Betty Milan e Claudio Willer

Betty Milan e Claudio Willer sobre Baal

 

fevereiro de 2017 a janeiro de 2018

 

Baal é um romance da imigração. Começou, na infância, com a escuta dos meus ancestrais. Se perpetuou, na adolescência, com o drama da demolição do palacete concebido pelo bisavô materno. Se viabilizou graças à pesquisa histórica – sobre o Oriente Médio e o Brasil do século XIX – e à escrita das 25 versões durante três anos.

Contrariamente a outras sagas familiares, Baal não obedece à ordem cronológica, porque eu estava menos interessada na história da imigração tal como ela se deu do que na repetição da história decorrente do esquecimento do passado. O protagonista emigra para escapar a uma luta clânica e depois vê a luta se repetir no seio da família. Escapa do homicídio e se torna vítima do que ele chama de memoricídio.

Por não ter trabalhado com a ordem cronológica, a estrutura de Baal é complexa e este foi um dos motivos das tantas versões. Mas há outro motivo tão importante quanto. O romance conta uma história que dura cem anos e a indignação é a principal característica do narrador. Para que a expressão fosse convincente, eu precisava de um narrador em primeira pessoa. Um centenário dificilmente poderia contar a história com o vigor necessário e eu me decidi por um morto.

Por causa da estrutura narrativa e da escolha do morto, a escrita de Baal foi particularmente difícil. Quando eu já estava na décima quarta versão, depois de uma conversa sobre o texto com Claudio Willer, pedi a ele que aceitasse dialogar comigo por e-mail sobre o trabalho. O amigo topou e a correspondência particularmente fecunda, que durou mais de um ano, começou. Relendo os e-mails, achei que seria útil disponibilizar a correspondência no meu site para eventuais estudos futuros da obra, em que o narrador não é um alter ego como nos meus romances anteriores. Omar é um personagem que brotou do meu imaginário, ainda que a história familiar tenha me inspirado. O mesmo pode ser dito dos tantos personagens e das cenas relativas à emigração do Oriente Médio e à integração na América.

Para contar a aventura de Baal, seria preciso escrever resmas e mais resmas falando das entrevistas, das pesquisas e da criação literária propriamente dita. Farei isso talvez um dia. Por ora, eu me limito a esta pequena introdução à correspondência com Claudio Willer, o poeta e ensaísta que me acompanha desde que eu escrevi O papagaio e o doutor. Ele me acompanha criticando, sugerindo e prefaciando. Noutras palavras, sendo um verdadeiro companheiro de letras.

BM

 

 

2017

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Betty, querida, vou achar o que Walter Benjamin diz sobre memória ser a memória dos ancestrais.

Beijos,

 

 

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Qual era a relação dos seus antepassados com a religião? Foram cristãos libaneses, maronitas?

 

 

17 de fev.

De: Betty

Para: Claudio

 

eram maronitas

mas no meu romance isso não vai figurar

 

 

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ao mesmo tempo, Abu[1] foi colhido por uma guerra religiosa. Os seus antepassados eram em alguma medida praticantes?

 

 

17 de fev.

De: Betty

Para: Claudio

 

Sim, mas o narrador diz explicitamente que não vai falar da religião de uns e de outros. Sei que o bisavô que inspirou Abu acabou patriarca da Igreja Ortodoxa em São Paulo, mas acho que foi assim porque isso lhe dava status.

 

 

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Até que ponto seus antepassados incorporaram ou assimilaram a ideia do maktub, de um destino predeterminado, escrito nas estrelas, tão forte no Oriente Médio?

 

 

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Interessante, porque ortodoxo é diferente de maronita. Os maronitas são uma ramificação do catolicismo, aceita como tal pelo Vaticano, ou seja, são subordinados ao papa. Ortodoxos são um racha. Houve conflitos fortíssimos, por exemplo, os massacres de ortodoxos no caminho das Cruzadas.

 

 

17 de fev.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Ninguém da minha família era verdadeiramente religioso, mas o Faiad, que inspirou Abu, era ligado na representação. Ouvi dizer que era comum aderirem a um culto que estivesse em alta. Seja como for, quando ele morreu, os patriarcas estavam no enterro.

No romance, eu evitei o realismo para não escrever uma história que não interessasse a ninguém. Sobretudo às pessoas da minha família que escamoteiam a verdade o tempo inteiro: o palácio, onde eu passei a infância, não foi vendido só por razões econômicas e, no romance, as razões são explicitadas.

 

 

17 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Entendi.

A história de Simbad ou Sindbad, mesmo não sendo diretamente do repertório ou contexto cultural de Abu (Simbad foi persa), serve como pano de fundo ou contexto ‑ sucessão de aventuras de um viajante que, correndo riscos, enriquece.

 

 

17 de fev.

De: Betty

Para: Claudio

 

Olha, Claudio, Sindbad foi incluído no Mil e uma noites pelos franceses. Não pertencia, mas devia ser uma referência de todos. O mundo arabe é um só apesar das divergências religiosas, porque o Islã é a referência cultural de todos, por mais que eles neguem.

No seu leito de morte, Alain me disse que tirania pior do que a do Islã não existe por causa da relação com as mulheres.

 

 

17 fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Alain tinha razão.

E sim, existe o mundo muçulmano, mesmo com todas as gradações e todo o nosso cuidado com generalizações étnicas.

Beijos,

 

 

26 de fev.

De: Claudio

Para: Betty

 

Enquanto não acho o trecho do Walter Benjamin identificando memória e a memória dos antepassados, vai este, conhecidíssimo, de O anjo da história.

“Há um quadro de Klee que se intitula ‘Angelus novus’. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. Tal deve ser o aspecto do anjo da história. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as joga aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para despertar os mortos e reunir os vencidos, mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”

Há outro trecho em que Benjamin diz que a História é a história da devastação.

 

 

2 de mar.

De: Betty

Para: Claudio

 

bonito, esse trecho

 

 

2 de mar.

De: Claudio

Para: Betty

 

É terrível. Reler Walter Benjamin me provoca depressão, porque ele era melancólico, sofreu ostracismo e, ao final, se matou para não ser pego pelos nazistas.

Esses ambientes de família europeia são familiares demais para mim.

Identificação de memória pessoal e memória da família e dos ancestrais está ao longo de todos os fragmentos de Benjamin. E encarar dois pensadores tão diferentes como Spengler e Benjamin me incomodou. Spengler é brilhante, mas a crítica de Benjamin a ele ‑ ou melhor, a Goethe mas visando Spengler ‑ é correta. Fazer paralelo entre civilizações e fenômenos naturais induz ao conformismo.

Enfim, perco-me em especulações.

Beijos,

 

 

 

 

2 de mar.

De: Betty

Para: Claudio

 

Retomei Baal.

Estou caminhando e quero continuar por enquanto sozinha.

 

 

31 de mar.

De: Betty

Para: Claudio

 

Preciso saber se funciona o morto ser o narrador e só revelar que está morto no capítulo III.

 

«Os memoricidas

uma saga da imigração

 

para os que ousaram o mar

 

Morremos com os moribundos

Repara, eles se vão e nós vamos com eles

Nascemos com os mortos

Repara, eles regressam e nos trazem com eles

T.S. Eliot

 

I

Aprendi a duras penas que a família pode ser uma armadilha. Os laços de sangue não são uma garantia de nada. Basta ter vivido para saber o quão sanguinária a família pode ser… parricídio, matricídio, fratricídio. Não houve crime bárbaro na minha, assassinato. Ninguém se valeu de uma arma. O crime foi de outra natureza.

Nunca fui de falar dos malfeitos de uns e de outros. Mas o que está acontecendo me obriga a isso. Os infelizes dos meus netos querem demolir o palácio que eu construí, Baal, uma joia do Oriente no Ocidente. Dilapidaram a herança e agora querem demolir o palácio para erguer um prédio. Construí Baal para Ada[2] e para os filhos dela, os meus três netos, Andrew, Francis e Roxane.[3]

Andrew obrigou a mãe, a filha única e adorada que eu tive, a sair do lugar onde ela sempre morou. Ada, que além de viúva é idosa, foi levada para um apartamento minúsculo e sombrio. Num quarto dorme ela, no outro Salua,[4] que foi a governanta do palácio e agora é a dama de companhia. A sala é tão pequena que é preciso virar de lado para passar entre os móveis. Como se o espaço fosse para os jovens, e os velhos já não precisassem mais dele. Não há por que manter a mãe em casa… Já não convida ninguém. Nem mesmo os filhos. Todo dia, a mãe se isola um pouco mais. De que serve viver no palácio?

Andrew alugou um cubículo, pôs alguns móveis e foi buscar Ada em Baal.

“– Vem comigo.

– Ir para onde, filho?

– Para a sua nova casa…

– Como assim?

– Você precisa sair daqui… Depois eu explico.”

Sem dizer mais nada, ele tentou fazer a mãe se levantar. Gritando não saio, não vou, Ada bateu em Andrew com a bengala até cair e perder os sentidos. Voltou a si no quarto do cubículo e chorou o dia inteiro. À noite, ela gemia. Ai de mim… a filha de Abu. Na manhã seguinte, por causa da queda, mal conseguiu se levantar de tanta dor. Como não enxerga bem, tropeçou e caiu de novo. Passou uma semana com um galo na testa, maldizendo a vida.

Nunca imaginei que os meus netos pudessem fazer pouco da mãe e de um palácio que era um memorial da imigração… Pôr tudo abaixo como se o passado fosse de somenos importância! O dinheiro perverteu os meus. Como pode a história da travessia ser esquecida?

A diferença entre o céu da época em que eu imigrei e o de hoje me dá a medida do tempo que passou. Salvo nos dias de chuva, o céu era sempre azul. Hoje é cinza de tanta poluição. Mais fácil enxergar um avião de noite do que de dia… Quando cheguei, as ruas não eram asfaltadas. Havia chácaras com árvores frutíferas e o céu se animava com a revoada de pássaros. Por ordem do imperador, ninguém podia tocar nas árvores e a sarabanda de micos no tronco não parava. Subiam para se balançar no galho e, de tanto que o povo gostava de olhar, há mais de um provérbio inspirado neles. Até para falar de alguém que está agitado, o povo diz que tem macaquinhos no sótão.

 

II

Se não fosse a guerra, eu não teria largado meu país. Tive que tomar a decisão mais drástica e o meu caso não para de se repetir. Jornal eu não leio, mas rádio eu escuto e não passa um dia sem notícia de guerra. A nossa vocação assassina nos condena ao desterro: a largada ou a morte!

Antes de largar, eu não imaginava o que podia ser o mar aberto, o medo de ser devorado pela água ou assassinado no navio. Isso para não falar da violência na chegada. O infeliz se atira num barco para fazer a travessia, desembarca e é impiedosamente atirado na água. Volta para onde você nasceu. Como se o homem fosse obrigado a viver no país natal. A terra é nossa. O mar é seu. Uma barbárie… sem direito de asilo não existe civilização.

Na minha época, havia menos gente e mais lugar. Sobrevivi e salvei a descendência. Se não tivesse saído da aldeia, os meus estariam num país funesto, expostos a uma violência interminável. Disso eu tenho certeza.

Vai embora, Hani me disse. A mãe era sagrada e com ela eu não brincava.

“– Vai já, filho?

– Ir como?

– Como der… a pé, com o burro, sei lá eu.

– Ir para onde?

– Não sei. Porém aqui não tem mais jeito. Vai ficar à mercê do exército inimigo? Se você não for embora, Abu, eu me mato. Perdi o seu pai. O risco de te perder eu não posso correr.”

Impossível contrariar a ordem de Hani. Quando eu contar a história, você vai saber por que. Todos devem a vida à mãe, eu devo duplamente.

Por sorte, quando ela me deu a ordem de largar do país, eu já havia sonhado com o longe. Não por ter lido e sim por ter ouvido falar. O passatempo na aldeia era contar e ouvir. Mas o credo de uns e de outros não era o mesmo. Com o mel das palavras, nós degustavamos o fel da intolerância. Diga-me a que religião pertences e eu te direi quem és. Nada é pior do que isso. Ou você reza comigo ou você reza contra! Como se todos tivessem nascido para a mesma fé. Tanto Uad quanto eu fomos vítimas do ou, ou, a ditadura da fé que existia e ainda existe lá.

Uad era o meu melhor amigo, carregador na loja de tapetes onde eu trabalhava. Quando o patrão não precisava dele, Uad se agachava na rua e ficava encostado no muro, uma corda enrolada na cintura. Até que alguém o chamasse.

“– Vem cá, me ajuda.

– Já já. Uad está à disposição…pode o fardo ser leve ou pesado. Tanto faz o peso. De que vale estar a serviço se eu não sirvo? A senhora me dá o que quiser.”

Uad atravessava a cidade mais de uma vez por dia com um saco nas costas. O pescoço baixo e o olhar no chão. Cumprimentava todos que passavam. Além de bom dia, dizia o nome da pessoa. Reconhecia, imagine você, pelo sapato. Quem fosse capaz disso, identificaria Uad por uma botina rasgada, através da qual aparecia o dedão do pé… dedão que ele levantava quando o patrão dava uma ordem. Para cima, em estado de prontidão. Para baixo, ao se sentir aliviado – como se dissesse ufa. A botina contrastava com o turbante de muitas voltas, que dava a ele um aspecto imponente.

Uad tinha orgulho de ser quem era, porque foi para um carregador que Sindbad, o marinheiro, contou suas viagens. Na aldeia, Sindbad não era um personagem, um ser fictício, ele era um Deus. Todos lá descendiam de gente do mar… uma gente que gostava de se aventurar, intrépida. Quem leu a história sabe disso. Os fenícios viviam do comércio marítimo. A qualidade dos navios era tão boa que eles iam onde nunca ninguém esteve. Ouvi dizer que os comerciantes se tornaram mais ricos do que os reis… possuíam tantas moedas quanto os grãos de areia no deserto. A divisa deles era ‘Melhor comerciar do que guerrear’. Fiz desta divisa a minha.

Desde sempre o espectro da guerra rondou o meu país. O preconceito, além da ganância… Como pode você acreditar nisso? Como pode se vestir assim? O pior é que ninguém sabe quando a maldição vai se cumprir. Antes da guerra, a minha vida lá era boa. Logo que a loja fechava, Uad e eu íamos conversar e fumar o narguilé… fumar saboreando o gosto do tambac.

Depois de passar o dia, em silêncio, estendendo e enrolando tapete, era uma bênção sair com o amigo, ouvir as histórias que ele contava no mercado. Dizia era uma vez e ia em frente. Se deixava embalar pela própria voz. Às vezes, fechava os olhos para não se distrair. Os contadores tradicionais, os hakawati, usavam túnica de brocado e babuchas douradas, se cobriam de ouro e seda para falar. Pela sua convicção, o amigo dispensava o brocado e o dourado… não precisava de nada. Nunca me esqueci de como Uad contava a história de Sindbad, o marinheiro. Sempre falava primeiro de Sindbad, o carregador.

“– Cansado de ir e vir com os fardos mais pesados, procurou uma sombra para descansar. Entrou numa rua onde havia cheiro de incenso e sentou num banco. Ficou até ouvir uma harpa e sentir cheiro de comida. Deu alguns passos e viu um jardim que só podia pertencer a um rei ou a um sultão. Perguntou a um servo quem era o proprietário do lugar. Ouvindo que ele se chamava Sindbad, o carregador olhou para o céu indignado e invocou Deus: “– O proprietário tem o mesmo nome que eu. Estou nessa miséria, suportando a infelicidade e a pena… Há criaturas que gozam do repouso, enquanto outras se tornam mais e mais miseráveis com o tempo. Por que isso?”

Sindbad, o marinheiro, escutou a indignação e convidou Sindbad, o carregador, a entrar no palácio. O nome dos dois era o mesmo. Uad insistia nisso para dar a entender que, por serem iguais, os homens devem ser tratados com igualdade. Acho que o nome do carregador e do marinheiro é o mesmo porque a história suspende a realidade… faz de quem conta e de quem escuta seres iguais.

Na época, eu ouvia Uad sem refletir sobre os ensinamentos da história. A começar pelo fato de que o carregador entrou no palácio por ter manifestado a sua indignação. A palavra é poderosa… Qualquer homem do comércio sabe da importância da persuasão, a verdadeira arma dos meus, embora a palavra tenha sido substituída pela metralhadora. Ainda estão pagando por este erro, e a guerra lá pode durar até o fim dos tempos. Há tantos mortos que não tem mais lugar para os corpos. A vala comum é o destino de todos. Só quem imigra sobrevive. Mas a largada pode significar o naufrágio e a morte. Isso não para de se repetir. Acho até que não vou mais ouvir rádio. Vivo me perguntando como a indiferença ao sofrimento alheio é possível. Para evitar o desprazer, nós vemos sem enxergar, escutamos sem ouvir.

Sindbad é um náufrago que sempre se salva. Por isso Uad contava a história dele. Depois de falar do encontro do carregador com o marinheiro, descrevia a sua vida no palácio: “– Sempre rodeado por moças que eram como a lua cheia no horizonte”. Acrescentava que a riqueza dele não era o resultado da sorte, mas do gosto do risco. Para provar isso, contava a primeira viagem. Por incrível que pareça, tantos anos depois, eu ainda me lembro das palavras do amigo.

