Nathalie Sarraute: A escrita

Nathalie Sarraute: A escrita

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como “Em busca do movimento interior”.
Folha de S. Paulo
, 28/07/1996

Nascida com o século como Natacha Tcherniak na Rússia, Nathalie Sarraute tornou-se uma das grandes escritoras francesas e foi agraciada com a inclusão da sua obra na coleção Bibliothèque de la Pléiade, que reúne em edições de referência as obras consideradas patrimônio da literatura francesa e estrangeira. Estudou direito na Sorbonne, história em Oxford e sociologia em Berlim, tendo trabalhado como advogada na França. No entanto, em 1939, Tropismes (“Tropismos”), a primeira manifestação do que depois viria a ser o nouveau roman, não teve a menor repercussão. Em 1948, seu romance Portrait d’un inconnu (“Retrato de um desconhecido”) foi prefaciado por Sartre. Em 1956, com L’ère du soupçon (“A era da suspeita”), e graças ao encontro com o escritor Alain Robbe-Grillet, que lançou o movimento do nouveau roman, Nathalie Sarraute se tornou conhecida na França. O romance Os frutos de ouro lhe valeu, em 1964, um prêmio internacional de literatura. Apesar de nunca ter entrado nos jogos do parisianismo intelectual, Nathalie Sarraute é conhecida no mundo inteiro e sua obra já foi traduzida para mais de trinta línguas. No Brasil, além de Os frutos de ouro, pode-se encontrar seu texto autobiográfico Infância. O uso das palavras foi traduzido em Portugal. Ela faleceu em Paris em 1999.

Quem se candidata a entrevistar Nathalie Sarraute sabe que a tarefa não será fácil, pois ela não se disporá a falar sobre o seu último livro e, com toda a razão, nada dirá sobre sua vida privada.

Tendo enviado uma carta à escritora e obtido resposta positiva através da editora Gallimard, o ex-candidato começa a se preparar para a entrevista, cujo tema será forçosamente a história e o significado da obra de Sarraute. Porém, por mais que ele se prepare, a ideia do encontro o inquieta. Quem pode ser a pessoa que sustenta o mito e já foi agraciada com a perspectiva da obra na Pléiade, uma coleção em que geralmente o autor só quando morto entra? Quem é a mulher que alcançou 95 anos, idade a que tão poucos chegam e, por isso mesmo, a distancia dos outros vivos?

Por maior que seja sua experiência, o entrevistador se sentirá pequeno diante do tamanho literário e humano da entrevistada. Sobretudo se considerar que Sarraute suportou escrever sem reconhecimento durante quase duas décadas e ter sempre poucos leitores porque quisesse introduzir na literatura um domínio novo da realidade humana –  o da sensação que escapa ou do não-dito que subjaz ao dito.
Sessenta anos explorando o que ela chama de tropismo ou movimento interior, sendo tão resistente na literatura quanto foi na vida – por exemplo, recusando-se a usar a estrela amarela que o nazismo lhe impunha e retirando-se clandestinamente, com as três filhas, de Paris.

Mora num prédio do século XIX, no 16ème Arrondissement, bairro elegante nas proximidades do metrô Iena. Lá chegando, fui recebida na porta pela própria Nathalie, uma senhora de estatura já minúscula com uma aura de cabelos brancos, solar. Que eu entrasse e tirasse o meu casaco, disse ela. Isso feito, me encaminhou para o escritório, me indicou uma poltrona e se sentou num divã, onde, basculando o torso, ela deitava a cabeça enquanto eu fazia a pergunta, para depois levantar – se não emergir – com a resposta pronta.

Quarenta minutos de entrevista, ao término da qual Nathalie Sarraute fez questão de me levar até a sala e aí mostrar o presente recebido de Jorge Amado – uma estatueta de barro, supostamente um índio. Do salão, me acompanhou até a porta para de novo me surpreender: “Será que você poderia me enviar o texto antes de publicá-lo ou ao menos o ler pelo telefone?”.

Sabendo da força que a palavra tem, ela não podia deixar por menos e, apesar da idade, não deixou. Eu obviamente atendi ao pedido, por entender a sua necessidade.

Segue o relato da entrevista que Nathalie Sarraute me deu numa tarde de outono em que, por já estarem secas, as folhas amareladas das árvores eram translúcidas. As copas rarefeitas mais pareciam um véu de sol.

