Paul Virilio: A cidade

Paul Virilio: A cidade

Betty Milan
Texto integrante do livro O século (1999).
Publicado como “A catástrofe urbana”,
Folha de S. Paulo
, 28/09/1997

Paul Virilio nasceu em Paris em 1932. Formou-se urbanista e é teórico da cultura. É professor na Escola Superior de Arquitetura de Paris e autor de livros mundialmente conhecidos, vários deles traduzidos no Brasil, como Velocidade e política, A bomba informática, Guerra e cinema e A máquina da visão entre outros.. Além da sua atividade de professor e escritor, colabora em vários jornais: Libération (França), El País (Espanha), Die Tageszeitung (Alemanha), The New Statesman (Inglaterra), Artforum (USA), Illustrazione Italiana (Itália), Gaya Scienza (Japão). É membro fundador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Paz e Estudos Estratégicos na Fundação Casa das Ciências do Homem, bem como diretor de programas no Colégio Internacional de Filosofia, ambos sediados em Paris.

Betty Milan: Gostaria de saber o que significa ser um urbanista no século XX.

Antes de responder, Virilio se levanta e vai até um dos armários da sua sala de aula na Escola Superior de Arquitetura. Pega um saquinho de veludo azul e dele tira uma pedra, que lhe servirá para começar a responder a questão.

Paul Virilio: Esta pedra veio de Hiroshima. Fiz uma campanha para que não se tombassem somente monumentos como a Torre Eiffel, mas também Auschwitz e Hiroxima, os “lugares catastróficos” que fazem parte da história da humanidade, da memória do mundo. Em 1979, Auschwitz foi declarado lugar histórico e, no dia 15 de janeiro de 1996, a Unesco fez o tombamento de Hiroxima, de onde veio esta pedra…

BM: O senhor é um urbanista por esta ação política, porém não somente…
VIRILIO: Sou um urbanista porque trabalho com a organização do espaço. Não sou um construtor de cidades, só que ensinei e escrevi sobre a organização do território e da cidade, que é a forma política maior da História. O urbanista é um homem que aprende a construir cidades ou se interessa pela evolução delas através da sua história, tanto de guerra quanto de paz. Como sou um filho da Segunda Guerra Mundial, vi cidades inteiras em ruínas. Fui marcado, na minha infância, por esse fato. Vi Nantes ser destruída por um bombardeio maciço e, desde então, as questões da cidade e da técnica para mim estão associadas.

BM: Existem lugares e paisagens mais propícios a uma urbanização inteligente?
VIRILIO: Acredito que o problema seja a circulação das populações. Claro que as cidades se construíram inicialmente perto de reservas de água, dos rios ou do mar. Mas existem também as cidades da montanha. O essencial é a cidade estar situada num lugar onde o fluxo de gente é grande, porque ela é um ponto de cruzamento de pessoas. A cidade moderna está em crise, tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos. O sítio conta na medida em que for um cruzamento – e tanto pode ser um porto, um desfiladeiro quanto uma confluência de rios, como em Mayence.

REALIZAÇÕES ARQUITETÔNICAS DO SÉCULO XX

BM: Quais são as realizações arquitetônicas e urbanísticas importantes do século XX?
VIRILIO: Nenhuma… Se considerar a Europa, sou obrigado a falar de reconstrução e esta não foi propriamente brilhante…

BM: Não há nada que seja digno de nota?
VIRILIO: A reconstrução de Caen foi relativamente bem-sucedida. Obedeceu à primeira lei do urbanismo, que é a conservação do sítio. Até Le Corbusier quis que a cidade fosse reconstruída noutro lugar. Graças a Deus não foi ouvido e Caen ficou no mesmo lugar, com o castelo ao norte, o porto… Houve uma forma de modéstia em relação ao sítio e em relação à arquitetura, ao contrário de Le Havre, que foi reconstruída por Perret. Ele fez grandes avenidas, grandes portas para o oceano etc., e a cidade não deu certo. Já Caen é discreta e agradável.

BM: E nos Estados Unidos também não há nada interessante?
VIRILIO: Há uma cidade de que eu gosto, São Francisco, porque é um porto e também por causa das montanhas, que favorecem o urbanismo, pois permitem dispor os habitantes na terceira dimensão. A coisa mais difícil para um urbanista é obter a terceira dimensão só através do arranha-céu. Isso ocorre sempre que o terreno é plano. Numa cidade como São Francisco, foi possível realizar um urbanismo “aéreo”, graças ao sítio, sem recorrer ao arranha-céu. Manhattan é magnífica, só que é inviável do ponto de vista da sociedade. O arranha-céu é um lugar onde a gente não se comunica, é um gueto vertical, existe em função do elevador, e não do homem.