“– Sindbad navegou dias e noites, indo de um a outro mar, de um a outro continente, vendendo, comprando, trocando… acumulando riqueza. Até chegar numa ilha inteiramente verde onde o navio acostou. Imaginando que fosse o jardim do paraíso, ele desceu. De repente, o chão começou a tremer e o capitão gritou que não era uma ilha… era um peixe que flutuava na superfície do mar. Podia ir para o fundo a qualquer momento. Podia e foi. Antes que Sindbad conseguisse subir ao navio, o peixe mergulhou. O marinheiro só escapou se segurando numa tábua até ser atirado por uma onda na ilha do Rei Prodigioso.”

Sindbad é um homem de sorte. Mas a sorte não explica tudo… ele é atento, observador, capaz de improvisar e dissimular. Se não fosse, não teria sido bem-sucedido. As histórias davam a entender isso, porém eu só entendi, bem depois, lutando para conquistar um lugar ao sol, ou melhor, à sombra, por ter emigrado para um país tropical.

 

III

Vivi suando em bicas. Felizmente eu já não sinto calor. Morto nenhum tem corpo. O povo pensa que tem. Usa a palavra corpo para falar do morto. De tão grande, o meu não entrava no caixão ao qual estava destinado, mogno com alças douradas, o mais luxuoso que havia. Isso porque Ada era jovem e poderosa, bastava dar uma ordem para ser obedecida. Ninguém teria ousado contrariar Ada, fazendo economia na compra do caixão. Fui posto por quatro homens numa carruagem puxada por cavalos com capas e cavaleiras negras. Do meu enterro eu não posso me queixar.

A carruagem saiu do palácio, seguida por um cortejo… parentes e amigos. Alcançou a avenida principal e seguiu por um piso de pedregulhos, ao lado da trilha do bonde elétrico. A avenida era um mosaico de palacetes de estilos diferentes – florentino, mourisco, neoclássico, art decô… – e ficava no lugar que servia de passagem da boiada para o matadouro quando eu cheguei no país. Há quase um século. Os palacetes foram sendo substituídos por prédios e hoje só resta um, que tem um bulbo verde e árvores da mata primária. Um bastião da resistência!

Morri de morte esperada por causa da diabetes. Pouco tempo antes da descoberta da insulina… aos cinquenta anos. Hoje diriam que eu morri jovem. Na verdade, a idade não importa. Só importa o que a pessoa fez e é também por isso que existem as carpideiras. Antes de ir para o cemitério, eu fui devidamente carpido.

Devidamente talvez seja exagero, porque uma delas descarrilhou. A paixão da mulher era eu e, em vez de lamentar a morte de um grande…»

 

 

1 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Acho que o narrador precisa mesmo ser um morto, um contador morto e não um autor, como no caso do Machado de Assis. O problema é que o morto pode afastar o leitor e eu não quero isso. Por outro lado, ainda preciso decidir se o contador morto tem ou não um interlocutor como no caso do Guimaraes Rosa.

 

 

2 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Não vejo razão especial para o morto afastar leitores.

Minha sugestão: avance na narrativa, complete a história. Como eu disse, o todo não é a soma das partes. O que você sentir que cabe como voz de morto, faça. O que você sentir que cabe como relato para um ouvinte hipotético, também faça. Vá pelos seus sentimentos. Em princípio, é viável a ambiguidade, ser uma coisa e outra.

 

 

2 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

A história ja foi completada.

Estou agora refazendo, repensando.

Preciso dar a mim mesma uma explicação que justifique o narrador morto.

Já trabalhei mais de uma vez com a figura do morto por achar, como os povos primitivos, que o morto continua a ter existência.

Para Lacan, o analista tem que ocupar o lugar do morto. Um morto que escuta e reenvia a mensagem do analisando com sinal invertido.

Lacan também falava do discurso do Outro que nos determina.

Trata-se de alguma coisa por aí.

Precisaria encontrar na literatura algo que dê substância a isso.

Se puder me ajudar…

 

 

2 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Você pode tirar uma cópia para mim? Como eu disse, sem visão de conjunto é mais difícil.

Mortos… sei no xamanismo. Em narrativas em prosa, acho que o morto mais importante é mesmo Brás Cubas. Ocorrendo-me outros, digo.

 

 

2 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

por enquanto não adianta nada tirar cópia

Brás Cubas é um morto autor

o meu morto é um morto contador, como no Oriente

 

 

2 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Curioso, examinei recomendações de alguns escritores de como escrever. Kerouac em o Essentials of spontaneous prose, Henry Miller, John Steinbeck. São completamente diferentes! Todos mentem. Kerouac criou o lema do ‘First thought, best thought’, mas reescrevia um bocado, ele mesmo refez On the road algumas vezes. A reter – e não está nos Essentials, porém nos seus diários – a observação de que narrativas são sobre gente, que se deve trazer os personagens para dentro do relato, ou seja, humanizá-los. Detalhes, acessórios, que conferem vida ao personagem.

 

 

2 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Boas observações de Eduardo Viveiros de Castro em Metafísicas canibais:

“[…] os animais, plantas e outras categorias amazônicas de seres jamais deixam de ser inteiramente humanos […] todo morto continua um pouco bicho; todo bicho continua um pouco gente.” (p. 177)

“[…] a separação entre humanos e não humanos, a projeção de uma figura animal genérica como Outro da humanidade é função da prévia separação entre mortos e animais, com a projeção de uma figura genérica da humanidade na forma ancestral. O fato escatológico de base, a saber que os mortos viravam animais, era algo que ao mesmo tempo humanizava os animais e ‘alterava’ os mortos; com o divórcio entre mortos e animais, os primeiros permanecem humanos, ou mesmo passam a ser sobre-humanos, e os segundos começam a deixar de sê-lo, derivando para a sub- ou anti-humanidade.” (p. 178)

Mas até aqui estamos no que você já sabe e observou.

 

 

2 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

interessante isso

quanto a enviar o texto inteiro não é o caso agora

estou rescrevendo capítulo por capítulo

vou enviando primeiro por capítulos, se for o caso

 

 

3 de abr.

De: Claudio

Para:Betty

 

Começos de narrativa são decisivos, determinam o interesse do leitor. E seu começo com Abu, o morto, narrando e interagindo com outros mortos é bom, tem força. Trata de memória, lembrança, anamnese (no sentido platônico?), e isso poderia perder-se caso fosse apenas um relato para alguém. No plano do estilo, permite-lhe ser menos linear. Sugestão de paralelo com acontecimentos atuais, a violência que prossegue e parece ampliar-se, a catástrofe migratória, a circularidade dos dramas individuais e populacionais, tudo está na medida.

Prossiga, vá até o fim. Quero ver como você fecha. Mande-me o que achar que eu posso ler.

 

 

 

4 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

veja o que eu descobri

 

“O lugar me destinava a ser refugiado ou imigrante. Aceitei o destino. Quem não faz isso se opõe a si mesmo. Deixei a montanha, árvores majestosas… florestas inteiras de madeira imputrescível! Quando era feito com ela, o casco do navio resistia a qualquer navegação. Os ancestrais sobreviveram fazendo galés para comerciar noutros lugares… galés movidas a vela e a remo. Antes de se tornarem fugitivos ou imigrantes, foram navegadores e comerciantes. Os meus netos ignoram isso. Verdade que eu pouco falei com eles do meu passado. Gostava mais de falar com os que vieram de lá como eu. A língua era a mesma, nossas lembranças… Quem migra tem dupla personalidade. Com os descendentes eu era um. Com os conterrâneos, outro. O esquecimento também se deve a isso. Primeiro você larga do país natal e, depois, para voltar a ele se distancia dos seus. O esquecimento talvez seja inevitável ou eu talvez seja responsável. Difícil saber.”

 

 

6 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ah – em tempo – não gostei do subtítulo “os memoricidas”, embora corresponda ao que é relatado. Use a palavra em algum momento da narrativa.

Acho que não tem que dar muita explicação ao leitor – Baal, a saga infindável da imigração já está bom.

 

 

10 abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

acho que você não está entendendo o que eu quero

sobretudo não quero que você me diga que precisa do fim agora

o fim chegará oportunamente

no momento, o que eu preciso é da leitura de capítulo por capítulo

já te enviei os primeiros, vou enviar agora o quarto

preciso da análise do começo, do meio e do fim de cada capítulo

se não puder ser assim, eu desisto de te mandar

o capítulo IV é diferente do que você já recebeu

o interlocutor não é mais o neto do Abu, não se chama mais Otávio

passei para um interlocutor que só aparece através das mensagens de Abu a ele

leia e você vai ver

 

 

 

 

 

10 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Esta versão está, sim, melhor. Sem interferências da ‘autora’ (scriptor, dizem alguns eruditos), o texto flui mais.

Pensando no conjunto, pode muito bem ser algo ambíguo em que não fica claro se é um morto se comunicando com a autora, um documento achado, ou um relato oral para alguém (Guimarães Rosa, e não só em Grande Sertão: Veredas, fazia isso sempre).

Atenção para o repertório do protagonista, um homem do século XIX.

“Genética”, por exemplo, adquiriu importância com Mendel (1822-1884) e Abu não sabia disso. Falava “hereditariedade” mesmo.

Volto a insistir em nossa primeira aula de Gestalt, “o todo não é a soma das partes”.

 

 

10 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Técnica (como não gosto desse termo, sou pela intuição e emoção!) de escrever narrativas: tem que ter começo, meio e fim.

Baal começa bem, promete algo.

Meio, a saga de Abu desperta interesse pelo o que você vai revelando, inclusive episódios da história ou micro-história que o leitor desconhece.

Mas o desfecho é crucial. Uma solução boa, em A mãe eterna, foi deixar tudo em suspenso e fechar com prosa poética.

É preciso, porém, de algum modo, surpreender o leitor. Ainda mais que o drama, a desagregação, o conflito familiar e a perda de Baal já estão anunciados.

Dois modelos de fecho surpreendente: Ulisses e Grande Sertão: Veredas.

 

 

10 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

A questão não é propriamente a técnica.

O fim depende do começo e do recomeço.

Já sei como vai ser o desfecho, mas ele precisa ser mais bem construído.

Quando eu me aproximar do fim, nós vamos saber como ele deve ser.

Já acho que deixarei em aberto como no A mãe eterna.

Baal, nesta versão, a décima quinta, está apenas ameaçado de destruição. Acho que, por ser historiador e para se opor ao mais velho, Francis vai se opor à destruição.

Ada então voltaria para o palácio, cujo futuro fica em aberto.

Não tenho certeza de nada ainda.

Nunca tenho antes de concluir.

Por favor, guarde a nossa correspondência.

Obrigada,

 

 

 

17 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Acabo de perceber que há um erro na cronologia.

No capítulo III, Abu diz que os palacetes foram substituídos por prédios.

Não pode ser, ele foi enterrado por volta de 1925 e, portanto, ainda não havia prédios.

Veja o erro abaixo:

“Os palacetes foram sendo substituídos por prédios e hoje só resta um, que tem um bulbo verde e árvores da mata primária. Um bastião da resistência!”

 

Se o morto desperta para narrar em 1960, o presente a que ele se refere é 1960 e não o presente de 2017.

 

 

17 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, aí dá um nó cronológico.

 

 

17 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho

estou enfim podendo escrever

faz frio e o telefone não toca

 

 

17 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Me parece muito bem. Fluente. O morto pode até ser mais veemente. Como os lamentos nas tragédias gregas ou no Rei Lear, arquétipo de quem é traído por herdeiros. Vocábulos árabes bem encaixados.

Ainda vou reler. Mas, desde já, o detalhe de ele ouvir o rádio ‑ na primeira versão isso estava mais bem encaixado, o rádio era do guardião do cemitério ‑ dá um efeito interessante.

Não se preocupe por enquanto com o status da narradora. Mas o crescimento do drama da imigração é atual, adquiriu proporções dantescas.

Ele falar em 2017, por aí, cabe.

Beijos,

 

 

18 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

No momento estou lendo Pai Goriot, depois vou reler Lear e um texto do Brecht que se chama Baal.

Ontem à noite fiquei me perguntando o que o Lacan queria dizer com o analista ocupar o lugar do morto e deste lugar reenviar ao analisando a sua própria mensagem com sentido invertido. Isso significa que o analista dá existência ao morto e fala por ele?

Caminhando…

 

 

18 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

As afinidades entre a anamnese clássica, aquela de Platão, e a psicanálise.

Algo a ver com meu pai ou minha mãe por vezes me aparecer em sonhos.

Beijos,

 

 

18 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

consegui reescrever mais um capítulo

este sem problemas, mas com uma observação para você

 

 

18 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Acho muito bom.

O modo “en abîme” funciona perfeitamente. É coerente com isso de contar histórias, esse modo próximo-oriental. Os relatos daquela vida ou o modo de viver são atraentes.

Diga-me, faz tempo que eu ia perguntar isso, porque os nomes ingleses, Andrew e Francis? Soam algo estranhos, em vez de André e Francisco?[5]

Beijos,

 

 

18 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Olha, você tem razão.

Vou pensar nos nomes.

É que os libaneses tinham como referência a França e a Inglaterra.

Meus tios se chamavam Eduardo, Cesar, Vitoria.

Let me think.

 

 

18 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, há nomes que podem ser de mais de uma nacionalidade ‑ André, Vi(c)tória, César.

 

 

19 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

A bem da verdade, escrever para mim é um tormento.

Nunca sei exatamente que história vou contar.

Tenho que escrever para descobrir.

Além disso, o que é pior, quando uma estrutura se impõe, eu tenho que aceitar.

O meu inconsciente me determina, e a liberdade que eu tenho é bem relativa.

Os professores de story telling ensinam as diferentes formas de narrar, mas não ensinam que o autor às vezes não tem como dispor de nenhuma delas.

Quando eu estava escrevendo A paixao de Lia, você comentou que eu queria escrever sem palavras. Não sei exatamente por que.

 

 

19 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Mas é assim com a maioria dos narradores. Quantidade deles dá depoimento sobre a narrativa se fazer enquanto é escrita ‑ Cortázar é um deles ‑ ou que narra sem saber onde vai chegar. Ter plano de obra é arma de dois gumes.

É claro que é para não propriamente seguir o inconsciente ‑ então seria escrita automática ‑ mas as duas esferas dialogarem.

Outra coisa, ainda mais nesta era de computador, eu acho que se deve seguir o impulso, pois tudo pode ser revisto com facilidade. Insisto no que tenho dito sobre a relação das partes e o todo.

Beijos,

 

 

19 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Eu hoje já reescrevi quase dois capítulos, que você logo receberá.

No meio do segundo, escrevi:

“A mãe não era de fazer drama, mas não permitia o esquecimento. Também por isso eu estou rememorando. O ancestral não deixa de se perpetuar por ter morrido. Sabendo ou não, a gente faz e deseja por ele. Também conto a história por Hani.”

O que eu escrevi tem a ver com o desejo. É o desejo do Outro do Lacan ‑ o Outro é o discurso.

Que paralelo pode ser feito entre Lacan e a reencarnação da alma?

Tenho o sentimento de que no fundo todo mundo diz a mesma coisa. Ai de mim, se eu dissesse isso para alguém da rive gauche

Tant pis,

 

 

19 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Uma ousadia, esse paralelo.

Não é como a reencarnação – é o contrário. A anamnese de Platão, que consiste em lembrar de vidas anteriores ou do tempo primordial, vale como uma metáfora de autoconhecimento ou de consciência mais ampla.

Beijos,

 

 

20 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

terceira versão do mesmo parágrafo

acho que agora ficou bom

“A segurança que o dinheiro dá é uma ilusão. Mas ninguém pensa nisso quando nasce em tempo de guerra numa aldeia sem recursos. Dinheiro, na minha situação, significava vida… Sobreviver é o destino de quase todo imigrante… Também por isso a imigração é cruel. O sujeito perde a língua natal, tem que morrer para ela. Pode imaginar o que é isso? Acho que não. Ao largar do país, eu me tornei mais pobre do que os mais pobres.”

 

 

 

20 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Bom.

Beijos,

 

 

21 de abr.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho

Seria bom você ler e criticar os capítulos VIII e IX. Tenho o sentimento de que está indo bem. Preciso chegar ao fim para depois fazer a última intervenção dramatizando mais certos episódios. Agora eu paro de escrever durante uma semana. Vou para Portugal amanhã e fico por lá até o dia 28. Dificilmente poderei escrever durante esse período, porque tenho muito trabalho com os literatos e psicanalistas portugueses, uma gente de bem. Na volta, dia 29, eu retomo e escrevo até o lançamento em Barcelona, dia 17 de maio. Tudo sempre muito corrido, porque os editores se tornaram incompetentes (mal sabem editar e não entendem nada de comércio).

Lisboa vai ser ótimo. Barcelona é um enigma.

Até a volta.

 

PS: Levo comigo Le père Goriot e Le roi Lear.

