Amantes da palavra

Relação platônica entre uma poeta e sua musa é documentada em livro

 

A poeta Neide Archanjo (à esq.) e a escritora e psicanalista Betty Milan no lançamento de 'O Clarão', livro da segunda, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro - 23.abr.01 / Divulgação
A poeta Neide Archanjo (à esq.) e a escritora e psicanalista Betty Milan no lançamento de ‘O Clarão’, livro da segunda, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro – 23.abr.01 / Divulgação

A relação entre as duas era, portanto, de outra natureza —Milan faz um paralelo com àquela entre uma musa, papel que atribui a si mesma, e o artista que ela inspira. “Não consigo classificar o que nós vivemos em nenhuma categoria. Não fui amiga da Neide como de outras mulheres. Também não fui mulher dela”, afirma à reportagem. “Mas o amor perdurou. Não era hétero e nem homo, era só amor.”

As duas se conheceram nos anos 1980, em um festival organizado pela atriz e agitadora cultural Ruth Escobar em São Paulo, cidade natal de ambas. Milan conta que aproveitou a presença de Archanjo, à época uma poeta já reconhecida, para presenteá-la com um exemplar de seu primeiro livro de ficção, “O Sexophuro”, sobre uma mulher insatisfeita com o casamento.

A resposta de Archanjo veio na forma de uma mensagem sugestiva: “Quero que esse incêndio muito íntimo/ que tua palavra sexophuro me provocou/ mais o doce impacto da tua presença/ permaneçam em mim./ E, uma vez conhecidos,/ sejam os dois largamente/ amados.” Milan entrou no jogo, reproduzindo na epístola seguinte uma definição do amor do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. E assim teve início a correspondência que agora se torna pública.

O vaivém de cartas se estende por uma década, do fatídico encontro, em 1982, até 1992, e registra o cotidiano da dupla, que na época vivia longe uma da outra —enquanto Milan, casada com um francês, morava em Paris com o marido e o filho, Archanjo residia no Rio de Janeiro com a companheira.

Nas missivas, elas falam de parentes e amigos em comum, tecem projetos para fundar uma “Editora das Mulheres”, comentam os livros que leem e os filmes a que assistem. “Até agora só ousei sair para ver ‘O Último Imperador da China’, do [Bernardo] Bertolucci”, escreve Betty, acrescentando não ter perdido a viagem. Já Archanjo decreta que “O General em Seu Labirinto”, romance de Gabriel García Márquez de 1989, “é chato”, e conta ter chorado “três dias e três noites” por causa de um filme de John Huston em outra carta.

Também choram, juntas, a morte de pessoas próximas, como o irmão de Archanjo, José Luiz, em decorrência da Aids. E discutem os impactos das muitas reviravoltas políticas que o país viveu no período, das sucessivas trocas de moeda dos anos 1980 ao Plano Collor, em 1990.

A correspondência ainda revela que o vínculo entre as amigas não estava isento de fricções. “Qual é, morena? Somos ou não somos tietes uma da outra? Ajoelhou tem que rezar. Reciprocidade é bom e eu gosto”, escreve Archanjo em uma carta de 1987 após visitar a mãe de Milan em São Paulo e notar que esta parecia não ter noção da intimidade entre as duas. “Favor, na próxima carta à sua mãe, dar testemunho da nossa perene amizade.”

Ao mesmo tempo, segundo Milan, as cartas talvez não deixem transparecer tão claramente o descontentamento que a diferença de interesses sexuais gerava em Archanjo. Ainda que, prossegue, não fosse o desencontro que as duas valorizavam, e sim “a possibilidade do encontro, que não parou de se renovar”. “Nosso texto alimentava a relação.”

“Amantes da Palavra” não é o primeiro livro em que a escritora e psicanalista se propõe a ter sua intimidade devassada. Pelo contrário — a autora de “O Que É o Amor”, que causou polêmica ao ser publicado nos anos 1980, é conhecida por incursões autobiográficas mais ou menos ficcionais. A autora discute, por exemplo, sua relação com o filho em “Carta ao Filho”, de 2013, e com a mãe, em obras como “A Mãe Eterna”, de 2016, e “Heresia”, de 2022.

Desta vez, no entanto, sua escrita aparece em sua forma mais bruta. Ao mesmo tempo, pondera Milan, muitos dos textos que compõem “Amantes da Palavra” documentam seu ofício enquanto escritora. Nesse sentido, afirma, o livro de cartas publicado agora poderia ser considerado “um making of”.

As cartas servem também como uma apresentação a Archanjo, que teve poemas gravados por Maria Bethânia e que Diniz, o professor, descreve como uma das maiores poetas da língua portuguesa.

Sua morte, em 2022, acabou sendo obscurecida pelo falecimento, na mesma data, do poeta amazonense Thiago de Mello. “Neide é conhecida pelos que sabem da poesia”, diz Milan.

 

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Clara Balbi, Folha de S. Paulo [online], 23/02/2024