Betty Milan: Será que a senhora poderia me dizer o que a leva a escrever, desde 1939, sobre a sensação no estado nascente, o tropismo ou movimento interior?
Nathalie Sarraute: Impossível, é impossível analisar por que a gente sente de uma determinada maneira e não de outra. Mas os movimentos interiores são a base de toda a literatura.

BM: A senhora se refere frequentemente a Proust. Que diferença existe entre o projeto dele e o seu?
SARRAUTE: Em Proust, existe a descoberta imensa de um mundo que até a ele parecia desconhecido. Proust analisa o que se passou e o faz com a maior fineza. Já eu quis mostrar a coisa acontecendo – e isso através do ritmo das frases, do seu movimento.

BM: A senhora recusou o romance tradicional por já ter nascido como uma escritora de movimentos interiores e assim não poder se submeter às regras estabelecidas – as da literatura dita realista. Seria correto afirmar que a senhora é uma escritora comprometida com a verdade, e não com a verossimilhança, e que o nouveau roman é uma nova forma de realismo?
SARRAUTE: Pensava isso quando escrevi A era da suspeita (1956). Achava que o nouveau roman era uma maneira nova de apreender a realidade. Porém, quando escrevi o livro, eu queria sobretudo me livrar das amarras impostas pela crítica – o personagem, a intriga, o tempo cronológico –, que me impediam de dar conta dos movimentos interiores.

BM: E ainda hoje a senhora pensa que o nouveau roman é um novo realismo?
SARRAUTE: Sim. Mas a expressão “novo realismo” pode levar a crer que outros devem fazer o que eu fiz.

BM: E isso não a interessa, claro.
SARRAUTE: De jeito nenhum; é um domínio que me é próprio. Ademais, toda e qualquer imitação é ruim.

BM: A senhora também está dizendo que, em literatura, não existe mestre, não é?
SARRAUTE: Sim, é isso. Cada um é o seu próprio mestre.

BM: A senhora hoje está entrando na Pléiade, porém, a sua história editorial foi bastante difícil. Tropismos foi publicado em 1939. Só em 1956, dezessete anos depois, perceberam que a senhora abria uma seara nova na literatura. Mesmo tendo um prefácio de Sartre, Retrato de um desconhecido foi recusado pela Gallimard em 1948.
SARRAUTE: Não só pela Gallimard, por todo mundo.

BM: E como a senhora explica essa reação dos editores?
SARRAUTE: Os meus livros são difíceis, e os leitores não estavam habituados à forma, que eles não apreendiam. Ainda agora existe muita gente que não consegue entrar nos meus livros.

BM: Mas desde A era da suspeita (1956) há menos resistência…
SARRAUTE: Não, de modo algum. Continuei a ter sempre poucos leitores. Agora, eu tenho mais, porque, pouco a pouco, as pessoas se habituaram. Quando Proust apareceu, em 1924, as pessoas não o compreendiam. Claudel dizia que não conseguia entender nada. Hoje em dia, uma criança de 14 anos pode ler Proust, porque houve uma evolução.

BM: Em 1956, Sartre se recusou a publicar em Temps Modernes um dos artigos da Era da suspeita. Por quê?
SARRAUTE: Publicou o primeiro e o segundo artigo do livro. Recusou o terceiro, “Conversa e subconversa”.

BM: Mas por que ele recusou?
SARRAUTE: Porque ia contra tudo o que ele e Simone de Beauvoir escreviam, contra aqueles diálogos à maneira antiga.

BM: A senhora disse que o movimento do nouveau roman teve de positivo o fato de chamar a atenção do público para escritores que reivindicavam a liberdade da forma, mas que não existia nada de comum entre Claude Simon, Robbe-Grillet, Michel Butor e a senhora…
SARRAUTE: De comum só havia a reivindicação de liberdade formal. Cada um trabalhava no seu canto e de um modo bastante diferente.

BM: Como aconteceu o primeiro encontro?
SARRAUTE: O primeiro encontro foi entre mim e Robbe Grillet no Château d’Eu. Ele se interessou por A era da suspeita e queria escrever um artigo sobre o livro na revista Critique. Era bem mais conhecido do que eu na época.