 

 

 

21 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

O modo contínuo em vez de intercalado com diálogos funciona bem. Mudança de nomes também. E os pequenos acréscimos, idem. Coxas e não cochas; lorde e não lord. Quanto mais detalhes da narrativa daquele cotidiano de aldeia melhor.

Prossiga.

Boa Lisboa.

Beijos,

 

 

22 de abr.

De: Claudio

Para: Betty

 

Os acessórios da narrativa, que conferem verossimilhança ou lhe dão aspecto de mimese ‑ por exemplo, o couro tratado com cocô de pombos e tantos outros detalhes ‑, e a humanização dos personagens ‑ o cacoete de Uad, por exemplo ‑, tudo isso me parece estar muito bem. Se lhe ocorrer mais, use.

Aguardo mais.

 

 

1 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Retomei o trabalho.

Reli o capítulo V, que eu já tinha enviado a você, e o parágrafo 2 precisava ser reescrito.

Importante que você me diga para reescrever quando o texto não estiver suficientemente claro.

 

 

1 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

O movimento da constelação familiar, o papel de cada membro ‑ francamente, isso é algo que terei mais condições de avaliar olhando o conjunto. Até que ponto enriquece? Até que ponto dispersa? Central é mesmo a trajetória de Abu, é quem mais interessa, com o drama decorrente.

‘se separando’ é cacófato.

‘perispírito’, esse conceito é usado no espiritismo kardecista, mas não na umbanda.

Esses encontros de culturas distintas, a presença do sincretismo, isso me lembra as evocações em O papagaio e o doutor ‑ você acha possível, em certa medida, sem se autoplagiar, repeti-las ou retomá-las? Em O papagaio e o doutor, são passagens fortes. Aqui, cabe indagar qual é a função dentro da narrativa.

Beijos,

 

 

1 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Acho que apontei alguma coisa, defasagem cronológica e inadequação de nomes, mas continuo fortemente interessado em ver onde a narrativa vai dar.

– Baal, deus fenício, inclusive da prosperidade, homenageado com sacrifícios; é a pedra negra, um marco arquitetônico. Heliogábalo o trouxe para Roma, escandalizou ao substituir os deuses do Panteão ‑ naquele contexto, um deus transgressivo, uma provocação.

– Aqueles imigrantes ‘turcos’, ao enriquecerem, construíram mansões; mas baal pode ter um sentido extra, como a negação do mundo e da vida que ele havia vivido. Penso na mansão de Des esseintes, de À rebours de J. K. Huysmans ‑ decadentista, antinaturalista, criou o oposto do mundo natural, o artificial absoluto, mas não aguentou ficar lá. A narrativa é 70% feita de descrições do que ele criou.

– ‘Turcos’, como provenientes do império otomano, a generalização em contraste com a identidade real, como membro de um clã libanês em choque com outros. Algo a explorar aí?

– Interessante a narrativa de Simbad, originariamente persa, sobreviveu à destruição do califado de Bagdad, em 1263, pelos mongóis e permeou toda a cultura muçulmana nos dois ramos, xiita e sunita, e ainda os cristãos orientais. A força da narrativa. Pode recorrer mais a ela, penso.

– Cultos sincréticos no porão de baal, é possível alguma conexão com o que Abu viu ao chegar aqui?

Assunto não falta.

Beijos,

 

 

2 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

– Baal… observe que, no meu romance, o importante é o processo e não a destruição de baal, que no final não acontece (isso vai ficar em aberto).

– ‘Turcos’… se eu explorasse isso, faria um romance que seria lido por menos pessoas. Prefiro trabalhar somente com lá e aqui (suficiente para a metáfora da imigração).

– Interessante a narrativa de Simbad… você tem razão, observarei isso.

– Cultos sincréticos no porão de Baal… pode ser.

– Assunto não falta… nem fale.

 

Beijos,

PS: Por favor, guarde toda nossa correspondência.

 

 

3 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

reescrevi a cena do porão inspirada no Papagaio, você teve uma boa ideia

 

“Eva era diferente dos outros membros da família. Talvez por ser estrangeira. Não sei se ela deixou o país vizinho para se casar ou para viver num palácio que ‘deixa os grandes do Oriente e do Ocidente boquiabertos’. Coração dos outros a gente desconhece.

Ao contrário dos outros, ela descia sempre ao porão, onde as empregadas tratavam os seus males. Para os do corpo, se valiam de ervas e de rezas como as ancestrais africanas. Para os da alma, invocavam os poderes sobrenaturais. Às vezes, com rituais de magia branca. Num deles, a praticante encarava a Lua pedindo que abençoasse o seu espírito. Sai do teu curso oculto, oh, dama da sorte! Me dá a tua luz. Havia também simpatias para resolver urgências sentimentais, seduzir alguém, desviar uma rival.

Certeza eu só tenho de que Eva participava do ritual para contactar os mortos. Sentava diante da médium para falar com a mãe já falecida.

‘– Mãe, cadê você? Do seu amor eu nunca duvidei. Sem ele eu não sei para que lado vou.

– Oiê, oiá, o espírito vai retornar. A vida verdadeira não acaba com a morte. Oiê, oiá, o espírito da mãe está falando.

– Não deixei de te amar porque não estou presente como antes. Você e eu nunca vamos nos separar. Nem mesmo quando você se for. Você não precisa fazer o impossível… não é obrigada a ficar onde está. Ubi bene ubi patria. O seu marido não é a sua pátria. Não desista de procurar…’

Eva subia convicta de que a vida podia mudar, dizendo que só os mortos sabem a verdade. Gostava do porão para alcançar o longe, mas também descia porque ali uma religião não excluía a outra. As empregadas cultuavam as divindades africanas e as católicas. Não deixavam de rezar com um terço para a virgem e o redentor. Não faltavam à procissão, onde iam para olhar os rapazes que carregavam o andor e ver os anjinhos de branco e azul. Ajoelhavam-se quando o bispo passava com o cibório de ouro… com as hóstias.”

 

 

3 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Vozes d’África – som de fundo no porão de Baal e antes (cronologicamente) nas cenas de escravidão que Abu viu. Complementos da “voce d’altra tomba” de Abu.

Beijos,

 

 

4 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Fique atenta para o repertório de alguém do século XIX. A ideia de ‘estar de bem com a vida’ não é recente?

Beijos,

 

 

4 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Você acha mesmo que essa história de ‘repertório’ é tão importante?

Me parece que isso só vale quando é aberrante.

Beijoca,

 

 

4 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Acho. Se não, pode soar falso e comprometer a narrativa. O leitor deve sentir que é a voz de Abu e não a da Betty Milan, para que haja empatia. Dentro de certos limites, é claro – fidelidade a um hipotético imigrante da virada do século XIX para o XX pode até soar forçado.

Mas isso do repertório faz parte da humanização dos personagens. Em todas as grandes narrativas na primeira pessoa, o protagonista sempre tem voz própria; é a fala dele que está presente, quer seja Brás Cubas, Riobaldo, Benjy Compson de Sound and Fury de Faulkner, Sal Paradise etc. (um longo etc., citei apenas as mais importantes). Aliás, Seriema também.

Beijos,

 

 

4 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Você mesma acaba de postar muito bem em seu blog sobre “escutar”. Para ser escutado, tem que falar, haver uma voz… Henry Miller criou uma voz própria, semificcional. Biografias mostram que ele não era assim – pessoalmente, tímido, até ensimesmado.

Beijos,

 

 

4 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Vamos transformar a nossa troca profícua de e-mails em livro a quatro mãos. Sempre quis escrever sobre a criação literária, mas é muito difícil fazer e teorizar passo a passo.

 

 

5 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Yeah

Sobre Baal e as vozes: em narrativas anteriores, a voz era sua, de um alter ego, alguma combinação de ficção e a Betty real. Agora, é de um outro, Abu. Convém que soe como tal. Claro que não precisa ser a reprodução “fiel” da fala de um imigrante libanês da virada dos séculos XIX e XX.

Beijos,

 

 

5 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Fiquei pensando nisso hoje à noite… as vozes… Óbvio que não é a reprodução fiel da fala. Não saberia fazer isso e nem tento fazer, porque tornaria o texto intraduzível. As fontes de inspiração para a fala do Abu são muitas.

Precisaria refletir mais sobre isso para te dizer, mas no momento eu não posso.

 

 

5 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Nenhuma pressa, take your time, criação literária não é lição de casa.

Beijos,

 

 

6 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho

Qual a diferença entre uma história romanceada e o romance histórico que eu estou escrevendo?

Na história romanceada, a gente conhece a história.

Eu sei desta por referências vagas e estou reinventando quase tudo.

Eu precisava saber teorizar isso.

 

 

 

6 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

A categoria romance histórico é ampla, abrangente. O que você está escrevendo decididamente é romance histórico, porque se sustenta em acontecimentos históricos que são pano de fundo.

Guerra e paz e Os miseráveis também são romances históricos, mesmo que os protagonistas e os acontecimentos diretamente ligados a eles sejam 100% ficcionais.

Cabe lembrar o extremo cuidado com que Tolstoi e Victor Hugo trataram acontecimentos históricos, páginas e páginas de relatos com informações de que dispunham, respectivamente sobre a invasão da Rússia e as sublevações francesas. Se não me falha a memória, em Os miseráveis, Waterloo e a revolta de 1830 são tratados com enorme cuidado.

Beijos,

 

 

6 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Pois é, Claudio, mas eu não quero fazer um romance realista. Isso, nos dias de hoje, limita o interesse do leitor.

Quero me inspirar na história da imigração para encontrar a ficção inerente a essa realidade que não deixará de existir, porque nós estamos fadados à guerra.

Trata-se de um romance realista de outra natureza.

Mesmo porque não é narrado em terceira pessoa.

 

 

6 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Não obsta a que seja romance histórico.

Mas eu não me preocuparia com isso, são apenas classificações, categorias. Evidentemente, os dois livros que citei, de Tolstoi e Hugo, são lidos pelo valor ficcional, pelas tramas e pelos protagonistas tão bem desenhados. Contudo, a qualidade da reconstituição de fatos históricos adiciona, enriquece (e contribui para torná-los enormes).

Beijos,

 

 

6 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

No romance histórico, as cenas propriamente históricas conferem verossimilhança e ampliam o interesse. Por exemplo, os trechos sobre o general russo Kutuzov em Guerra e paz.

Beijos,

 

 

6 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Pois é, Claudinho.

Essa forma de conseguir verossimilhança não me parece a melhor para mim. Antes de ontem fui ao teatro assistir à “A ascensão irresistível de Urturo Ui”. O fato de ter que conhecer a história enfraquece a peça. Eu, aliás, gostei muito da mise-en-scène feita por uma berlinense, mas não gostei nada da peça do Brecht, que nunca a reviu para ser publicada ou mesmo para ser apresentada no teatro.

Enfim, agora já é tarde, hora de ler.

Amanhã, a Marine Le Pen será definitamente derrotada.

 

 

 

 

 

 

6 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, mas o que você fez já é romance histórico. E as contextualizações, de narrar como era a vida naquele tempo etc., estão boas e adicionam interesse.

Beijos,

 

 

7 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

honestamente, quero fazer o máximo e a sua ajuda tem sido preciosa

bom domingo

 

 

7 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

O mercado europeu tem interesse, suponho, por informação ‑ aliás, o brasileiro também. Somos, muitos entre nós, desmemoriados.

Logo mais, postarei alguma reflexão sobre esta categoria ‘romance histórico’. Ou já.

Os três mosqueteiros, participações de Mazarin, Luis XIII etc., são ficcionais porque eles não disseram ou fizeram o que está no livro; no entanto, o romance é histórico, pois a atuação dos personagens corresponde ao que se sabe.

Romance histórico brasileiro… José de Alencar fez romances históricos ‘fakes’, com situações e personagens implausíveis. Romance histórico brasileiro bom é a série O tempo e o vento de Érico Veríssimo, embora nenhum ator histórico importante tenha participação direta no enredo.

 

 

7 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

A narrativa da chegada está entre os trechos fortes de Baal, eu penso. Pela percepção de contrastes e continuidades do recém-chegado. Outro mundo, mas a opressão se reproduz sob outras formas. Na medida, me parece.

A rigor, tudo poderia ser estendido. Mesmo sem chegar ao detalhamento obsessivo dos narradores históricos que citei, Hugo e Tolstoi. Mas não se preocupe com isso, siga em frente. Como eu já disse, muita coisa depende do todo. E traçar um quadro com breves pinceladas é bom.

Beijos,

 

 

9 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Consegui acordar cedo hoje para trabalhar. Rende muito mais, e o sol está brilhando nas cinco árvores que são a minha floresta local. Tirante uma serra que está grunhindo, o silêncio é total e nada é melhor do que o silêncio.

Reescrevi o capítulo XVIII que tem um monólogo no final ‑ do Abu, quando ele chega na capital dos trópicos. Me perguntei duas coisas e você talvez possa me ajudar.

1) Faz sentido fazer um monólogo, tendo em vista que Abu está contando a história para o bisneto? Ou seja, a gente pode contar um monólogo?

2) O monólogo deve ser mais longo?

Last but not least, estou meio chateada por não ir a Barcelona lançar A mãe eterna, mas eu não podia aceitar a proposta da editora. Ela gostou do livro, mas não sabe como difundi-lo, porque só tem formação em assessoria de imprensa e é tradutora. Por outro lado, acho que ela teve dificuldades em colocá-lo nas grandes livrarias e em encontrar quem falasse sobre o livro. Na verdade, ele está sendo censurado.

O que vale é que o próximo, a saga da imigração, não vai ser censurado em lugar nenhum.

 

 

9 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

É um trecho forte.

Pode até carregar um pouco mais nas tintas do Amin com febre amarela e da situação de ter que deixá-lo, dolorosa.

Cenário, detalhes para conferir verossimilhança, o pessoal no oratório, ótimo.

Monólogo tem continuidade natural. Na verdade, é tudo monólogo de Abu, e você nem precisa destacar em itálico.

Prossiga.

Beijos,

 

 

21 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Bonjour, Claudio.

Como vai de domingo?

Eu aqui voltei ao trabalho.

Seguem mais alguns capítulos que eu já havia escrito antes de me ausentar.

Amanhã eu prossigo e a porca vai torcer o rabo, porque agora eu vou enfrentar o último terço do romance, antes de escrever o capítulo introdutório e rever todos os textos relativos a Ada (o meu “Huis Clos”).

Todas as observações serão bem-vindas.

Beijoca,

 

 

 

21 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Passagens bonitas. A carta, especialmente.

 

A questão geográfica:

Abu desembarca em Santos e vai de trem para São Paulo. Daí para a hospedaria dos imigrantes na Mooca ou no Brás, de onde se junta ao mascate Saad. Os três circulam por uma zona residencial de São Paulo, com a mula, e aí emendam direto para Itu ou Jundiaí ou Sorocaba, enfim, zonas de expansão agrícola? A agricultura de café com a qual enriqueciam naquele tempo? Então teriam que usar transporte. Ou foram a pé até, digamos, Itaquera, atual periferia, e então à região agrícola, Mogi, ou até Jacareí, enfim, zona de plantação de cana com engenhos?

 

Mas siga em frente, esse trecho da saga ou epopeia de Abu está ótimo. Depois de pronto, verifica-se a consistência espacial, qual trajeto seria percorrido pelos mascates até uma zona rural. Historicamente, eles iam para longe, cruzavam todo o interior.

 

Os detalhes:

“Me transformei no homem do navio para escapar à guerra.” ‑ Será que está claro? Talvez ‘em navegante’?

“Mas, dos macaquinhos no meu sótão, eu não me livro, como os que morrem de verdade, os que podem deixar de existir por terem sido respeitados. Quem condena o semelhante a não sair de cena merece o inferno.” ‑ Será que a sequência de frases e o argumento estão claros?

“Só posso contar a história e impedir o esquecimento.” ‑ Basta “Só posso contar a história.”

“A realidade nunca serviu para desmentir a fantasia, não é um argumento eficaz.” ‑ Basta “A realidade nunca serviu para desmentir a fantasia”.

“Descobrir significava ambicionar.” ‑ Ótimo.

 

Será que é para você cuidar agora de detalhes como, por exemplo, quilos em vez de kilos, ou seguir em frente e deixar para depois?

Beijos,

 

 

22 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Estou curioso sobre como situar as viagens de Abu com o mascate. São Paulo era rodeada de Mata Atlântica, montanhas, então para sair teriam que atravessar um rio. As pessoas iam para o interior inicialmente navegando pelo Tietê e depois pela ferrovia. Qual seria o trajeto para chegarem a pé até uma plantação de cana?

Mas isso pode ser pesquisado e ajustado depois. Novamente, siga em frente.

Estou muito curioso em saber mais sobre como Abu enriqueceu.

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

O meu romance não precisa atender aos requisitos do romance realista tradicional. Trata-se de um realismo mítico. Seja como for, eu pesquisei para escrever. Para a venda na periferia da capital, eu me inspirei em textos de diferentes autores; para a fazenda de cana, eu me inspirei no que ouvi o meu avô contar. Ele ia a pé com o peso nas costas. Nunca me disse que tinha atravessado um rio. Mas vou me informar com um historiador se, para chegar a um engenho, era obrigatório atravessar um rio. A fazenda pode perfeitamente não ser longe.