BM: No século XIX, Paris se viu às voltas com a reforma haussmaniana, que criou os grandes jardins e as grandes avenidas, demolindo prédios antigos. Apesar do prestígio dos grandes bulevares, a operação haussmaniana não deixa saudade. A Paris que encanta o estrangeiro é precisamente a que Haussmann não conseguiu “endireitar” – a das margens do Sena, a do Marais… Quais as principais transformações urbanísticas e arquitetônicas pelas quais Paris passou no século XIX?
VIRILIO: Haussmann foi obrigado a construir num período de crise da paz civil. Reestruturou os bulevares para evitar as revoltas e não só para facilitar o transporte. A paz civil é o primeiro dever de uma cidade. Sem paz, a cidade de nada serve. O trabalho de Haussmann foi um trabalho de estrategista, de controle das barricadas, de gestão da estabilidade urbana. A palavra urbanista vem do domínio militar. O urbanista era o que trabalhava com as muralhas. Na verdade, foi a circulação da tropa que determinou a dos carros.

O URBANISMO EM PARIS

BM: E o século XX em Paris?
VIRILIO: O grande problema do século XX é o trânsito. Não mais o da tropa, o do ônibus, mas o dos carros. O principal trabalho dos urbanistas em Paris, nos anos 60, foi o de facilitar o trânsito através da construção das cidades-satélites.

BM: Que não deram muito certo…
Foram verdadeiros fracassos, porque surgiram na época em que o emprego era de tempo integral e o contrato de trabalho, por tempo indeterminado. Agora, com a crise do trabalho e do petróleo, as cidades-satélites se transformaram em verdadeiros guetos, são as chamadas zonas de não-direito.

BM: O senhor falou dos fracassos. E as obras bem-sucedidas?
VIRILIO: De Pompidou (1911-1974) até Mitterrand (1916-1996), houve um empenho para reestruturar Paris em torno da cultura. Pompidou fez o Centro Georges Pompidou, o Beaubourg. Mitterrand relançou a ideia de que a cidade se faz em torno da memória, da cultura e, portanto, da restauração. Acertou quase tudo, salvo a Ópera da Bastilha, que é uma catástrofe, e o quarteirão da Défense, que não vive, embora o Arco da Défense seja bonito.

BM: Seria possível mencionar os acertos arquitetônicos?
VIRILIO: A pirâmide do Louvre, o Instituto do Mundo Árabe…

O FUTURO É A METROPOLIZAÇÃO

BM: Há dois tipos de cidade. Existe a cidade mediterrânea, onde tudo se mistura – as classes sociais e as funções política, administrativa, artística. Existe a cidade anglo-saxã – Nova York, Londres – onde reina a divisão de classes e o downtown. Paris sempre foi uma cidade mediterrânea, mas o centro está se empobrecendo sociologicamente, porque as classes menos favorecidas são obrigadas a mudar para a periferia. Qual é o futuro de Paris?
VIRILIO: O futuro é a metropolização. Nós assistimos no mundo inteiro a uma contração, exatamente como a contração do parto, em direção às cidades. Há uns dez anos existiam na França doze cidades de equilíbrio, que permitiam resistir a Paris, porque as pessoas tanto podiam morar quanto trabalhar nelas. Agora, estamos sofrendo o processo de metropolização, que era próprio do Terceiro Mundo: Índia, México… Para aí viverem, as pessoas se precipitavam em direção à capital, ao porto. Isso atualmente está acontecendo também na Europa. Paris está se tornando uma enorme nebulosa, e a verdadeira questão é a do emprego. O problema que se impõe ao urbanista é o de saber onde deve construir alojamentos quando já não existe trabalho permanente, quando o proletariado deixa de ser sedentário. A Europa era a região do mundo mais marcada pelo trabalho sedentário. Com a informatização, estamos diante da precariedade do trabalho. Contratos de duração determinada, seis meses, três, tempo parcial. E agora surgiu na Inglaterra o contrato de zero hora. A empresa oferece um celular ao empregado, que deve atender quando for chamado. Por um só dia, por uma hora, o que é equivalente a ser um escravo. Para o urbanista, isso é dramático. Onde construir os alojamentos se as pessoas circulam o tempo todo? Nós estamos às voltas com uma nomadização das populações. Há agora na Europa doze cidades que superam a população de países e, portanto, antes de falar do aspecto estético e da qualidade de vida, é preciso falar da hiperdensificação. Pense em Hong Kong ou Cingapura! A densidade populacional nesses lugares é monstruosa.

