Sobre Carta ao filho

Sobre Carta ao filho

Feira Internacional do Livro de Miami, 2014

 

Sou uma das muitas filhas de Simone de Beauvoir, autora de O segundo sexo, publicado em 1949, e de Elisabeth Badinter, autora de Um amor conquistado – O mito do amor materno, lançado em 1981. Se eu não tivesse lido esses dois livros, jamais teria escrito Carta ao filho, meu último trabalho publicado (2012), do qual quero falar a vocês.

Não é fácil falar deste livro, como não foi fácil escrevê-lo. Um livro que não planejei escrever. Ele aconteceu porque precisei escrevê-lo. Por diferentes razões, meu filho, meu único filho, não queria falar comigo e saiu de casa. Eu sabia que seria inútil correr atrás dele. Sabia que precisava esperar, mas só podia fazer isso escrevendo para ele.

Escrevendo uma carta que não poderia lhe enviar e que eu não pretendia publicar, consegui ter paciência e, portanto, mudar o modo de me relacionar com meu filho. Isso me fez pensar sobre a maternidade e o amor e, depois, foi ele que pensou sobre a infância e a liberdade.

Quis saber o tipo de mãe que eu tinha sido e como eu talvez pudesse ter evitado os erros que cometi. Para responder a essa questão, precisei rememorar nossa vida juntos e me deixar levar pela ideia de que a vida é um criptograma que precisa ser decifrado, como disse Breton. Como Kerouac diria. Porque esses escritores, Breton e Kerouac, identificavam literatura e vida. Eles reintroduziram o sujeito na criação poética, porque queriam uma expressão mais visceral.

A primeira coisa que eu disse a meu filho neste livro foi que a estação das cerejeiras havia começado no dia em que ele nasceu e que eu devia o nascimento dele a uma amiga muito chegada. Ela sonhou comigo e me disse para ir depressa ao médico. No sonho dela, a vida do meu filho corria risco. Eu fui ao médico no mesmo dia, e ele descobriu que o fluxo de sangue não estava satisfatório e marcou uma cesariana para o dia seguinte. A placenta estava secando.

Essa amiga é uma poeta, é uma clarividente, e foi graças à visão dela que meu filho nasceu. Eu, que costumava ser cética sobre clarividência, passei desde então a acreditar em visões. Para se tornar clarividente, a pessoa precisa ser sensível ao inconsciente, e os poetas são.

Então, primeiro, eu disse no livro ao meu filho que nós dois tínhamos vencido por um fio e que eu não podia entender como ele se recusava a falar comigo. A isso, acrescentei que eu estava escrevendo para torná-lo presente, mas também para perguntar a mim mesma o que significa ser mãe. De certa maneira, era um teatro, e o teatro pode mudar nossas vidas.

O ato de escrever me permitiu resistir ao imperioso desejo de fazer contato com meu filho. E por que não, afinal? Eu não o havia criado? Como se, pelo fato de ter criado uma criança, a mãe tivesse o direito de exigir a presença dela. A carta me ensinou a ser paciente. Talvez por isso eu tenha logo escrito sobre nossa viagem para a Índia, onde o sorriso é um traço cultural e as pessoas não perdem a paciência. Nem mesmo na rua, onde o trânsito não obedece às regras e o desastre parece iminente todo o tempo. A Índia, a mãe Índia, ensina a paciência e só isso já justificaria a viagem.

 

Minha história de amor

Depois de relembrar o nascimento de meu filho, comecei a contar a ele minha própria história, porque pensei que ele poderia ter um novo relacionamento comigo, se aceitasse que eu tenho uma história independente da nossa.

Contei que minha paixão pelo pai dele foi um delírio, devido à nossa crença na liberdade. Também contei que nunca nos separamos, mas nunca fomos fiéis. Ou melhor, fomos fiéis à nossa lealdade. Expliquei isso dizendo que o ideal de fidelidade é o ideal do amor. Mas não poderia ser o ideal daqueles que fizeram parte da revolução sexual dos anos 1960.

Enquanto escrevia, percebi que nós tínhamos um problema de comunicação, como meu filho já havia dito mais de uma vez. Percebi que eu ouvia sem escutá-lo de fato. Isso foi horrível, porque, além de ser escritora, sou psicanalista. Considerava que, como psicanalista, eu não poderia ter aquele tipo de problema.

Depois de ter sido casada com o pai do meu filho durante 25 anos, eu me apaixonei por outro homem. Isso era inaceitável tanto para o meu marido quanto para mim. Éramos abertos a encontros ocasionais, mas não podíamos conceber a possibilidade de um triângulo amoroso. A única relação duradoura que podíamos aceitar era a nossa. Mas um dia encontrei Oswald, alguém que eu não conseguia deixar, e o triângulo acabou acontecendo. Cada um dos homens sabia da existência do outro, mas não se conheciam. Seria pelo fato de serem ambos franceses? Suponho que sim.