 

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim.

Mas até Abu chegar a São Paulo e agregar-se a Saad, você segue coordenadas geográficas, mostra aonde ele está indo. Questão de consistência. E de manter, digamos, cor local.

Seguindo na direção do Vale do Paraíba, talvez não houvesse travessia de rio. À época a lavoura cafeeira já havia sido abandonada naquele pedaço. Cultivavam cana. Pode ser em algum lugar como as atuais Mogi das Cruzes e Jacareí, mas convém certificar-se.

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Ok.

Caminhando… Estou a dez páginas do fim.

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

A dez páginas do fim? O que vai ser? Morte de Abu? Isso tem que ser tratado de algum modo.

Se te ocorrer um pouco mais de detalhes do enriquecimento de Abu, seria bom. Apenas pela consistência, com o relato da chegada e primeira viagem, para não virar relatório. Em comparação, no relato da primeira viagem de Abu com Saad, você dá cenas, descrições. Sobre os escravos, está muito bem ‑ o aprendizado, a carta, ótimo. Procure manter algo desse tratamento.

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Ainda detalhes.

Cartagineses em vez de cartaginenses, studebaker em vez de studebacker, mas isso pode ficar para depois.

Atropelamento dava cadeia?

“Francisco só não consegue anular a doação, se o juiz for comprado. André é capaz de qualquer coisa, mas ele está na cadeia. O juiz desonesto de tia Laila não é exclusividade da aldeia. O Sê Justo roubava, embolsando o dinheiro dos órfãos. O juiz daqui também rouba, liberando o criminoso em troca do dinheiro.”

Em que ano isso se passa? Década de 1940?

Studebaker foi um grande carro da década de 1930 até 1950, mas a venda de Baal não foi nos anos de 1960?

Aguardo.

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Mais perguntas.

Quem, dentro da narrativa, entende de história das religiões e dá esse detalhamento sobre Baal, a ambivalente divindade fenícia que enriquece e destrói? A narradora, você? Abu?

Mas aqueles libaneses não tinham mais a memória dos ancestrais fenícios e sua mitologia, eram de um enclave cristão em um mundo muçulmano.

Curioso… Baalbek, a cidade, suas ruínas estão aí até hoje, foi construída pelos romanos. Equivalência de Baal e Dionísio/Baco, também ambivalente?

Como surgiu a ideia de batizar a casa com o nome da divindade? Isso é capital, me parece, novamente por uma questão de consistência. Nem que seja com alguma breve historieta sobre alguém que contou sobre Baal ou ativou o interesse de Abu.

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Tem uns errinhos mesmo.

O que poderia dar cadeia nos anos 60? Teria que atropelar e matar? Só sei que minha mãe, coitada, atropelou uma menina e teve que prestar contas na justiça. Vou ter que falar com um advogado ou será que você consegue me ajudar nisso?

Sim, a venda de Baal é nos anos 60 e, nessa época, a venda do Studebaker aumentou muito por causa de um novo design.

A morte de Abu já foi tratada no começo ‑ ele conta que morreu de diabetes um ano antes da descoberta da insulina e descreve o enterro.

Você está certo em dizer que eu preciso detalhar o enriquecimento de Abu.

Li Zola e não adiantou nada.

Não sei bem como fazer isso, porque nunca me ocupei da coisa, vou ter que falar com um primo meu, cujo pai enriqueceu comprando terrenos na Vila Olímpia.

Aguarde o final.

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Aquele Studebaker com design revolucionário por Pinin Farina foi em 1950. Vou pesquisar, é fácil.

Trambique financeiro, estelionato, teria mais chances de dar cadeia.

Zola e o interminável Balzac…

Logo mais saio para dar oficina literária, amanhã escrevo algo sobre narrativas de sagas familiares e como você resolveu bem para não ter que fazer algo quilométrico à la Thomas Mann.

Mesmo assim, vai precisar escrever um pouco mais, acho.

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Precisava sobretudo evitar o quilométrico. Evitar a descrição que hoje se tornou arcaica. Para isso tive que recusar a linearidade e reinventar a estrutura narrativa. Mas o fato é que eu ainda estou no caminho. Você ontem me deixou com dois problemas e hoje com mais dois. Problemas que eu provavelmente só vou poder resolver aí, no mês de julho.

Voilá,

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Deixei com problemas? Evitei problemas…

Beijos,

 

 

23 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Você tem razão. Viajei na maionese e vou tirar a sequência relativa à divindade.

Não sei o que Abu podia saber sobre ela. Mas podia saber os diferentes significados de Baal, como, por exemplo, proprietário, esposo, mestre. Significados que preexistiam aos significados religiosos (múltiplos).

Não vejo porque Abu deva explicar a razão pela qual deu o nome Baal ao palácio. Mas vou pensar.

Seja como for, Baal é um significante que tem a ver com o poder do proprietário, do esposo, do mestre, das diferentes divindades.

Baal é o que o Lacan chamava de point de capiton.

Por que não deixar a ambivalência vigorar?

Quanto a mim, o nome me ocorreu por causa dos vitrais com os templos de Baalbeck (inspiraram também o túmulo da família) e por causa do ‘al’. Todas as palavras começadas em ‘al’ são de origem árabe: al… alla…

Voilá por hoje.

 

 

23 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Vitrais de Baalbeck, muito bom. E ele pode ter querido ficar sabendo mais a respeito, mais tarde. De todo modo, a remissão à divindade é interessante; questão apenas de inseri-la de um modo não arbitrário.

Voilá!

Bjs,

 

 

24 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

É o seguinte sobre saga familar:

Saga familiar é modalidade de narrativa histórica – costumam ser quilométricas. Os Buddenbrooks de Thomas Mann (este gostava de escrever bastante, 720 páginas na edição brasileira!); O tempo e o vento de Érico Veríssimo, três alentados volumes; Forsyte Saga de Galsworthy, que virou série de TV.

Para evitar uma coisa dessas, você seccionou, fez dois planos: a vinda e enriquecimento de Abu, o drama final de Ada; e os contrapôs. Está muito bem. E colocou tudo sob a égide de um deus ambivalente, criador e destruidor.

Acho que a etapa de Abu enriquecendo e instalando a mansão pede algum recheio, para não passar do relato ao relatório. Não foi só ele achar terreno bom e barato, comprar e construir. Faltam aqueles detalhes que conferem verossimilhança, assim como você fez no relato da chegada e primeira viagem.

Uns topônimos iriam bem – primeiro hotel em São Paulo foi na Florêncio de Abreu, mas o nome da rua era outro naquele tempo; idem a 25 de Março, onde certamente se estabeleceram. Verificar um pouco mais sobre como era o Morro dos Ingleses, quando ele comprou terreno lá. Era Saracura o nome da região?

Detalhes preciosos, fáceis de acrescentar.

Beijos,

 

 

24 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

A sua colaboração tem sido essencial.

Levo em conta tudo o que você diz.

Retomo o processo de enriquecimento de Abu, quando acabar esta versão.

Retomo também toda a história de Ada para humanizá-la.

O Morro dos Ingleses merece uma pesquisa suplementar.

Esta noite eu me dei conta de que, para o André sair de cena e o Francisco recuperar o documento da doação, a solução é o André sofrer um acidente de carro (está na lógica do personagem, que não é estelionatário).[6]

Vai que vai.

 

 

 

24 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

André sofrer acidente de carro é uma solução. Ou então, para ir à cadeia – e possibilitar sua interdição –, algo muito grave como assassinar alguém mais rico e poderoso que ele ou dar um desfalque em alguém.

Rasgar contrato é inútil, já que André não seria bobo a ponto de não o registrar em cartório. Consulte um advogado.

Para André, naquela época, o objeto de desejo seria um Jaguar. Buick e Cadillac já estavam fora de moda, anacrônicos.

Para não parecer criação de enredo de telenovela, já dê dicas sobre o André: carro, vício de jogo etc. Vá configurando o personagem, encaminhando-o.

Mas, como eu disse, tudo isso pode ser adicionado, melhor terminar primeiro.

Beijos,

 

 

24 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Cuidado com inconsistências narrativas.

Mortos estão fora do tempo, por isso são videntes, sabem o futuro (cf. a Divina Comédia de Dante e outras fontes).

Então, você não pode reintegrar Ada e preservar Baal. Isso tiraria o sentido dos lamentos de Abu. Pelo que você já escreveu, é inevitável terminar em tragédia.

Punir André, isso pode.

Beijos,

 

 

 

 

 

 

24 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Hoje o dia foi um estorvo. Gente me telefonando o tempo todo.

Mas eu consegui encontrar algumas soluções.

Primeiro, para introduzir Baal, deus do Céu e rei do Inferno.

Quem pode dizer isso é Eva, que é culta.

Segundo, para tirar André de cena sem que ele tenha que ir para a cadeia.

Amanhã eu continuo.

Espero chegar ao fim esta semana.

Depois terei que retomar tudo a partir da chegada das mulheres.

Retomar tudo o que diz respeito a Ada.

Escrever a introdução.

 

 

27 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Segue mais quinze páginas.

Ainda falta o fim.

Gostaria de saber se, na sua opinião, o romance pode terminar com a tragédia de Saad ou não.

Ada está no hospital e pode voltar para o Baal, se resistir à operação.

Ela pode não resistir.

Daí eu tenho que terminar com Abu falando da filha, do amor, da vida e da morte.

O futuro de Baal, que pertence aos três filhos de Ada, na sua opinião, pode ficar em suspenso?

Vamos caminhando.

 

 

 

 

27 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Lerei e comentarei.

Mas:

1 O discurso de Abu e a simbologia de Baal encaminham para a tragédia, a destruição.

2 Vou lhe enviar observações sobre a simbologia de mortos que falam nos mitos, nas epopéias e nas religiões. Um dos mais pressagos é aquele que, na Eneida, avisa a Dido que não adianta, pois Cartago será inevitavelmente destruída.

Beijos,

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Tudo pode ser detalhado para conferir verossimilhança: acrescentar topônimos, nomes dos lugares onde, na época, se instalou e onde comprou os terrenos.

André é descuidado e não registrou…? Acho difícil.

 

Detalhes:

– Saad foi vítima do preconceito ‑ Acho que não, as vítimas foram a filha e o genro/filho. Ele foi um agente ativo do preconceito.

– Convencer a população de que o fim da monarquia precisava acabar ‑ Não, convencer que a monarquia precisava acabar, convencer que o fim da monarquia era necessário, algo assim.

O desfecho necessariamente se encaminha para a tragédia, já observei isso.

Prossigamos.

Beijos,

 

 

 

 

28 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Please, aguarde o texto que eu vou reenviar.

Estou relendo as últimas vinte páginas, as que eu fiz na semana passada. Há uma série de erros ainda.

Prefiro que você leia a versão corrigida que eu vou enviar daqui a pouco.

Bom fim de domingo.

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Acabei de mandar comentários.

Ok, mande as novas versões.

Informa-me a Wikipédia: A avenida Paulista foi inaugurada no dia 8 de dezembro de 1891, por iniciativa do engenheiro Joaquim Eugênio de Lima e do Dr. Clementino de Souza e Castro (na época, presidente do Conselho de Intendências da Cidade de São Paulo, atual cargo de prefeito), para abrigar paulistas que desejavam adquirir seu espaço na cidade. Em 1891, muito em cima da chegada de Abu, me parece ‑ https://pt.wikipedia.org/wiki/Avenida_Paulista

Aguardo.

 

 

 

28 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

A única menção indireta à avenida Paulista acontece quando Abu é enterrado nos anos 20. A sua observação não é relevante para a história.

Vi que você mandou outros comentários, mas eles desapareceram no computador.

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Tem o episódio de ele ter um terreno desapropriado para a construção de uma nova avenida.

Beijos,

 

 

28 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C,

Mas não tem nada a ver com a Paulista.

Por outro lado, fiz muito pesquisa para o romance.

Nada é casual.

Agora não vou introduzir topônimos, porque não quero escrever um romance realista.

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Ok.

Não é romance realista? Claro que é, à clef, inspirado em personagens reais, mesmo a história narrada não tendo ocorrido tal e qual.

Beijos,

 

 

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Bom, quanto ao roteiro de viagem… Então o caminho é mesmo aquele que imaginei, atravessando a atual Zona Leste de São Paulo em direção às atuais Mogi das Cruzes e Jacareí. Achariam um engenho, mesmo que raro.

Ou você muda e deixa uma lavoura indeterminada?

Beijos,

 

 

28 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

olha,

vou mudar para fazenda de café e deixar o engenho em Santos, onde um dos engenhos mais antigos existiu

é melhor ter uma fazenda de café

o problema é que eu ainda vou ter que fazer mais uma pesquisa

 

 

28 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, fazenda de café é mais plausível – para os lados do Vale do Paraíba, corresponderia a esse roteiro de viagem.

Mas o importante é completar o relato, ter o conjunto – hoje, como temos computador, é fácil modificar detalhes sem ter que refazer páginas inteiras.

Beijos,

 

 

29 de maio

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Segundo o historiador, a fazenda de café, à qual ele chega no segundo dia de viagem, fica na direção de Jundiaí.

Também segundo o historiador, o terreno que o Saad compra pode ficar onde hoje é a rua Consolação.

Ou seja, está tudo certinho, ainda que eu propositadamente não dê informações toponímicas para o leitor.

 

 

29 de maio

De: Claudio

Para: Betty

 

Ótimo.

Beijos,

 

1 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Aguardo mais Baal. Estive refletindo a respeito, sobre a questão do ‘Bildungsroman’ que se projeta em sua obra, em acréscimo àquela da narrativa memorialística, mas só falo as minhas reflexões depois de tudo pronto, depois de você completar a narrativa.

O papagaio e o doutor tem as duas coisas, uma narrativa memorialística e um ‘Bildungsroman’.

Beijos,

 

 

3 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Querido

Estou caminhando para o fim.

Achei o poema que eu pretendo pôr no final do romance, cortando uma estrofe talvez.

Você é um imenso tradutor. Será que poderia traduzir para mim quatro estrofes do ‘Les aventures de Sindbad le Marin’?

Estou louca para concluir o capítulo e te enviar.

Obrigada,

 

 

3 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Vou te enviar o último capítulo e você me envia o poema.

Marsulo já me enviou as informações sobre a fazenda de café e eu vou retrabalhar o capítulo da Dona Yolanda.

Depois, começo a trabalhar o subplot da Ada.

Sei que tenho muito caminho pela frente.

Mas sinto que vou chegar lá.

Beijoca,

 

 

 

3 de jun.

De:Claudio

Para: Betty

 

Consegui.

Difícil, justamente pela simplicidade, fazer que não fique prosaico.

Beijos,

 

Se alguma sombra vier turvar teu coração,

jovem, viaja para bem longe

e deixa teu lar a chorar

pela memória dos que o ergueram.

 

No lugar da terra natal

sempre acharás outra terra.

Tua vida, porém, se for perdida,

jamais será substituída.

 

Não fiques triste pelo infortúnio

que as noites te trouxeram,

pois toda provação encontrará seu fim

em algum momento.

 

Quem tiver que morrer

em uma terra distante

sempre morrerá naquele lugar

que foi traçado pelo destino.

 

 

 

4 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Mexi. Dei mais um trato nas aliterações e rimas internas.

Escolha qual das duas versões preferir.

Beijos,

 

Se algum pesar vier turvar teu coração,

jovem, viaja para bem longe

e deixa teu lar a chorar

em memória dos que o ergueram.

 

No lugar da terra natal

sempre acharás outra terra.

Tua vida, porém, se for perdida,

jamais será substituída.

 

Não te entristeças pelo infortúnio

que as noites te trouxeram,

pois toda provação encontrará seu fim

em algum momento.

 

Quem tiver que morrer

em uma terra distante

sempre morrerá naquele lugar

que foi traçado pelo destino.

 

 

4 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

‘Roxane[7] foi buscar André, que acabava de sair do coma, no hospital’.

Consegue, recém-saído do coma, ir a um velório?

Você me manda o conjunto de tudo após essas modificações/acréscimos?

Claro que, antes disso, qualquer trecho que quiser que eu veja, é só mandar.

Será que não sofistiquei demais minha tradução?

Beijos,

 

 

5 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Obrigada pela tradução.

Mas eu vou mexer nela.

Seja como for, o texto que eu te enviei já era uma tradução.

 

 

5 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

“Passamos por uma moita amarela e verde de bambu antes de chegar na fazenda. O trabalho ali ainda era feito por escravos. Só se retiravam para dormir na senzala. Se você visse como era! Um retângulo de pau a pique coberto de sapé, sem janelas… tão abafado e fétido como o porão do navio negreiro. Os escravos estavam na terra como em pleno mar. Mas o cansaço era tamanho que nenhum deles se dava conta do calor e do cheiro. Caíam mortos numa esteira feita com capim ou folha de bananeira e se entregavam ao sono e aos pernilongos – para acordar com o sino da fazenda, às cinco horas da manhã. Podiam eles se queixar? Já não eram obrigados a dançar como no porão do navio, ouvindo o estalar do açoite que sequer poupava as mulheres grávidas. Pouco importava que perdessem as magras crianças de bocas pretas as quais dariam à luz. Dança sua desgraçada!