BM: Como em São Paulo?
VIRILIO: Pois é. Nós assistimos a um declínio do Estado nacional, a uma desertificação das cidades menores em favor das metrópoles, que vão se tornando verdadeiras galáxias. Isso, aliás, tanto vale para os países desenvolvidos quanto para os subdesenvolvidos. Há uma “terceiro-mundialização” das cidades, e não dos países. Los Angeles ou Nova York atualmente são cidades do Terceiro Mundo. Em Calcutá, as pessoas vivem em cima do lixo. Portanto, o problema não se coloca em termos de estética, e sim de população, e esta se desloca dos estados-nações para as cidades, cuja tendência é se tornarem estados-cidades.

BM: Como intervir nisso?
VIRILIO: Primeiramente, perguntando o que favoreceu a hiperconcentração no século XIX. Foi o trem. Em segundo lugar, o que favoreceu a oposição centro/periferia no século XX. Foi o carro. Finalmente, perguntando o que está subvertendo hoje o povoamento urbano. A hiperprodutividade, os robôs etc. Não há como organizar a cidade sem uma compreensão da técnica: a do transporte no século XIX, que se caracteriza pela oposição entre a cidade e o campo; a da transmissão no século XX, que se caracteriza pela oposição entre o centro da cidade e a periferia. No século XXI, teremos a oposição entre os sedentários e os nômades. Os sedentários são os que estão em casa em qualquer lugar, no trem, na rua, com o laptop, com o celular… Os nômades são os que não estão em casa em lugar nenhum. É o indivíduo que vive no carro à procura de um emprego, vai de um ponto a outro, colhendo o que pode, sem moradia, sem poder se casar etc.

BM: O senhor diz que o problema da cidade não se coloca em termos de estética, mas eu não vejo como sustentar isso quando se trata de Paris ou Nova York… No livro Dias tranquilos em Clichy, Henry Miller escreveu: “Broadway é a velocidade, a vertigem, o maravilhamento, e nenhum lugar onde a gente possa se sentar. Montmartre é indolente, preguiçosa, indiferente, meio pobre e sórdida, mais sedutora do que vistosa, ela não cintila à maneira da Broadway, porém luz como a brasa sobre a cinza”. A vida em Nova York e em Paris implica uma relação diversa do homem com o tempo, com o espaço e até mesmo com a luz. Seria possível falar sobre isto?
VIRILIO: A cidade é uma caixa de velocidade, o rosto escondido da riqueza. A velocidade é um dos elementos principais da cidade, com os transportes coletivos e a iluminação noturna. Foi a iluminação que fez de Paris a Cidade Luz, ela viabilizou a noite… A cidade sempre foi um lugar onde a gente se droga com a velocidade, com o álcool e agora com a internet. Vejo da minha janela um casal que, em vez de fazer amor, passa a noite trabalhando na internet.

BM: Gostaria que o senhor falasse sobre a diferença entre a vida em Paris e em Nova York…
VIRILIO: Nova York é a grande cidade, é uma catástrofe em câmara lenta, segundo Le Corbusier. Mas ela é uma cidade americana que a gente ama. Paris é o rio, é uma biblioteca que o Sena atravessa, como dizia Walter Benjamin. Para mim, ela é um porto fluvial e o lugar por onde passou toda a história da França.

BM: O Sena salva Paris, salvou a cidade da reforma haussmaniana, porque não havia como “endireitar” o rio.
VIRILIO: É verdade. Com Nantes, onde vivi na infância, eles simplesmente acabaram, aterrando uma parte do rio, do Loire… Veneza é uma cidade boa, porque é fluvial.

O ELEVADOR DESTRUIU NOVA YORK

BM: Nova York tem água, o Hudson… O senhor viveria lá?
VIRILIO: Não.

BM: O que o impediria?
VIRILIO: A verticalidade. O elevador é, na vertical, o equivalente do carro, que destruiu a cidade. O elevador destruiu, possibilitando alturas cada vez maiores. Existem hoje, no Japão, cidades com prédios de 2 mil, 4 mil metros de altura. Isso é Babel, é querer se emancipar do solo, da terra e da água.