Eu nunca havia falado sobre isso ao meu filho e senti que deveria ao menos tentar explicar a ele o que havia acontecido. Na Carta, fiz isso do seguinte modo(1):

 

“Seu pai era um homem do norte. Meu amante, como eu, era do sul – pois sou neta de imigrantes libaneses. Nele, vi o Mediterrâneo. Olhos da cor do mar, sua pele da cor da minha, morena, e com hábitos iguais aos dos meus ancestrais. Ele nunca se sentou à mesa para comer sem tomates e azeitonas. Como meu avô, meu tio, meu pai. Com ele, voltei à cidadezinha do interior de São Paulo, onde meus avós paternos se instalaram e eu passava férias quando menina.

Eu não conseguia resistir a meu amante, embora esse fosse meu desejo. Quem pode resistir à sua infância? Ninguém. Com meu amante, eu era transportada para outro reino, onde nada me contrariava. Mas eu estava em uma situação insustentável. Como todos nós, seu pai era contraditório. Embora fosse um libertino, ele sentia ciúme, e eu fiquei triste por ele. Não era minha intenção ser responsável pelo sofrimento do homem que me havia tomado sob suas asas em Paris e me permitiu ser tão parisiense quanto brasileira.

Ele era incrivelmente generoso comigo. Quando ele morreu, fiquei inconsolável, porque perdi a pessoa que mais havia acreditado na minha liberdade.”

 

Eu fiz o luto de meu marido morto até perceber que, na verdade, perder alguém não significa não ter, e que a pessoa simplesmente não deixa de existir apenas porque morreu. Ela existe na memória. Esse é o nosso consolo. Sem a rememoração, não seríamos capazes de suportar a perda, seja a de um ser amado, seja a do tempo que passa.

Sem ir além dos limites que minha relação com meu filho impõe, escrevi sobre minha vida amorosa, ignorando o tabu secular segundo o qual as mães não devem falar de tais coisas com seus filhos. Como se as crianças não soubessem de tudo o que a gente esconde.

Carta ao filho me ensinou que, desde o início, a mãe tem que aceitar diferenças. Meu filho nasceu em outubro. Naquele primeiríssimo dia, eu o estranhei. Os olhinhos dele pareciam asiáticos. Estavam daquele jeito por causa da cesariana, mas meu narcisimo não me permitiu ver dessa maneira. Como era possível que meu filho não tivesse o meu jeito, não fosse um espelho de mim?

Escrever o livro me fez perceber que uma mãe deve dar à luz e nunca mais parar de dar a vida, aceitando seu filho como ele é. A maternidade implica restrição além da doação, que começa imediatamente após o nascimento, e isso pode ser penoso.

 

Análise com Jacques Lacan

Eu não poderia ter escrito Carta ao filho sem escrever sobre minha análise com Jacques Lacan, porque, não fosse por essa análise, meu filho não teria nascido. Antes da análise, eu não conseguia pensar em ser mãe.

Lacan, que é mais conhecido na Europa e na Amériuca Latina, tinha um modo muito especial de trabalhar. Eu mandei a ele uma carta e ele agendou nossa primeira sessão. Fui do Brasil à França para trabalhar com ele. Assim que pisei na França, telefonei. Ele respondeu à minha ligação de um modo estranho. “Você chegou. E então?”

No começo, não consegui acreditar no que estava ouvindo. Era possível que eu tivesse atravessado o Atlântico e ele me dissesse “E então?”. Não fosse pela minha transferência, eu não teria suportado aquilo. Mas a transferência era completa, e eu respondi: “Então, eu quero fazer análise”. Ele ouviu, me mandou voltar no dia seguinte e, sem mais, desligou o telefone. Fiquei com o telefone pendurado na mão, mas, no dia seguinte, na hora marcada, eu me apresentei no número 5 da Rue de Lille.

Levei muitos anos para compreender o estranho procedimento. Lacan estava cônscio da intensidade do meu desejo de me analisar e quis que eu o manifestasse claramente. O “E então” dele me forçou a dizer o que eu queria. Ao desligar o telefone, ele me fez ouvir o que eu havia acabado de dizer. Foi o que bastou para o trabalho começar.

De pronto, a análise me fez ver que eu não estava na França apenas para aperfeiçoar minhas habilidades como psicanalista, mas porque era o país com o qual meus ancestrais libaneses haviam sonhado. Percebi que a frase de Lacan, “O desejo é o desenho do Outro”, fazia sentido para mim e o ato de partir do Brasil não era inteiramente livre, porque eu amo o Brasil, mesmo que ele insista em ser o país do futuro. Eu o amo porque ele é o único país com uma contracultura de massa se expressando continuamente – o carnaval e o futebol. Através dessa contracultura vital, nós podemos realizar a fantasia universal de ser capaz de brincar apesar da idade e, então, beber na Fonte de Juventa.