BM: E a expressão nouveau roman?
SARRAUTE: A expressão foi empregada por Emile Henriot, depois da reedição de Tropismos pela Minuit e da publicação de O ciúme de Robbe-Grillet. Emile Henriot, que, aliás, não gostava de nenhum dos dois livros, disse: “É o nouveau roman”, e Robbe-Grillet se apropriou da frase para lançar o movimento.

BM: Como foi que ele o lançou?
SARRAUTE: Não sei. Não me lembro. Ele dirigia a editora Minuit com Jérôme Lindon.

BM: E foi nesse momento que a senhora encontrou Claude Simon…
SARRAUTE: Não. Encontrei Claude Simon bem mais tarde, em 1982, em Nova York.

BM: E Marguerite Duras?
SARRAUTE: Eu era amiga dela.

BM: Duras pertencia ao movimento?
SARRAUTE: Não, não quis entrar. Gosto muito dela, muito…

BM: Quando a senhora fala das etapas na elaboração do seu trabalho, diz que, na primeira etapa, encontra o tema; na segunda, escreve do começo ao fim para obter o ritmo; e, na terceira, retrabalha tudo, palavra por palavra, vírgula por vírgula…
SARRAUTE: É o que eu fazia antigamente.

BM: Como é que a senhora faz agora?
SARRAUTE: Agora, escrevo pedacinho por pedacinho.

BM: Ici (“Aqui”), foi pedacinho por pedacinho?
SARRAUTE: Aqui e todos os precedentes, desde O uso da palavra. Antes, eu escrevia de cabo a rabo para ter os temas, os movimentos, e depois recomeçava tudo, retrabalhando página por página.

BM: Por que a senhora mudou? Alguma razão literária?
SARRAUTE: Porque eu envelheci. Tinha medo de não poder acabar, escrever trezentas páginas que ficariam inacabadas. Queria ter certeza, a cada passo, de que algo já havia sido feito.

BM: Como é que a senhora encontra o tema? ou é por ele encontrada?
SARRAUTE: O tema se impõe.

BM: Como é que a escrita se organiza, segundo um plano pré-traçado ou não?
SARRAUTE: Anoto primeiramente num caderno os temas, as sensações etc. Depois, escrevo com uma caneta Bic numa folha branca. A coisa se faz sem plano, à medida que vou escrevendo.

BM: A senhora afirma que o ritmo é fundamental para seu texto. Seria correto dizer que a senhora faz uma música que o músico não faz e só o poeta sabe fazer?
SARRAUTE: Que bom ouvir isso! Só que eu não sei julgar o meu próprio trabalho. Não tenho a distância suficiente.

BM: Ouvi músicos, autores de livros, de romances, dizerem que o que eles faziam era música. Pois bem, eu nunca achei que fosse verdade. Estou me referindo a grandes músicos, como Chico Buarque, por exemplo. Tenho a sensação de que só o poeta sabe fazer música com o texto.
SARRAUTE: Evidentemente, porque se trata de empregar a linguagem, e não as notas musicais.

BM: Colette dizia que a frase bonita, o belo, é perigoso para um escritor. A senhora diz a mesma coisa. Poderia explicar por quê?
SARRAUTE: Escrevi sobre isso um texto enorme: Entre la vie et la mort (“Entre a vida e a morte”). Quando o autor trabalha e retrabalha a frase e ela se torna bela demais, perde o contato com a sensação que lhe deu origem. A frase se torna morta, ela responde a um cânone de beleza. É perigoso. É preciso então começar tudo de novo, voltar à sensação para que a frase viva. O que é a beleza? A beleza responde a algo de muito acadêmico. Trata-se antes de procurar uma determinada sensação, de ficar o mais perto possível dela e depois de exprimi-la, fazê-la viver, transmiti-la através da escrita.

BM: Existe para a senhora uma diferença entre a poesia e o romance?
SARRAUTE: Nenhuma, agora que já não se usa a rima.

BM: Isso vale para todos os romances?
SARRAUTE: Para alguns, os que não se diferenciam da poesia.

BM: O seu último livro, Aqui, não entra em nenhum gênero literário. O que é que a senhora pensa da classificação das obras em gênero?
SARRAUTE: Eu ignoro. Isso, aliás, não me interessa. Quando escrevo, não sei como o livro será classificado. No Aqui, eu não pus nada na capa, nem ensaio e nem romance, porque não sei o que é.