BM: A construção da cidade de Brasília é o resultado de uma decisão geopolítica. Mas por que ter construído uma cidade no centro vazio do país, quando já estávamos fazendo a nossa conquista do Oeste? Era necessário isso? Os americanos conservaram Washington, apesar da conquista do Oeste, e o Canadá mantém Otawa como capital, quando a potência econômica do país está do outro lado. Gostaria que o senhor me dissesse o que pensa da construção de Brasília e se é possível fazer uma cidade verdadeira por decreto.
VIRILIO: Claro que não. Uma cidade se constrói por sedimentação. A maioria das cidades novas morreu por causa da sua novidade. Brasília é uma exposição de arquitetura. Acredito que houve, no início do século XX, com as exposições internacionais, o desejo de fazer exposições de arquitetura. Com isso, abriu-se a porta para a construção das cidades novas.

BM: Uma das consequências da construção de Brasília foi um certo abandono do Rio de Janeiro.
VIRILIO: O que é uma pena, porque o Rio é extraordinário.

SÃO PAULO, MÉXICO, TÓQUIO SÃO FENÔMENOS DE MUTAÇÃO

BM: Muitas cidades, no próximo século, atingirão 20 milhões de habitantes: São Paulo, México, Calcutá… Qual pode ser o futuro da vida nessas cidades? Não serão elas patogênicas, para não dizer belígeras?
VIRILIO: Não são mais cidades, porém fenômenos de mutação, catástrofes que se preparam. O século XXI terá que reinventar a relação do homem com a terra. A grande questão ecológica, na verdade, é a cidade. Não é a poluição do ar, da fauna, da flora, porém a construção da cidade dos homens, a democracia. A primeira lei do urbanismo é a persistência do sítio. A segunda diz respeito à extensão da cidade. Quanto mais ela se estende e se torna densa, mais a unidade de população – a família – se reduz. Antigamente, as cidades eram pequenas e as famílias, grandes, tendo de cinquenta a cem pessoas. À medida que a cidade se desenvolve, a família extensa passa a ter vinte pessoas. No século XIX, já é a família burguesa. Depois é a família nuclear. Hoje, nas megalópoles, é a família monoparental, que larga os filhos, como em São Paulo. Chegamos à desintegração da unidade familiar – e não estou falando da família no sentido moral, mas sim como unidade de reprodução. A grande metrópole minou a base da espécie humana, e nós agora vemos bandos de crianças que sobrevivem roubando adultos. A cidade deixou de ser um lugar de socialização para se tornar um lugar de dessocialização.

BM: Os ricos de São Paulo estão deixando a cidade. Vão para quarteirões inteiramente privados, a uma hora de distância do centro. Gostaria de saber se não é uma tendência geral.
VIRILIO: É. A direita americana quer inclusive o fim dos Estados Unidos e a formação de doze estados-cidades… Isso tudo porque as cidades atuais já não garantem a segurança. Uma cidade precisa dar segurança, que é o primeiro bem do cidadão. Em cidades imensas, como Los Angeles, Chicago, São Paulo, a paz civil não existe mais, e a democracia também não. Não é cidade, é selva.

REVOLTA POR PROCURAÇÃO TELEVISIVA

BM: Li num dos seus livros que as pessoas das cidades se associam por “procuração televisiva”com as pessoas de outra cidade e isso desencadeia as revoltas urbanas.
VIRILIO: Quando Soweto se revoltou, há alguns anos, houve manifestações em Brighton e em Marselha, que eu expliquei a partir de slogans. Um deles dizia: “Aqui é como Soweto”. Vendo as imagens, os ingleses e os franceses, cujas condições de vida eram completamente diferentes, imitavam os outros para se valorizar. A intifada teve grande influência nas revoltas da periferia de Paris. A televisão induz a tomar as cenas de violência como um modelo.

BM: O que é possível fazer para que, no século XXI, a vida nas cidades melhore?
VIRILIO: É preciso que a política controle a técnica. Nós estamos às vésperas de uma grande revolução, que vai agravar os efeitos da Revolução Industrial, ou seja, a revolução da informática, que significará o desemprego em massa, o fim do trabalho, da força do homem… Ora, nem todo mundo é Prêmio Nobel. Se o poder político não for capaz de controlar o desenvolvimento técnico dos robôs, dos sistemas de produção do mercado, rumaremos para uma sociedade que terá duas velocidades, formada por uma elite que viverá em bunkers e por miseráveis que vão atacá-la. O problema hoje é controlar o desenvolvimento técnico. Nós entramos num período de desemprego em massa, que é estrutural, e não conjuntural.