Quando o Bom e Barato passou pela senzala, os homens já estavam no cafezal sob o controle do capataz. Cada trabalhador se ocupava sozinho de 1.000 pés de café. Aplainava e arava a terra, abria buracos para semear os grãos e cobria com duas camadas de terra. Irrigava para acelerar a germinação e, depois, até a colheita, irrigava os 1.000 pés uma vez por semana. Colhia, enfim, sob os olhos do capataz, só os grãos de tamanho médio.”

 

 

5 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Oba,

Você viu que eu usei uns versos do “Navio negreiro”?

 

 

5 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Fez bem.

Beijos,

 

 

10 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Será que você poderia fazer considerações de a), b) e c) abaixo?

Agradecerei.

O problema do narrador eu ainda não resolvi.

 

  1. a) Se o morto conta para um bisneto vivo: o morto conta em sonho para o bisneto vivo, alguém acha as notas do bisneto que morreu e edita o texto (neste caso terei que fazer uma introdução bastante convencional e complicada, segundo o Jean).

 

  1. b) Se o morto conta para o bisneto morto: é um diálogo entre os mortos. Temo que leitor não se identifique (neste caso, terei que introduzir no texto a informação de que o bisneto está morto).

 

  1. c) Se o morto não conta para ninguém: apesar do estilo oral, eu tiro todas as referências ao bisneto.

 

 

10 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Há dois tempos nesta narrativa.

Um, aquele da vida – e morte – de Abu, do seu tempo biográfico. Esta é a saga do imigrante. E outro, do que aconteceu depois. Um tempo futuro sob a perspectiva do Abu biográfico ou histórico e também um tempo passado para o autor e seus leitores.

 

Balzac, evidentemente, iria pela cronologia e teria feito mais uma ou várias narrativas para este “segundo tempo”, oferecendo algumas centenas de páginas. É o que você não pretende fazer. Então, precisa de um protagonista morto que lembra de sua própria vida e que também sabe o que sobreveio depois.

De fato, algo difícil de resolver literariamente.

Mas a outra solução, de alguém do presente que conhece e relata a vida de Abu e também os acontecimentos subsequentes, seria banal. Perderia a intensidade do testemunho de Abu, aquilo que o relato na primeira pessoa tem de atraente ao provocar empatia.

Termine o subplot, insira-o.

Como eu disse, fica mais fácil ou viável vendo o conjunto.

Beijos,

 

 

11 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Obrigadíssima.

Você entendeu perfeitamente o romance.

Vou fazer o que você diz quando voltar de Berlim, onde vou passar uma semana na casa da minha amiga Christl Brink.

 

 

11 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Posso eventualmente me valer da troca de e-mails para escrever um texto sobre o trabalho?

 

 

11 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ótima ideia juntar tudo. Evidentemente vou selecionar ‑ nossa troca de e-mails tem de tudo! – só aqueles atinentes a questões literárias.

Beijos,

 

 

22 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Estou caminhando para o fim da décima sétima versão e a coisa começou a fazer mais sentido.

E então? Será que você poderia juntar a nossa correspondência?

Preciso rever isso.

Beijoca,

 

 

22 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Juntar a correspondência?

Minha pasta ‘Betty Milan’ tem 745 itens.

Décima sétima versão? Mein Gott!

Beijos,

 

 

23 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Você não está entendendo.

Eu gostaria que você juntasse nossos e-mails relativos ao romance.

São fundamentais para escrever sobre o processo criativo.

E ainda poderemos usá-los numa consultoria literária e disponibilizar no meu site… Pretendo abrir um item no site chamado ‘correspondência literária’. Nele eu colocaria a nossa troca de e-mails, depois de uma edição, claro.

Trata-se de um documento importante, não acha?

Mas agora é hora de escrever.

Beijos,

 

 

23 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Programa willeriano deste fim de semana: selecionar os mais relevantes dentre os e-mails.

Prossigamos.

Anseio por ver Baal final.

Beijos,

 

 

 

23 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Leia.

Do clássico de Mircea Eliade, Le Chamanisme et les techniques archaïques de l’extase – a edição é aquela da Payot, 1951, p. 344:

“On devient prophète en s’asseyant sur les tombes et on devient “poète”, c’est á dire inspiré, en dormant sur un tombeau d’un poète. Même coutume chez les Celtes: le ‘fili’ mangeait de la chair crue d’un taureau, buvait de son sang, et dormait ensuite enveloppé dans sa peau; pendant son sommeil, des “amis invisibles” lui communiquaient la réponse à la question qui le travaillait. Ou encore on dormait directement sur la tombe d’un parent ou d’un ancêtre, et devenait prophète. Typologiquement, ces coutumes se rapprochent de l’iniciation ou de l’inspiration des futurs chamans et magiciens passant la nuit auprès des cadavres ou dans les cimitières. L’idée sousjacente est la même: les morts connaissent l’avenir, ils peuvent révéler les choses chachées etc. Le reve joue parfois um role similaire: dans le Gisla Saga, le poète montre le sort de certains privilégiés après la mort.”

Veja como em Interpretação dos sonhos Freud apenas tangenciou essa riqueza de papéis do sonho.

Beijos,

 

 

23 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Acabei a decima sétima versão.

Vou fazer umas correções e te mando. Daí eu deixo o texto descansar.

Você me mandou o texto do Mircea Eliade sobre xamanismo. Eu talvez use como segunda epígrafe – a primeira é o texto do Eliot. Mas eu gostaria de dar uma ajambrada na tradução para ficar mais poético.

Sugiro :

“… a pessoa se torna profeta sentando-se sobre um túmulo e ela se torna poeta dormindo sobre o túmulo de um poeta… os mortos podem revelar o que está encoberto e eles sabem do futuro.”

 

O texto que você me enviou do Mircea Eliade é o seguinte:

“Alguém se torna profeta sentando-se sobre túmulos e torna-se poeta, ou seja inspirado, dormindo sobre o túmulo de um poeta. […] A ideia subjacente é a mesma: os mortos conhecem o futuro, eles podem revelar as coisas escondidas etc. O sonho desempenha por vezes um papel semelhante […].”

 

 

 

23 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

mando duas alternativas para as epígrafes

acho que a segunda é a melhor

 

ALTERNATIVA 1

“Morremos com os moribundos

Repara, eles se vão e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos

Repara, eles regressam e nos trazem com eles”

T.S. Eliot

 

“… a pessoa se torna profeta sentando-se sobre um túmulo e ela se torna poeta dormindo sobre o túmulo de um poeta… os mortos podem revelar o que está encoberto e eles sabem do futuro.”

Mircea Eliade

 

ALTERNATIVA 2

“Morremos com os moribundos

Repara, eles se vão e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos

Repara, eles regressam e nos trazem com eles”

T.S. Eliot

 

“A pessoa se torna profeta sentando-se sobre um túmulo

A pessoa se torna poeta dormindo sobre o túmulo de um poeta

Os mortos podem revelar o que está encoberto

Só eles sabem o futuro”

Mircea Eliade

 

 

23 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Eliot + Eliade é sensacional.

Beijos,

 

 

 

 

23 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Ok, Claudinho. Mas em que ordem?

Tem duas alternativas.

Tenha a bondade de me dizer qual você prefere.

Obrigada,

 

 

24 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Acabo de ler a décima sétima versão e achei que está fluindo bem. O final me comoveu. Mas o romance ainda pode crescer, se tiver mais magia e mais loucura. Isso terá que ficar para mais adiante, porque no momento eu tenho que atender outros compromissos.

Veja abaixo a epígrafe e me diga se está bem ter posto o Eliot antes do Mircea Eliade e ter transformado o texto do Eliade num texto poético – não quero ser enforcada pelos universitários.

Só digo isso porque somos tão amigos. E a colaboração vai continuar.

 

“Morremos com os moribundos

Repara, eles se vão e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos

Repara, eles regressam e nos trazem com eles”

T.S. Eliot

 

“… a pessoa se torna profeta sentando-se sobre um túmulo … a pessoa se torna poeta, ou seja, inspirada, dormindo sobre o túmulo de um poeta… os mortos sabem do futuro e podem revelar o que está encoberto”

Mircea Eliade

 

 

24 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, com as reticências, fica claro que são recortes.

Quero ler!

Beijos,

 

 

24 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

vou enviar o texto

 

 

27 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Olá.

Quando você retorna?

É que algumas observações menores eu as tenho anotadas direto no texto. Detalhes.

Flui, acho que está bonito.

Beijos,

 

 

27 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho

eu estou aí dia 6

podemos nos encontrar na semana seguinte

por favor, me faça mais críticas do que elogios

o romance precisa estourar a boca do balão

pouco me importa publicar ou não um livro a mais

quero conseguir publicar Baal fora do Brasil

abrir um caminho novo

a propósito, fui convidada para ser âncora de um programa sobre psicanálise na GNT

depois eu te conto

até

beijoca,

 

 

27 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Que bom!

Beijos,

 

 

28 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Meu subconsciente tentava lembrar-me de um texto literário forte por um personagem morto. Só hoje veio-me à memória “Vaca de nariz sutil”, de Campos de Carvalho. E já dei palestras sobre ele. Perverso, o oposto do Abu. Paródia de Machado.

Beijos,

 

 

28 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Seriema é a minha alma feminina (mais irreverente).

Abu é a alma masculina desta sua amiga.

Tenho novidades para contar.

Beijoca,

 

 

29 de jun.

De: Claudio

Para: Betty

 

Vou reler Baal.

Está muito bom, mas fiquei na dúvida se no final, nos últimos oito capítulos, você não condensou demais. Se algum personagem, o marido ou o cunhado de Ada, não podia ganhar alguns traços a mais. Vou comparar com trechos que você tinha enviado antes.

Como o Baal fenício é chave, deveria vir mais para a frente, está muito no começo.

Entrementes, li um outro livro sobre descendentes de imigrantes libaneses, novos-ricos. Bom, mas é sátira escrachada. Só vou mostrar, por motivos óbvios, depois de você ultimar de vez o seu. Mas as coincidências são notáveis. Inclusive apagar a língua de origem e se fazerem passar por cosmopolitas, adotando nomes estrangeiros. Aliás, Lilian Gattaz, minha amiga, provém de libaneses ricos de Rio Preto; irmãos dela, médicos importantes, são Walter e William. E tem o William Nacked, que ganhou até a consoante a mais, em vez do Naked original, para parecer britânico. André é nome quase universal, pode ou não ser brasileiro; Roxane idem. Mas talvez Francis em vez de Francisco.

Carrão típico de playboy de então era, se quiser especificar, o Ford Thunderbird.

Algumas ortografias, mas isso é fácil.

Aguarde mais.

Beijos,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

29 de jun.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Vou voltar aos nomes que eu tinha posto: Andrew e Francis.[8]

Espero que você leia criticamente o meu texto.

Não importa muito saber quem fez a mesma coisa.

Tenho um tio premiado, Cecilio Carneiro, autor de A fogueira, que virou série da Globo, segundo me disseram.

 

 

10 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Você agora só precisa ler o que está em vermelho nesses dois primeiros capítulos, parece que o texto cresceu.

Amanhã eu mando mais. Quero caminhar rapidamente

Beijoca,

 

 

10 ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ótimo.

Aguarde comentários.

Beijos,

 

 

 

 

 

10 ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, cresceu. Manteve a força. Não economize prosa poética.

Aguardo mais.

Beijos,

 

 

10 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Quanto a Baal, vou continuando e o texto só vai crescer.

Sua colaboração tem sido incrível.

Beijoca,

 

 

10 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Prosseguiremos!

Faça logo, pela atualidade dos temas, conflitos religiosos, imigração, atraso brasileiro ‑ está tudo na ordem do dia. E tenha clareza de como você vai terminar.

Beijos,

 

 

11 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Ufa.

O dia hoje foi duro.

Retrabalhei as descrições de Baal.

Nada é mais difícil. Fazer uma descrição que não seja um exercício de virtuosismo. Só Flaubert sabia fazer isso.

Envio a sequência de descrições e mais dois capítulos e saio correndo assistir uma conferência sobre tecelagem ‑ pode me ajudar para o personagem de Íris.

Beijoca,

 

 

11 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Em algum lugar observação ou comentário sobre o hábito dos novos-ricos emergentes darem nomes estrangeiros aos filhos, Andrew, Francis, e cortarem os laços com a língua e a cultura de origem?

Acréscimos bons.

Beijos,

 

 

14 de ago.

De: Betty

Para: Claudio Willer

 

 

Claudio

Mais um dia difícil.

Uma sobrinha minha de 39 anos foi hospitalizada com câncer generalizado e vai passar pela quarta operação óssea.

Não pode interromper as intervenções médicas, não tem marido e tem uma filha de 19 anos.

Com isso eu não avancei no texto seguindo a sua orientação.

Sei bem que preciso trabalhar na história dos irmãos antagonistas, imaginar.

Segue abaixo um pequeno texto novo sobre os fenícios.

Acha que Abu podia saber tudo que o texto diz?

Tenho o sentimento de que sim, mas espero confirmação sua.

Mathias leu as descrições de Baal e sugeriu que eu contasse o que se via lá do alto da torre, ou seja: de um lado, o casario do Bexiga e o Martinelli; do outro lado, os palacetes da Paulista.

Vou fazer isso agora, embora eu esteja particularmente devagar hoje.

Beijoca,

 

“Todos lá descendiam de gente do mar… uma gente que gostava de se aventurar, intrépida. Quem leu a história sabe disso. Os fenícios não podiam sobreviver só com o cultivo da terra. Tiveram que desenvolver a construção naval e passar para o comércio marítimo. As galeras transportavam as cargas mais pesadas. A proa era forte e a popa tinha um remo que servia de leme.

A cada viagem, a embarcação usada dependia dos mares e das mercadorias: madeira de cedro ou pinho, âmbar, ébano, marfim, metais diversos – ouro, prata, cobre, ferro e estanho – e tecidos – seda, linho, brocado – vinho, azeite, sal… Ouvi dizer que eles chegaram onde nunca ninguém esteve. Atravessaram o mar negro, contornaram a África e ousaram o mar tenebroso, o Mar Oceano. Já sabiam da existência da Europa, Eure, e da Ásia, Asu. Alguns se tornaram mais ricos do que os reis… possuíam tantas moedas quanto os grãos de areia no deserto. A divisa deles era ‘Melhor comerciar do que guerrear’. Fiz desta divisa a minha.”

 

 

14 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Que coisa! Aqui em São Paulo, sua sobrinha?

Ideia de escrever sobre São Paulo vista desde a torre de Baal me parece excelente.

Assim como também o tema dos irmãos antagonistas, muito tradicional.

Beijos,

 

 

 

14 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Por causa do que está acontecendo com a minha sobrinha, que se drogou na juventude e depois fumou muito, vou encaminhar o Mathias para um teste oncológico.

O romance prossegue amanhã.

 

 

15 de ago.

De: Claudio

Para: Bettty

 

Ainda sobre os fenícios, duas possibilidades: uma, os mortos sabem mais; outra, mesmo em vida ele ouviu dizer, contaram-lhe. De um modo ou de outro, acho, sim, que vale incluir, mesmo como registro do que os libaneses esqueceram e ainda mantêm, sem saber.

Beijos,

 

 

 

15 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

obrigada pela resposta

já incluí

acho que Abu podia ter ouvido dizer

também incluí na fala de Eva uma referência ao que podia ser visto do alto da torre de Baal

São Paulo já tinha o edifício mais alto do país, o Martinelli

não dei maiores detalhes porque eu quero ficar no que eu chamo de realismo mítico que ainda preciso um dia conceituar

o Floriano retomou a Agulha?

você continua a se dar bem com ele?

acabo de assistir a um filme sobre o Líbano que me deu algumas ideias para Andrew e Francis (Cain e Abel).

quando escrever eu mando

 

 

15 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Mande.

Floriano, sim, mas não tenho me interessado por Agulha.

Beijos,

 

 

15 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

O dia hoje foi complicado em matéria de Baal. Por um lado, comecei a me debruçar sobre os filhos de Ada e consegui aprofundar um pouco; por outro, recebi uma carta da minha amiga Christl, que sempre me lê, criticando arduamente Baal.

Possível que no fim eu troque o narrador morto por aquele narrador clássico que narra a história em terceira pessoa e não precisa se justificar ‑ mas só no fim, depois que o plot estiver devidamente realizado.

E não se preocupe, porque nós vamos chegar lá, ainda que não seja nada fácil por razões óbvias.

Beijoca,

 

 

15 de agosto

De: Claudio

Para: Betty

 

Narrador morto é uma ideia excelente. O morto dá vida ao relato, torna-o mais original. E torna mais aguda ou presente a questão da memória.

Um morto tem a memória mais viva do que um vivente, paradoxalmente. É o que está expresso naquelas epígrafes.