Durante minha análise na França, senti falta de casa, mas Paris me encantava continuamente. Tantos escritores para ler, a cidade que eu nunca terminaria de visitar e onde eu estava constantemente aprendendo, descobrindo a Idade Média, o Renascimento, o Classicismo. Eu perambulava pela margem do Sena até quando chovia, para ver os monumentos de perto e de longe e imaginava que vida poderia ser sempre como aquela. Para alguém que vem de São Paulo, uma cidade onde o passado não importa, Paris era uma descoberta a cada dia. Não foi por acaso que Paris é uma festa foi escrito por um americano. Porque ele era estrangeiro, Hemingway era constantemente surpreendido pela cidade, e a grande festa é surpreendente. Foi por isso que eu escrevi um livro cujo título é Paris não acaba nunca. Trata-se de um diálogo com Hemingway e diz(2):

 

“(…) no alto da torre de Notre-Dame, ao som de Edith Piaf, da rudeza sublime da voz, a gente só lamenta que não estará sobre a terra daqui a mil anos para ver o mesmo cenário.
O exílio é então um arco-íris, e Paris é uma festa.”

 

Além de sua história, que me seduziu, Paris me possibilitou conhecer a mim mesma de um modo que eu nunca poderia imaginar. Eu era uma mulher jovem descobrindo minha feminilidade com o que a cidade tinha a me oferecer.

Na escola fundamental e no curso ginasial no Brasil, eu vestia uniforme. No colegial, só pensava em estudar para entrar numa boa universidade, e um simples vestido vermelho bastava para mim. Durante o curso universitário, eu também não prestava atenção em roupas – “preocupação burguesa”, que uma estudante de esquerda não podia ter.

Paris mudou a situação. Já não era possível ignorar a moda. Salvo pelo fato de que não era feita para uma mulher de ascendência mediterrânea, cujo modo de andar era brasileiro. Eu tive de negociar com a moda francesa. Não consegui desgrudar do espelho até encontrar um modo de me vestir sem perder meu estilo, isto é, sem perder de vista minha alma brasileira.

De fato, há dois modos de olhar para si no espelho. Olhar o que ele não mostra, narcisicamente, ou olhar o que ele mostra, criticamente. O primeiro modo é o da rainha da Branca de Neve, que olha para si e diz: “Espelho, espelho meu, existe no mundo mulher mais bela do que eu?”. Ela não pergunta para aprender coisa alguma, mas porque tem certeza de que é a mais bela. O segundo modo de olhar no espelho é de alguém que olha para si para descobrir o que não sabe. E foi isso que eu fiz. Do momento em que descobri o espelho, comecei a usá-lo para escrever ficção, e escrevi meu primeiro romance, O Papagaio e o Doutor, inspirado na minha análise.

Eu talvez tivesse me tornado uma ficcionista sem a análise, mas certamente não teria me tornado mãe. Por que isso? Tentarei explicar brevemente. Sou da terceira geração de uma família de imigrantes libaneses, e sou a filha mais velha na minha família. Na concepção dos meus ancestrais, o primogênito deve ser homem, e eu senti que não poderia ser amada se não escondesse meu gênero. Uma mulher que precisa esconder seu gênero não pode ser mãe; ela precisa renunciar à maternidade.

Durante minha análise, eu primeiro tive um sonho que me fez expressar o desejo de ter um filho. Depois, percebi que isso não era possível, porque eu não conseguia imaginar um pai, pois eu queria que meu filho tivesse meu nome e não o dele. Mas como o homem que eu era, por ser a primogênita, não poderia dar nome ao filho? Através da análise eu tomei consciência de minha fantasia opressiva e assim a maternidade se tornou possível. Esse foi o tema de O Papagaio e o Doutor. Eu escapei da repetição e me reinventei.

Eu queria que meu filho conhecesse minha história, porque eu queria que nós dois pudéssemos ouvir um ao outro. Carta ao filho me fez perceber que eu não me reconheço em nenhum modelo de maternidade e que, para agir apropriadamente, uma mãe precisa dar ouvidos a seu filho. Para mim, não existe um modelo de mãe ou uma mãe modelo.

Escrevi o livro deixando que as palavras conduzissem a conversa, confiando na sabedoria delas. Escrever pôs fim à minha antiga fixação. Não estou mais na posição em que estava. Esquecendo as forças vitais da separação, tinha me movido para outra posição. Assim como havia feito meu filho.

Carta ao filho é, no momento, meu último livro. Antes dele, escrevi outros 23, que foram publicados. Daqui para a frente, quero viver para a atividade que me dá mais prazer e entre meus pares – aqueles para os quais escrever e ouvir constitui um privilégio.

 

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Feira Internacional do Livro de Miami, 22 de novembro de 2014.

(1) Carta ao filho. Rio de Janeiro: Record, 2013.
(2) Paris não acaba nunca. Rio de Janeiro: Record, 1996.