o correto na literatura, do que se censurar ou se cercear para agradar ao público de olho na venda. Salvo raras exceções, a simplificação da escrita se assemelha muito a um empobrecimento. Mas como fazer para utilizar o tesouro de sua língua e se exportar?

Por que não sonhar com um intercâmbio fecundo entre a França e o Brasil, promovido por diferentes ações políticas, que permitiriam aos franceses e aos brasileiros dar a conhecer melhor sua língua e sua literatura e transmitir valores essenciais? Os franceses sabem o que representam a lei e a solidariedade. Evidentemente, a França atravessa um período difícil, mas, no 11 de janeiro, ela deu ao mundo inteiro uma das mais belas lições. Quem não se tornou Charlie nesse dia?

Quanto ao Brasil, ele vive uma crise gravíssima. Porém não parou de ser a nação de uma cultura mestiça única, de uma contracultura de massa capaz de se reinventar permanentemente e de festejar a vida sem cessar. Existe no Brasil um Brasil eterno, que não está e nem nunca estará em crise. Ele faz a apologia do riso, que é formidável recurso vital e um portador de civilização. É esse Brasil, o país do Carnaval e do futenol, que eu cantei em meus romances e ensaios. Ele é generoso, espalha alegria. Esse é o país dos brasileiros autênticos, isto é, daqueles que não são levados pelo nacionalismo e são abertos a todas as culturas – daqueles que se nutrem delas para se reinventar.

Eu falei de história, de violência… Quanto ao futuro da literatura brasileira, direi que ele depende tanto de nós quando de vocês, porque a literatura não tem fronteiras e os escritores pertencem à pátria literária da qual nenhuma língua é excluída.

 

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Salão do Livro de Paris, 36a edição, Paris, 23 de março de 2015.