Beijos,

 

 

15 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Entendo perfeitamente o que você diz. Mas tenho que me perguntar por que a Christl me disse que o morto não convence. Já escrevi para ela perguntando.

Seja como for, não vou mexer nisso agora.

Preciso continuar.

Ainda que o processo seja vagaroso, está melhorando.

Para escrever o Papagaio, eu levei cinco anos.

Por outro lado, tenho a boa notícia de que o meu blog chegou a 3.500 assinantes. E eu não estou falando dos vídeos.

 

 

15 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

O morto transmite ‘pathos’, emoção.

Que bom, o blog.

Beijos,

 

 

19 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sobre os trechos com acréscimos que você mandou.

Meus comentários entre parênteses.

 

  1. Mostrando melhor como os herdeiros novos-ricos, burgueses emergentes cortam os laços com a origem (Curioso, coisa de novos-ricos descendentes de libaneses, vários que adotaram nomes de ingleses, conforme já havia comentado. Entre os judeus nunca reparei, mesmo os assimilados como meu pai e família):

 

“Nunca tive vergonha do que sou e não liguei para o rótulo. Quem são estes outros que fazem pouco de mim? Dizem que, por não ter nascido aqui, eu não sou homem bom? São os mesmos para os quais o negro, o índio e o judeu também não são. Logo aprendi que eram concorrentes de outra nacionalidade e não abri mais o flanco. Só não tive como defender os descendentes do preconceito.

Andrew tem um horror tal das origens que chegou a falsificar os documentos. Para evitar que as origens fossem descobertas, mentia sobre o nome dos ancestrais. Nunca foi neto de Abu ou filho de Dib. Inventava nomes para nós e não convidava ninguém em casa para não ser desmentido. O mezze ele não comia e, em contrapartida, fazia questão de comer içá torrada, como os amigos. Regozijavam-se com o abdômen das saúvas vermelhas que revoavam dos formigueiros depois das primeiras chuvas da primavera. De tão dependente da opinião dos outros, Andrew viveu o mais longe possível da família, na contramão de si mesmo, tentando ser o que não é.”

(Mas, Betty, comiam saúva grelhada? Nunca soube. Esses tipos são mais chegados a um restaurante chique, algo equivalente, na época, ao La Tambouille ou Fasano.)

 

  1. Mostrando que Ada já está senil, aos 72 anos:

“A pedido de Ada, Salua telefonou para a casa de Andrew e passou o telefone para Ada. Quem atendeu foi a empregada.

– Quero falar com meu filho.

– O Doutor não está.

– Então diz a ele que eu preciso ir para o palácio agora. O lustre já chegou e foi pendurado no salão… uma cópia do lustre de Santa Sofia. Abu está me esperando na sala francesa… acendeu todas as luzes. Tenho que receber os convidados… um palácio sem princesa não existe. O tambac já foi posto nos narguilés… Diz para Andrew vir me buscar já.

– Mas ele não está.

– Diz assim mesmo.

Ada bateu o telefone e quis sair do apartamento. Como a porta está trancada, ela grita me tira daqui e bate com a bengala no chão.

Salua chora na cozinha. Como pode uma mulher normal perder de repente a razão? Ada evita qualquer aproximação. Desconfia de quem sempre foi filho. Só quer o filho que não a atende e não dá ouvidos ao outro. Insiste numa realidade que não existe, o palácio que vai ser construído. Quem pode ajudar? Só o médico.” (Enloqueceu?)

 

 

19 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

comiam saúva sim

ademais, existe a licença poética

 

 

19 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Com quantas páginas você está? O tamanho do original que li me pareceu bom, no formato Betty, ou seja, evitando calhamaços. Não acho que caiba acrescentar muita coisa.

O que você tem que fazer é resolver o final, talvez dar mais dramaticidade. Um forte lamento do Abu pelo colapso da mansão e o fim de Ada, com algum jeito de justificar sutilmente que ele não sabia que ia dar nisso. Ou então inserir sugestão, no corpo da narrativa, de que ele sabia ou desconfiava.

Premissa da onisciência ou capacidade de antecipação dos mortos é importante.

Ideal seria o livro sair agora. Atualíssimo com essas exacerbações de conflitos religiosos e nacionais pelo mundo, ainda mais agora com o trumpismo e nada menos que neonazistas entrando em cena. É história que se repete em versão piorada ‑ e mais a reiteração da cretinice de oligarquias brasileiras, das confirmações do nosso atraso.

Livro tem valor de parábola.

Beijos,

 

 

19 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Ok.

O Abu vai ter que perceber, no fim, que ele próprio foi culpado do que aconteceu com Baal e com a filha. Isso porque não deu a Ada as condições de que ela precisava para herdar o seu império; ele vai perceber que não fez isso porque foi vítima do preconceito contra a mulher.

Apesar de morto, ele não sabe tudo e é surpreendido pelo que ele mesmo conta.

Abu será surpreendido no final do relato como Seriema ao descobrir que havia escolhido o analista francês para continuar velada como o pai desejava.

Gostaria de saber o que você acha.

 

 

19 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Faça. Dramatize bem o capítulo final, tem que ser forte, o espírito de Abu a esboroar-se como o palácio, ambos uma coisa só – se fosse filme, ele desaparecia no ar feito fumaça ou explodia ou se metamorfoseava em outra coisa.

Beijos,

 

20 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Sim.

Ainda sobre os trechos com acréscimos importantes. Pode ser que já não comessem mais saúva grelhada no começo do século XX. Mas tenho certeza de que no século XIX os barões do café e companhia comiam.

Ada enlouquece quando a tiram do palácio.

 

 

20 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Mas os netos de Abu são da década de 1940. Quando se tornam adultos, 1960, é o encerramento da ação do livro.

Pode deixar isso um pouco mais claro, Ada ter enlouquecido?

Beijos,

 

 

20 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Ok.

Vou dizer que o neto de Abu teria comido saúva, assim os historiadores não pegam no meu pé.

Obrigada.

 

 

21 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Você diz que carro de playboy nos anos 60 era Ford Thunderbird. Será que você pode reescrever a sequência abaixo relativa a Andrew?

Thanks

“Comprava um depois do outro, Studebaker, Buick, Chevrolet.”

 

 

21 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Um trecho de A mãe eterna que dava epígrafe para Baal:

“Se os vivos falassem mais com os mortos, a vida seria melhor… O morto não escuta e não fala, porém o vivo fala por ele para responder a si mesmo. Com isso, é obrigado a imaginar uma resposta sábia. Um exercício teatral que ilumina a vida.”

Beijos,

 

 

22 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Cheguei à conclusão de que no capítulo 17, quando Abu e Amin desembarcam no Porto de Santos, termina a primeira parte. Indiquei, portanto, isso no texto novo.

Tenho que trabalhar bastante em Baal esta semana, porque na próxima o produtor do Neuras vai estar em Paris, e eu vou com ele indicar cenários possíveis para o programa “Sonho na Mesopotâmia”, nada menos do que o palácio de Sargon no Louvre.

Voilá,

 

 

 

 

 

22 de ago.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Ada terá que comparecer até o fim. Ela é a personagem central do subplot que desencadeia o plot principal e a narração de Abu. Agora está claro que tenho um plot e um subplot.

 

 

22 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ótimo.

Trechos sobre o sofrimento de Ada são suficientes, acho.

Que beleza, isso do programa de TV. Vai passar onde?

Beijos,

 

 

22 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Com os acréscimos, o subplot já está bem definido. Mais que isso, o relato de seus sofrimentos irá adquirir tom de dramalhão, ficará over.

Beijos,

 

 

31 de ago.

De: Claudio

Para: Betty

 

Como eu havia comentado, nesses acréscimos é necessário o senso de medida para não virar dramalhão familiar, igual a enredo de telenovela.

Saberei dizer quando reler o conjunto, novamente – em Psicologia, eu era Gestalt, primeira coisa que li de psicologia, depois de entrar na faculdade (além de Freud, é claro) em que achei que fazia sentido. Breton também gostava de Gestalt por causa das confusões de figura-fundo, das imagens que podiam ser uma coisa ou outra, mas eu soube disso recentemente.

O importante é fechar, reescrever o capítulo final. Estará então, a meu ver, pronto para edição. E quanto antes melhor, pela atualidade.

Você me mandou a tradução para o inglês do meu artigo sobre A mãe eterna. Apesar de haver feito uma pasta ‘Betty’, não acho.

Beijos,

 

 

11 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

A propósito de Baal, leia a troca de e-mails abaixo entre mim e Mathias ontem.

Na verdade, eu consegui reescrever o fim, mas estou relendo e não estou satisfeita.

Falaremos.

Beijos,

 

10 de set.

De: Betty

Para: Mathias

 

A crítica da Cristl ao Baal não me convence, mas eu me pergunto se o romance é arrebatador.

Ada precisaria ser mais demente.

Hoje eu fiz uma aula de ioga genial.

O professor se chama Martin.

Bisou de domingo

 

 

De: Mathias Mangin

Para: Betty Milan

 

Mãe,

Alguns aspectos da crítica são irrelevantes, mas não tenho como responder sem ler o texto integral.

Eu sempre te disse que o seu romance não pode se sustentar só com a questão da imigração (o passado), pois não é um romance de aventura (tipo Alexandre Dumas) que se baseia em peripécias. Você as trouxe (e fez bem), mas a questão psicológica é fundamental: tanto para os personagens passados (Uad, Abu, Saad, Salma etc.) quanto para os personagens da história presente. Afinal, o presente é o motivo pelo qual Abu conta a história.

Sim, grandes personagens em ambas as partes do romance são essenciais.

Você tem no mínimo dois: Abu (passado) e a filha (presente).

Mas, além disso, como o seu livro é um afresco, os outros personagens tem que ser profundos.

Quanto mais os personagens forem originais e aprofundados, mais arrebatador o seu romance vai ser…

Por exemplo, muitas vezes em filmes com elencos grandes, o fato de ter papéis secundários de grande qualidade (personagens originais, inimitáveis) torna o filme muito melhor…

Enfim, grandes obras são completas e atingem excelência em todos os seus aspectos. Estou disposto a ler.

Beijos,

Mathias

 

 

De Mathias

Para: Betty

 

Em meados/final de outubro, se você quiser, terei tempo.

Bjs 😉 ”

 

 

 

 

11 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Há uma interessante relação de complementaridade entre O papagaio e o doutor e Baal. Em um, a protagonista fala de antepassados emigrantes. No outro, é o próprio antepassado que fala.

Termine. Como eu disse, é da hora, metáfora, o final de um mundo que dá a impressão de desfazer-se.

Impressão de que traços adicionais melhoraram a caracterização de personagens secundários. Mas saberei dizer isso com certeza – e se não há redundância ou reiteração – ao ler o conjunto.

Beijos,

 

 

11 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Querido, a questão não é ter redundância ou reiteração.

A questão é arrebatar o leitor.

Eu não posso correr o risco de não fazer isso. No momento, estou terminando a décima nona versão e depois eu vejo se vou mudar a estrutura narrativa, reescrever a história inteira e se o final é bom.

Voilá,

 

 

11 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Décima nona versão? Mudar a estrutura? Pois eu acho que já estava bom. Repito: faltou só fechar, e isso dá para fazer. Há muitas possibilidades. E a narrativa está tão contemporânea, sob vários ângulos – das imigrações, da burguesia besta etc.

Beijos,

 

 

11 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

estou fazendo correções

a história que eu quero contar está escrita, mas eu só posso soltar o texto quando estiver pronto

não tenho mais pressa

mas do portfólio sobre O papagaio e o doutor eu preciso até o dia 15.

tem gente esperando

beijoca,

 

 

11 de set.

De: Claudio

Para: Betty Milan

 

Diga-me: para a edição alhures de O papagaio e o doutor vai também o posfácio da Michèle Sarde?

Acho importante, de muito boa qualidade, embora ela se detenha mais em uma das dimensões do livro, a questão de antepassados e migração, e haja outras. Para mim, é um livro polifônico e cruzamento bem-sucedido de gêneros.

Beijos,

 

 

 

24 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

Oba.

Você leu a sinopse que eu fiz sobre Baal?

Pode me dizer o que falta?

Amanhã eu termino o romance, ou melhor, a décima nona versão que já poderá ser lida por você.

Agora é pra valer.

Beijoca,

 

 

24 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

A sinopsede Baal está bem. Mas será que não está muito interpretado? Você resume e já explica.

Beijos,

 

 

24 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

não sei exatamente como deve ser a sinopse

me parece que, para a imprensa, é preciso explicar

mas veremos isso mais adiante

beijoca,

 

 

24 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Talvez já dirija a interpretação de algo que possibilita muitas leituras.

Beijos,

 

24 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Seria bom você me dizer que informações devem entrar na sinopse e eu ainda não pus.

Beijoca,

 

 

24 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Tire o último parágrafo da sinopse, está sentencioso. Diga que através das rememorações de Abu é relatado como se vivia no Líbano do final do século XIX e no Brasil ‑ especialmente São Paulo. Fale da transição da Monarquia para a República. Como os mascates ‘turcos’ fizeram para sobreviver e enriquecer. Mencione os personagens colaterais e secundários ‑ o empregador de Abu, a filha, os netos.

Beijos,

 

 

25 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho

Veja que legal o e-mail do Mathias abaixo. Estou acabando a última versão e daí eu penso nas observações do Mathias que me parecem muito pertinentes.

 

24 de set.

De: Mathias Mangin

Para: Betty

 

Mãe,

Seguem algumas ideias que me vieram ao ler o lindo livro do Bulgakov e que de certa forma tem a ver com o seu livro. Pelo fato de você ter esse fantasma, de ter essa história dupla…

 

– Transição entre o passado (Abu emigrante) e o presente (vida de Ada e familiares contada por Abu) pode ser enriquecida com sonhos como no livro de Bulgakov. Por exemplo, Ada ou os netos sonham com algo que o Abu fez e você pode transitar entre passado e presente assim. Bulgakov faz com que um dos personagens do presente sonhe com o passado de Jesus e Pôncio Pilatos;

– A alusão aos deuses do Egito no seu livro poderia crescer um pouco. No livro do Bulgakov, a estória de Jesus dá uma dimensão mítica ao texto, onde bem e mal estão implicitamente vinculados! Acho que você pode trabalhar isso, não precisa aparecer tanto quanto no livro do Bulgakov, mas talvez uma ou duas vezes. Talvez o Abu pelo fato de ser fantasma pode ter alguma visão desse deus… não sei… ou algum personagem do presente pode sonhar com esse deus egípcio;

– A presença do clima no livro do Bulgakov dá uma grande força ao texto: tempestades, descrição do horizonte, das nuvens sobre a cidade de Moscou, da lua, da chuva molhando os personagens, isso humaniza todos, cria uma inclusão do passado e do presente, dos homens e dos demônios na mesma condição universal;

– A presença dos cheiros, perfumes de plantas e árvores dá uma relação sensorial ao livro que é muito linda;

– As curtas descrições de algumas praças ou ruas de Moscou (deve ter basicamente uns 4/5 lugares) que voltam ao longo do livro e dão essa sensação de familiaridade ao leitor, de progressivamente estarmos num lugar que conhecemos… achei muito legal. E visualizei isso bem no seu livro, descrição curta da 25, de alguma praça do Centro, das árvores da Paulista, da rua do palácio;

– A relação de Pôncio Pilatos com o seu cachorro é muito bonita; o livro termina com o cachorro seguindo Pôncio Pilatos e Jesus… tem uma cena linda em que o cachorro deita ao lado de Pôncio Pilatos e só consegue dormir quando o dirigente romano coloca a mão nos olhos do cachorro, bicho amedrontador e forte que venera seu mestre;

– O final, como muitos finais lindos, termina num sopro de vida, ou seja, as coisas continuam! E claro, como são dois núcleos de estórias, o final desse livro unifica as duas estórias muito bem: unifica narrativamente, além de simbolicamente.

Beijão,

Mathias”

 

 

25 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sonhos? Pode ser, mas, do jeito como a narrativa está, talvez sobrecarregue. Deuses do Egito? Da Fenícia, me parece. Com o restante – clima, cheiros, lugares descritos – concordo 100%, já havia observado, são os detalhes que conferem verossimilhança e envolvem mais o leitor.

Beijos,

 

 

26 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

eu tenho uma tendência a não distinguir e-migrante de i-migrante

na língua falada a gente não distingue

como você vê isso

 

 

26 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Distingue sim. Lá, Abu foi um emigrante. Aqui, um imigrante.

Os imigrantes chegaram em aviões.

A família real portuguesa imigrou para o Brasil.

Os emigrantes partiram em aviões.

A família real portuguesa emigrou de Portugal.

Beijos,

 

 

26 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Você quer dizer que na língua falada a gente distingue?

Acho que não.

Mas devo distinguir no romance.

 

 

26 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

O certo é distinguir. Se não, é erro, assim como dizer que ‘assistiu um filme’ e não ‘assistiu a um filme’. Não é língua falada, porém rebaixamento da norma culta. Vamos ensinar o povo a ler.

Beijos,

 

 

27 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Veja o parágrafo abaixo.

Onde você usaria o ‘imigra’ e onde o ‘emigra’.

Não é nada óbvio.

 

“Quem imigra não tem uma personalidade só. Com os do país natal, é um. Com os do país da imigração, outro. Os da aldeia eram meus cúmplices. Para os descendentes, quisesse ou não, eu era um estrangeiro. Podia ser o ancestral… a cultura daqui era outra e, para transmitir a de lá, eu teria tido que me esforçar. Não fiz isso. Você larga do país natal e depois, para voltar a ele, prefere ficar com os conterrâneos e se afasta dos descendentes. Você imigra e perde o país… faz uma família que você estranha. Nenhum dos meus quis saber como era a vida na aldeia.”

 

 

27 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Quem emigra = quem saiu de lá.

Beijos,

 

 

27 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Você me disse, possivelmente com razão, que Abu não fala a língua falada.

Saberia me dizer que língua ele fala?

A propósito, mudei o nome do herói que agora se chama Omar.[9]

Falaremos,

 

 

27 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Língua de quem está tentando contar uma história, do modo mais claro possível, usando aquele idioma português/brasileiro que aprendeu aqui.

Penso que o modo de expressar-se dele no dia a dia é irreproduzível.

Por que trocar de nome? Abu é um bom nome.

Beijos,

 

 

27 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

Abu é ótimo

mas vai afastar quem não gosta de árabe

Omar também é bom, significa longevo, rico e é homem do mar

poeta não precisa trocar de nome

romancista precisa, salvo quando se chama Joyce ou Bulgakov

voilá,

beijoca,

 

 

27 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Quem não gosta de árabe não interessa como leitor…

Beijos,

 

 

29 de set.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Favor ler esta versão da sinopse do Baal.

 

29 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Acho que está muito bem.

Mas coloque algo sobre a narrativa: como era a vida lá, na terra de origem; e aqui, naquele tempo.

Beijos,

 

 

29 de set.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ponha que há dois planos da narrativa: um, da atualidade ou permanência dos conflitos; outro, de como era a vida naquele tempo.

Beijos,

 

 

2 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Mathias me fez ver que a sinopse não estava boa. Me enviou um texto que os cineastas usam para o pitching. Reescrevi a sinopse que eu envio junto com o pitching. Amanhã eu vou ler o seu portfólio do Papagaio.

 

 

2 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Interessante!

Estudarei o pitching.

Beijos,

 

 

12 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

Envio agora a última versão de Baal ‑ eu havia me enganado, leia esta por favor. No primeiro capítulo, eu deixei duas frases em vermelho. Tenho dúvidas em relação a elas. Me diga o que acha.

 

 

13 de out.

 

De: Claudio

Para: Betty

 

Duas frases em vermelho?

Achei uma:

“Assim pelo menos a história de um imigrante será contada. Cada um é um, mas a vala comum da imigração é o destino de quase todos.”

Me parece bem, mas vou ler tudo. Deixa eu chegar à famosa visão de conjunto, aí eu digo se está redundante.

Beijos,

 

 

13 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

Querido

Provavelmente não tem redundância.

Deve sentir falta de algo, porque eu não escrevo como o Kerouac ‑ infelizmente.

Vou construindo lentamente.

Beijoca,

 

 

13 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Kerouac?

Escrevia rapidamente sim. Mas refez quatro vezes On the Road, entre 1952 e 1956. Inventou que foi imposição de editores. Coisa nenhuma, foi decisão dele. E mesmo o manuscrito original reaproveita prototextos, anotações de viagem que estão em seus diários.

Doctor Sax, obra-prima da memorialística – “Dreams and memories are intermixed in this mad, mad world”. Ele começou a anotar em 1948, escreveu em 1952 em alguns dias trancado no toalete da casa de William Burroughs, na Cidade do México. Refez para publicação em 1958. E por aí afora.

Beijos,

 

 

13 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

O que você diz significa que estou em boa companhia. Agora, o legal é que eu me apaixonei por Baal e posso fazer mais, assim que eu tiver acabado de transcrever a entrevista da Elisabeth Roudinesco. Para ela, a sessão curta deve ser banida, ou seja, o tempo lógico não passa de um capricho de Lacan.

Pensar que ele passou a vida insistindo na diferença entre o tempo lógico e o cronológico…

 

 

13 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Fazer mais?

Peraí: curto é qualidade.

Beijos,

 

13 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

o meu texto precisa de mais cor

acabo de ver os retratos que o Derain fez do Matisse

vou me inspirar neles para colorir Baal

 

 

15 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Muito bem!

Imprimi, li. A última versão.

Ficou consistente.

Anotei mínimos detalhes. Agora o protagonista é Omar, mas em duas ocasiões ainda é Abu (acho que tanto faz, os dois nomes são bons).

Mas vou reler, comparar com a versão anterior, embora evidentemente tenha ganho com acréscimos e descrições adicionais. Certificar-me de que apresentar as vilanias de Andrew logo no início não reduz a tensão dramática. E se não há didatismo nas reflexões com autocrítica de Omar.

Beijos,

 

 

15 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

O protagonista é Omar, nome árabe que remete a ‘homem do mar’ e que foi cristianizado. Assim, os preconceituosos terão menos preconceito. Se o nome Abu ficou, precisa ser corrigido (trata-se agora de erro).

Omar agora está se tornando mais imaginativo (sonhos, imagens líricas) e com isso ele ganha força.

As vilanias de Andrew são necessárias, o romance é desencadeado por elas.

Vou ver a questão do dinamismo.

Ufa, estou cansada.

 

 

15 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Por favor não releia ainda.

Estou fazendo as últimas pequenas modificações.

Du calme!

Devo terminar em alguns dias.

Beijoca,

 

 

16 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Será que você poderia me enviar o texto na versão digital com as suas observações em vermelho?

Assim eu já integro a esta última versão que estou fazendo.

Depois Celina imprime para a sua última leitura.

Obrigada,

 

 

16 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Pouca coisa – detalhes.

Marquei também algo de que gostei mais, prosa poética.

Beijos,

 

 

 

 

 

 

29 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Eu podia ainda melhorar os seis últimos parágrafos. O que acha?

Por favor, leia antes da segunda-feira.

Obrigada,

Beijoca,

 

“O nome do crime eu ignoro… contra o avô, contra a mãe, contra o irmão, contra… como se nós pudéssemos desperdiçar o parente, o patrimônio, a história… nós que só não perdemos o que já está perdido. O nome do crime talvez seja desperdício, fazer pouco do que o outro fez – como se o esforço não contasse e, a cada nascimento, a história começasse do zero. Antes de mim, não houve nada. Depois, pouco me importa.

Na aldeia, uns contra os outros. Na família, foi o descaso de uns pelos outros, porque eu me entreguei à paixão do ganho e, sem perceber, ensinei os meus a valorizar o dinheiro acima de tudo.

A mãe um dia me disse: «– Quem é você para ter um palácio? Um filho de aldeões…» Aldeão hoje, amanhã e sempre? Não há de ser assim. Maktub não é para quem emigrou e correu o risco de morrer na travessia. Com justa causa, eu fiz o possível para deixar de ser pobre. Porém, daí a construir um palácio «que deixava os grandes do Oriente e do Ocidente boquiabertos»… Não era preciso. Nada reluz mais do que o sol, a lua, as estrelas… Baal foi ostentação. O palácio que Omar construiu, se você visse! A última festa de Ada… impossível imaginar o luxo! Quis tanto esquecer a pobreza que ensinei o esquecimento… o primeiro memoricida da família fui eu.

Ada não foi vítima só do marido e do filho. Dib fez pouco da esposa, Andrew da mãe e eu da filha, me servindo dela para realizar um desejo meu. Ada será a princesa de Baal para que Omar possa se esquecer do que foi. Me vali da querida para me servir, em vez de fazer dela a sucessora, a que poderia transformar Baal num memorial da travessia, um espaço onde a jura de Hani ressoaria sempre. «Juro que nenhum dos meus se deixará vencer pelo ódio, nenhum se entregará a atos ou palavras capazes de cegar o próximo».

O fato é que, lamentavelmente, eu não passei o bastão. Por Ada ser mulher. Mas não só. Imaginei que não fosse mortal. Uad caiu nas mãos do exército inimigo, eu escapei. Amin morreu na hospedaria, a febre amarela não me atingiu. Saad deu um tiro na cabeça, eu herdei os bens dele… Sempre disse que não temia a morte, porém nunca acreditei que ela pudesse chegar. Não sei se alguém acredita. Quando se trata do fim, a gente diz não é comigo. Não deixa de ser uma forma de resistir às intempéries.

Ada, você já não está, como Íris e como eu. O palácio ruiu porque nós somos contrários a nós mesmos. Baal foi o deus do céu mas também do inferno… o deus da fertilidade, mas também um deus terrível… foi Marcodés e foi Hammon. Ajoelhei diante dos dois.”

 

 

30 de out.

De: Claudio

Para: Betty

 

Ufa, voltou a conexão.

Sim, quanto mais ênfase e dramaticidade no final tanto melhor, está algo breve.

Até já.

Beijos,

 

 

31 de out.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Consegui ler as suas observações e eu agradeço por mais esta leitura.

Fiquei com algumas dúvidas que estão abaixo. Para você não ter que se cansar, basta responder depois do R.

Aguardo as suas respostas para corrigir o texto e as informações sobre Baal, a fim de ver se consigo inserir no fim. Nem tudo a gente consegue.

Beijoca,

 

Capítulo 1

Por causa do esquecimento, o passado não para de se repetir, a guerra. Preciso me opor a isso, rememorar os fatos. Assim pelo menos a história de um imigrante será contada. Nada é pior do que a vala comum da imigração.

Está bom assim? R:

 

Capítulo 4

Os palacetes, que pertenciam aos barões do café e aos industriais, foram sendo substituídos por prédios.

Qual é o problema? R:

 

Foi um caso meu.

Não sei que palavra usar ‑ relação não dá, amante não se dizia. R:

 

Capítulo 5

O bicho passava por três mudas até o ovo, a lagarta e a pupa, antes de se tornar adulto e secretar a baba, o fio da seda, o nosso ouro.

Está bom assim? R:

 

Capítulo 14

Para me salvar eu sonhava sempre com Íris. Às vezes, ela se multiplicava no meu sonho. Não era uma lua que eu via, era uma constelação de luas douradas. Não fui embora da aldeia sem levar a bela comigo.

Qual é o problema na última frase? Devo substituir bela por Íris? R:

 

Capítulo 15

Deixei Hani com metade do que eu havia economizado. Precisava garantir a sobrevida dela para suportar a separação. Por entender isso, a mãe não recusou o dinheiro.

Está bem assim? R:

 

Capítulo 17

Por causa da divisa de Henrique VIII, do quem me vê me reconhece, não foi possível apresentar Andrew para quem quer que seja. Injuria a pessoa que toma a iniciativa de fazer a apresentação. Como pode ser tão vaidoso?

Qual é o problema aqui? R:

 

Capítulo 18

O risco de naufragar nós não corríamos como quem entra num barco para atravessar o oceano.

Qual é o problema aqui? Como deveria ser? R:

 

Capítulo 20

Para ela, nós éramos tão estranhos quanto ela para nós. Só que havia algo em comum. Não sabíamos o que era ser comprado ou vendido como uma mercadoria. Abre a boca, mostra os dentes, vale oitocentos. Quanto me oferece? Quem dá mais? Não estávamos sujeitos ao açoite, ao uso de uma corrente nos pés ou às marcas com ferro em brasa, mas sabíamos o que era correr o risco de ser caçado como um animal e ser obrigado a se expatriar.

Você estranhou o que eu escrevi acima. R:

 

Capítulo 28

Você me perguntou na página 140 se o Omar ficou analfabeto até o fim. Não, ele aprendeu a escrever em português, mas isso acontece depois de pedir para o vizinho escrever a carta.

O que acha? R:

 

 

 

1 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Seguem as respostas.

Beijos,

 

Capítulo 1

Por causa do esquecimento, o passado não para de se repetir, a guerra. Preciso me opor a isso, rememorar os fatos. Assim pelo menos a história de um imigrante será contada. Nada é pior do que a vala comum da imigração.

R: Está bom, mas pode ser também: ‘Por causa do esquecimento, o passado não para de se repetir, a guerra. Preciso me opor a isso, rememorar os fatos.’ – tout court, há relatos de imigrantes.

 

Capítulo 4

Os palacetes, que pertenciam aos barões do café e aos industriais, foram sendo substituídos por prédios.

R: OK, mas os prédios são erguidos a partir da década de 1950, depois do tempo de vida do Omar.

 

Foi um caso meu.

Não sei que palavra usar ‑ relação não dá, amante não se dizia.

R: Continuo na dúvida… ‘caso’ me parece tão década de 1960. ‘Amante’ dizia-se sim.

 

Capítulo 5

O bicho passava por três mudas até o ovo, a lagarta e a pupa, antes de se tornar adulto e secretar a baba, o fio da seda, o nosso ouro.

R: Sim, está bom.

 

Capítulo 14

Para me salvar eu sonhava sempre com Íris. Às vezes, ela se multiplicava no meu sonho. Não era uma lua que eu via, era uma constelação de luas douradas. Não fui embora da aldeia sem levar a bela comigo.

R: Sim, substitua bela por Íris.

 

Capítulo 15

Deixei Hani com metade do que eu havia economizado. Precisava garantir a sobrevida dela para suportar a separação. Por entender isso, a mãe não recusou o dinheiro.

R: Sim, está bom.

 

Capítulo 17

Por causa da divisa de Henrique VIII, do quem me vê me reconhece, não foi possível apresentar Andrew para quem quer que seja. Injuria a pessoa que toma a iniciativa de fazer a apresentação. Como pode ser tão vaidoso?

R: Por que o Henrique VIII especificamente, houve tantos absolutistas…

 

Capítulo 18

O risco de naufragar nós não corríamos como quem entra num barco para atravessar o oceano.

R: Pensando bem, relendo, está bem.

 

Capítulo 20

Para ela, nós éramos tão estranhos quanto ela para nós. Só que havia algo em comum. Não sabíamos o que era ser comprado ou vendido como uma mercadoria. Abre a boca, mostra os dentes, vale oitocentos. Quanto me oferece? Quem dá mais? Não estávamos sujeitos ao açoite, ao uso de uma corrente nos pés ou às marcas com ferro em brasa, mas sabíamos o que era correr o risco de ser caçado como um animal e ser obrigado a se expatriar.

R: Relendo, me parece bem. Ou a segunda frase é redundante?

 

Capítulo 28

Você me perguntou na página 140 se o Omar ficou analfabeto até o fim. Não, ele aprendeu a escrever em português, mas isso acontece depois de pedir para o vizinho escrever a carta.

R: Ah, entendi. Observar em algum lugar – se bem que cortar todo esse trecho não prejudica, acho.

 

 

1 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Vou fazer mais uma releitura nestes feriados.

Pelo seguinte: como está mais extenso, vou prestar mais atenção se não há repetição, algo que possa ser cortado.

Beijos,

 

 

2 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Pensei no seu comentário sobre o romance.

  1. a) A rememoração que Omar faz, nenhum idoso poderia fazer ‑ como você sugeriu. Porque a rememoração do Omar é a de quem conta uma história. Uma história cuja duração é de cem anos.

 

  1. b) Omar não tem a memória de um ser idoso, mas de um espírito clarividente que, por rememorar, tem um insight novo sobre a história.

 

  1. c) Omar enxerga o futuro porque ele sabe que, se não houver rememoração, haverá repetição. Ou seja, guerra.

 

  1. d) Nenhum vivo rememoraria como Omar ‑ ele é, portanto, um ser imaginário.

 

Voilá,

 

 

2 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Sim, um idoso de 100 anos, inclusive, já temos o de García Marques, de Cem anos de solidão.

Embora o modo de Omar recordar me pareça de um idoso também… Mas o morto, no caso, é literariamente mais funcional.

Beijos,

 

3 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

e então, Claudio

esqueceu de me mandar os dados sobre o deus Baal

Bárbara leu os originais e fez algumas sugestões ótimas

amanhã eu te conto

beijoca,

 

 

4 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Não, não esqueci….

Curioso como tem pouca informação sobre Baal. Na minha biblioteca sobre mitologias, não acho.

Aguarde a sinopse do livro.

Beijos,

 

 

 

 

 

 

6 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Que dificuldade em pesquisar o deus Baal. Como são escassos os registros. Maior parte sob a ótica judaico-cristã, identificando-o a Belial, o diabo.

Continuarei procurando.

Avanço na sinopse e ‘overview’ de Baal, acho que hoje completo.

Beijos,

 

 

6 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Ok, Claudio.

Eu estou avançando ainda no romance.

Mathias e Bárbara fizeram sugestões que precisam ser levadas em conta.

Me mande o que você tiver de Baal, porque eu não vou escrever um tratado.

Sei, por exemplo, que Baal instigou Nero a incendiar Roma, mas isso eu não posso colocar no romance.

O Omar não sabia isso.

Beijoca,

 

 

6 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Claro.

Mas o arquiteto ou o artista que fez o vitral de Baalbek pode ter contado para ele.

Interessante, Baalbek/Heliópolis fica no Vale do Beka, entre as montanhas do Líbano, as ruínas estão lá. Não seria próximo à terra de onde veio Omar?

 

 

6 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Olha… o pai da minha mãe, que inspirou Dib, veio de Baalbeck. Hoje mesmo ela me disse que era a terra do pai dela.

Omar supostamente veio de Zahle. Isso tudo é no vale do Beka.

Mas, na verdade, não importa.

Beijoca,

 

 

7 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Mas suas eventuais modificações não seriam a ponto de obstar eu prosseguir na sinopse, não é?

Já sigo o modelo das anteriores, em ‘overview’, ‘leitores em potencial’ e tal.

Beijos,

 

 

7 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Acho que não obsta.

São aprofundamentos dos personagens.

Vai implicar uma última leitura.

Envie as informações que tiver sobre Baal, isso é o mais importante.

Se não, tenho que pedir para outra pessoa fazer. Não gostaria.

Obrigada,

 

 

 

7 de nov.

De: Claudio

Para: “Betty

 

Pode deixar.

É que cristãos e judeus demonizam Baal. Acham que é Belial, o demônio.

Beijos,

 

 

7 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

mas é isso mesmo, é deus e demônio

eu preciso dos dois.

obrigada,

 

 

7 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Problema ‑ após pesquisar um bocado ‑ é que Baal não é um deus, é um designativo, ‘Senhor’, aplicado a deuses. Personificação é judaica, bíblica, abrangendo tudo o que eles reprovavam. Hammon, sim, é um deus da fertilidade. Tamus, ora filho, ora marido de Ishtar/Astarté, é um Baal.

Aguarde mais.

Beijos,

 

 

7 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Fenícios, cananeus e, depois, cartagineses chamavam seus deuses de “Baal”, “Senhor”. Ou seja, todos são Baal.

Hebreus tiraram daí o Belial, corruptela de Baal, e o Belzebu, Baal – Zebu.

Beijos,

 

 

8 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

na Wikipedia tem muito mais

já são dias que você faz a pesquisa e só encontrou isso

 

 

8 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

No meio digital tem uma bagunça provocada pelos protestantes, que seguem a Bíblia ao pé da letra, tomam-na como fonte histórica. Afeta inclusive o verbete da Wikipédia. Melhores fontes, no caso, são a Brittanica e a London Encyclopaedia, que eu examinei mas não permitem cópia.

Baal é mesmo genérico, significa ‘Senhor’ no idioma cananeu. Por isso não se acha em meus livros de mitologia. Hebreus o personalizaram. Os deuses fenícios seriam Moloch e Dagon, entre outros. Hammon é deus cartaginês. Baal Hammon significa ‘Senhor Hammon’. São deuses da fertilidade.

Anexei também algo abaixo para facilitar sua leitura. Há mais, porém, redundante:

 

A palavra Baal tem vários significados. Pode significar ‘Senhor’, ‘Proprietário’, ‘Mestre’ e ‘Marido’. Pode ser usada tanto para humanos com certa autoridade quanto para divindades. Na verdade, Baal é um título (Senhor), assim como a palavra hebraica ‘Adonai’, que também significa ‘Senhor’. Era utilizada para se referir à divindade israelita Jeová. Provavelmente os israelitas escolheram chamar Jeová de ‘Senhor’ usando a palavra ‘Adonai’, justamente para diferenciar a divindade (Jeová) das outras inúmeras divindades, que também eram chamadas de ‘Senhor’, só que usando a palavra ‘Baal’. Pode-se até inferir que, em dado momento, o próprio Jeová tenha sido chamado/entendido como sendo ‘Baal’, uma vez que Jeová em Israel já fora identificado com a divindade canaanita ‘El’, e se apropriado de atributos que eram dela, como ‘Pai de todos os deuses’ e ‘Pai dos homens’ etc. Jeová também incorporou, posteriormente, elementos como fertilidade, chuva, controle do tempo, que eram características de Baal Hadade.

 

Baal-Hamom: a origem desta divindade é incerta. O erudito bíblico Frank Moore Cross atribui sua origem à Montanha Amanus, na Síria. Inscrições encontradas na Fenícia identificam um deus chamado ‘El-Hamom’; possivelmente Baal-Hamom e El-Hamom eram a mesma divindade. Este deus foi amplamente venerado na cidade de Cartago, no V século A.C. Na Bíblia, Baal-Hamom é citado como um lugar onde o Rei Salomão possuía um vinhedo.

 

Originalmente, o deus semita Hadad ‑ também chamado de Baal ‑ foi venerado por arameus que levaram o seu culto a outras partes do Mediterrâneo. A prática do culto a Baal infiltrou a vida religiosa judaica durante o tempo dos juízes (Juízes 3:7), tornou-se comum em Israel durante o reinado de Acabe (1 Reis 16:31-33) e também afetou Judá (2 Crônicas 28:1 -2). A palavra Baal significa ‘senhor’; o plural é Baalim. Em geral, Baal era um deus da fertilidade que, de acordo com a crença comum, permitia que a terra produzisse colheitas e pessoas produzissem crianças. Diferentes regiões adoravam Baal de maneiras diversas, e ele provou ser um deus altamente adaptável. Várias localidades enfatizavam um ou outro de seus atributos e desenvolveram ‘denominações’ especiais do Baalismo. Baal-Peor (Números 25:3) e Baal-Berite (Juízes 8:33) são dois exemplos de tais divindades.

 

 

Segundo a mitologia cananeia, Baal era o filho de El, o deus principal, e Asherah, a deusa do mar. Baal era considerado o mais poderoso de todos os deuses, eclipsando El, que era visto como bastante fraco e ineficaz. Em várias batalhas, Baal derrotou Yamm, o deus do mar, e Mot, o deus da morte e do submundo. As irmãs/consortes de Baal foram Ashtoreth, uma deusa da fertilidade associada com as estrelas, e Anate, a deusa do amor e da guerra. Os cananeus adoravam Baal como o deus do sol e como o deus da tempestade ‑ ele geralmente é representado segurando um relâmpago ‑ que derrotava inimigos e estimulava a colheita. Eles também o adoraram como um deus da fertilidade que providenciava crianças. O culto a Baal estava enraizado na sensualidade e envolvia prostituição ritualística nos templos. Às vezes, para apaziguar Baal, necessitava-se do sacrifício humano, geralmente o primogênito de quem fazia o sacrifício (Jeremias 19:5). Os sacerdotes de Baal apelavam ao seu deus em ritos de abandono selvagem que incluíam gritos de êxtase e ferimentos autoinfligidos (1 Reis 18:28). Antes de os hebreus entrarem na Terra Prometida, o Senhor Deus os advertiu contra a adoração dos deuses de Canaã (Deuteronômio 6:14-15), mas Israel voltou-se à idolatria de qualquer maneira. Durante o reinado de Acabe e Jezabel, no auge do culto a Baal em Israel, Deus confrontou diretamente o paganismo por meio do profeta Elias. Em primeiro lugar, Deus mostrou que El, não Baal, controlava a chuva através do envio de uma seca que durou três anos e meio (1 Reis 17:1). Então Elias convocou um confronto no Monte Carmelo para provar de uma vez por todas quem o Deus verdadeiro era. Durante todo o dia, 450 profetas de Baal pediram ao seu deus para enviar fogo do céu ‑ certamente uma tarefa fácil para um deus associado com relâmpagos – mas “não houve voz, nem resposta, nem atenção alguma” (1 Reis 18:29). Após os profetas de Baal desistirem, Elias fez uma oração simples, e Deus respondeu imediatamente com fogo do céu. A prova foi esmagadora, e o povo “caiu de rosto em terra e disse: O SENHOR é Deus! O SENHOR é Deus!” (Versículo 39).

 

Baal é descrito como um deus semita e era adorado pelos cananeus e fenícios. Significa ‘o senhor’, que deliberou sobre os altos deuses montados sobre o santo monte do céu. Baal era principalmente um deus do sol, chuva, trovões, fertilidade e da agricultura e, em algum momento, ele ultrapassa o deus da água, Yam. Baal é o filho do deus Dagan ou Dagon, outro deus cananeu/semita. Foi este ‘deus do grão’ que permitiu a Baal ser renascido.

 

 

8 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho, obrigada.

Estou submersa, mas logo trabalharei nisso.

Beijoca,

 

 

9 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Vem mais informação. Consultei um expert, mas deve corroborar. Povo da Bíblia toma mito histórico por relato histórico, o que confunde de todo modo. Omar pode figurar a divindade que quiser.

Beijos,

 

 

10 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Meu amigo erudito, que tem biblioteca melhor que a minha sobre história das religiões, não achou nada de adicional sobre Baal.

Como vai a reescritura/alteração? É que estava avançando na sinopse e queria saber se muda algo substancialmente. Se o sentido da obra continua o mesmo…

Beijos,

 

 

10 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudio

Tenho duas leituras a considerar, a do Mathias e a da Bárbara.

Quero discutir com a minha amiga psiquiatra o personagem da Ada, cuja loucura pode crescer.

Mas no momento está difícil escrever, porque eu tenho que resolver coisas práticas.

Logo vou para a Bahia e lá eu me concentro.

Vai que vai,

 

 

10 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Definir melhor a loucura de Ada é uma boa ideia.

Então aguardo eventuais modificações ou não? Sobre enredo, saga de imigrantes, tudo isso se mantém…

Continuo achando que, pela atualidade, quanto antes Baal for para publicação melhor. Antes que o mundo acabe ou que sobrevenha alguma catástrofe ainda pior. Parece que os da Arábia Saudita têm planos de entrar em guerra com o Líbano ‑ era só o que faltava.

Outra coisa, mexi em alguma coisa em meu livro de crônicas, agora chega. Não quero que fique grande. Prospecção de editores, você me ajuda?

Record é boa opção.

Beijos,

 

 

 

 

13 de nov.

De: Claudio

Para: Betty

 

Amigo meu a quem pedi que verificasse Baal no Mircea Eliade, de vários volumes, respondeu-me:

 

“Com relação a Ball, nos tomos da obra História das Crenças e das Ideias Religiosas, só existe menção no Índice Analítico e Onomástico (de todos os quatro volumes) no Tomo I, volume I. Nos demais não há referência. A primeira referência é na mitologia ungarítica §§49-51.

A primeira referência a Baal está na p. 182, e diz que El, o chefe do panteão ungarítico, fecundou duas mulheres Asherat e Anat. Asherat. ‘Mãe dos deuses’ deu à luz 70 filhos. Com exceção de Baal, todos os deuses descendem do casal primordial.

E continua no parágrafo seguinte dizendo que essas duas esposas de El lhe são tomadas por Baal. El seria um deus ‘otiosus’. Na página seguinte, outra referência: “Baal é o único deus que, mesmo estando incluído entre os filhos de El (já que este era o pai de todos os deuses), é denominado de ‘filho de Dagan’, cujo nome quer dizer ‘grão’. O substantivo comum Baal (‘Senhor’) tornou-se seu nome pessoal. Ele tem também um nome próprio, Haddu, isto é, Hadad. É chamado de ‘Cavalgador das nuvens’, ‘Príncipe, Senhor da Terra’.

Numa nota de rodapé: é possível que Baal, filho de Dagan, tenha sido introduzido pelos Amoritas.

 

Na p. 216, há mais uma referência a Baal: “Após a associação Javé-El, os santuários pré-javistas pertencentes ao culto de El (…) são dedicados a Javé. Mais surpreendente é a confusão que se fazia, na época dos juízes, entre Javé e Baal. Encontram-se nomes compostos com baal mesmo em famílias de renomada fé javista. O famoso Gedeão chama-se também Yerubbaal, ‘Baal combate’. O que pressupõe que o vocábulo baal era entendido como um epíteto de Javé, ou então que Baal era venerado ao lado de Javé. No começo, Baal teve de ser aceito como ‘deus da região’, o verdadeiro especialista em fecundidade. Só mais tarde foi execrado e tornou-se a forma irretocável da apostasia.”

 

Ou seja, para Eliade, Baal seria mesmo o que Omar quiser que seja.

Beijos,

 

 

 

29 de nov.

De: Betty

Para: Claudio

 

C

Preciso engordar um pouco uma passagem do texto em que o Omar diz: “lá não se joga nada fora, ao contrário daqui”.

Será que você me dá exemplos de desperdício no Brasil?

Ficarei grata.

 

 

 

29 de nov.

De: Claudio

Par: Betty

 

Desperdícios? O próprio destino dado ao lixo… os lixões a céu aberto, o de Vila Guilherme durou até a década de 1970, mau cheiro em toda a Zona Norte de São Paulo. O século XIX era esgoto a céu aberto, nenhum saneamento.

No tempo da demolição de Baal, os rios Pinheiros e Tietê já absolutamente poluídos.

A devastação ambiental, derrubada geral de árvores no Vale do Rio Paraíba ‑ Omar poderia lembrar de lugares verdejantes por onde passou e agora não há mais nada.

Eu ia sugerir isso, conectar mais a impressão de país atrasado de quando ele chegou ‑ apesar de vir de uma sociedade arcaica, estruturada em clãs ‑, com o mau comportamento da burguesia recente, tudo assimilado por Andrew.

Mas não amplie muito ‑ fazer uma narrativa histórica que não seja enorme é uma qualidade.

Beijos,

 

 

2018

2 de jan.

De: Claudio

Para: Betty

 

FELIZ 2018, em primeira instância.

Diga-me o que achou da sinopse de Baal.

Fico ainda na dúvida: a menção ao anjo da história de W. Benjamin, se cabe aí ou em um ensaio ad hoc.

Veja abaixo algumas observações adicionais sobre Baal.

Ainda estou usando lan house, com alguma dificuldade de conexão.

Não esqueça minha prescription.

Beijos,

 

Baal ganhou corpo. Tem prosa de qualidade. Acredito que envolverá leitores ou que leitores se envolverão. Eu teria uma percepção mais clara e me surpreenderia mais com a originalidade do enredo, se não tivesse lido versões anteriores. Mas observo:

CONSISTÊNCIA ‑ p. 92, Dib, pela ação de José, não apenas deu desfalque, mas quebrou a empresa deixada por Omar. Em outras passagens, Andrew dilapida o patrimônio deixado por Omar. Penso que de duas uma: se Dib + José tivessem feito esse estrago todo, não haveria mais nada para Andrew dilapidar. Acho que não precisa nem de uma nem de outra informação. Andrew é ganancioso, destruidor, quer negociar o terreno de Baal e apropriar-se da grana e ponto. É capaz de fazer isso independentemente da extensão de seu rombo financeiro.

REPETIÇÃO ‑ O sofrimento de Aixa é descrito repetidas vezes – acho que está ‘over’. Vilania de Andrew, também.

FRASES – Há algumas frases (poucas) que sobram, se retirá-las o relato não perde nada. Marquei no texto, além de mais alguns detalhes.

 

 

4 de jan.

De: Claudio

Para: Betty

 

Veja minhas observações e nos falamos.

Tem bastante a respeito do simbolismo das ruínas no livro do Gustav R. Hocke sobre maneirismo, mas este eu ainda não consegui desencaixotar.

Beijos,

 

 

4 de jan.

De: Betty

Para: Claudio

 

Claudinho, as suas observações são como sempre pertinentes. Vou fazer uma última leitura em voz alta e considerar o texto terminado.

A sua colaboração foi essencial.

Thanks.

________________

[1] Abu (em árabe, pai) é o primeiro nome dado ao protagonista. Em setembro de 2017, passou a ser definitivamente Omar (em árabe, longevo, rico e homem do mar).

[2] Ada (em árabe, lugar de delícias, ornamento, beleza) é o primeiro nome dado à filha de Omar, que passou a ser Aixa (em árabe, a que está viva, cheia de vida) na versão definitiva do romance.

[3] Andrew, Francis e Roxane são os três netos de Omar. Na versão final do romance, o nome Andrew se tornou Henrique; o nome Francis se manteve; e Roxane passou a Lisa.

[4] O nome da personagem Salua, governanta e depois dama de companhia de Aixa, mudou para Nádia na versão definitiva do romance.

[5] Andrew e Francis são netos de Omar. No decorrer da escrita, o nome Andrew passou a André e depois definitivamente a Henrique; o nome Francis se manteve na versão final do romance, mas por um período foi chamado de Francisco.

[6] André e Francisco são os netos de Omar. No decorrer da escrita, o nome Andrew passou a André e, depois, definitivamente a Henrique. Francisco iniciou como Francis e, na versão final do romance, voltou ao primeiro nome.

[7] Roxane é a neta de Omar que na versão final do romance passou a se chamar Lisa.

[8] No movimento das edições, em junho de 2017, Betty Milan informa que Andrews e Francis voltam a ser os nomes dos netos de Omar.

[9] Betty Milan informa que Abu, o protagonista, passa a se chamar Omar. Em árabe, Omar significa longevo, rico e homem do mar. As mensagens seguintes explicam a mudança.