BM: O que a senhora pensa da relação dos editores com os escritores na França?
SARRAUTE: Tenho excelentes relações com meu editor. Ele me publicou durante muito tempo. E isso quando eu não vendia. É a mesma coisa nos Estados Unidos. A maioria dos meus editores apostou em algo que não dava dinheiro.

BM: Quer dizer que eles desempenharam verdadeiramente o papel deles.
SARRAUTE: Correram o risco.

BM: O que é que faz um bom crítico literário na sua opinião?
SARRAUTE: É preciso que ele seja muito sensível à escrita em si, que saiba exprimir o que sente no contato com um livro e se aproxime do que o livro pretende dizer. O crítico deve ter a sensibilidade muito aguçada. Isso vale para cada livro que lê. É muito difícil ser um bom crítico, porque é necessário ler muito.

BM: A senhora está escrevendo outro livro?
SARRAUTE: Olha, eu acabo de publicar o Aqui. Comecei outro, mas é preciso respirar um pouco.

BM: Li que a senhora vai para os Estados Unidos.
SARRAUTE: A Universidade de Nova York me convidou para fazer conferências. Nos últimos anos, tenho feito isso. Respondo às perguntas dos estudantes. Também vou à Universidade Colúmbia. Vou ficar uma semana. Adoro Nova York e os Estados Unidos em geral. Estou felicíssima de ir.

BM: E para o Brasil, a senhora gostaria de ir?
SARRAUTE: Adoraria. Estive no Brasil em 1966. Fiquei muito tempo.

BM: Onde isso?
SARRAUTE: Na Bahia. Eu fui ver o Jorge Amado. Ele me deu uma estatuetazinha que ainda tenho aqui, aliás. A casa dele era linda!

BM: O que foi que a agradou na Bahia?
SARRAUTE: O mercado e a cidade, muito bonita. Depois de Salvador, fui para o Recife.

BM: A senhora encontrou Gilberto Freyre, o autor de Casa-grande & senzala? E o livro dele, a senhora leu?
SARRAUTE: O livro, eu conheço. Gilberto Freyre, não cheguei a encontrar.

BM: Existe agora uma fundação em Recife com o nome dele, e eles lá estudam os trópicos.
SARRAUTE: E não os tropismos…

BM: Pois é. (Risos)
SARRAUTE: Estou procurando me lembrar de todas as cidades do Brasil que conheci.

BM: O Rio certamente.
SARRAUTE: Sim. Fiquei oito dias lá.

BM: O seu editor brasileiro é do Rio, a Nova Fronteira. E a senhora gostou da cidade?
SARRAUTE: Muito. Da baía, claro. É no Rio que existe uma praia chamada Copacabana, não é?

BM: Claro.
SARRAUTE: Foi lá que eu estive, num hotel.

BM: Deve ter sido o Copacabana Palace.
SARRAUTE: Era um hotel muito clássico, maravilhoso.

BM: A senhora certamente viu o Cristo. Foi um presente dos franceses para os brasileiros. Sabia? É um Cristo com olhos de mestiço. E Clarice Lispector, a senhora conhece? A escritora brasileira que também tentou dar conta dos movimentos interiores e rompeu com a ideia de intriga tradicional? Foi publicada pela Editions des Femmes.
SARRAUTE: Não, eu não conheço.

BM: Será que eu não a estou cansando?
SARRAUTE: Você ainda tem muitas perguntas?

BM: Não, nós estamos chegando no fim da entrevista. Gostaria ainda de saber o que significa para a senhora entrar na Pléiade.
SARRAUTE: É agradável, significa que todos os meus textos vão estar juntos, o que é muito bom.

BM: Proust diz que ele passou a não mais temer a morte a partir do momento em que se deu conta de que ia fazer uma obra. O que a senhora acha disso?
SARRAUTE: Acho muito estranho.

BM: Por quê?
SARRAUTE: Porque a obra não pode me compensar da desaparição de tudo, ela não pode substituir a vida. A morte é outra coisa para mim. Não há nenhuma relação.

BM: A senhora declarou que não gosta de ser entrevistada a propósito do último livro que escreveu, nem a propósito da sua vida. Sobre o que a senhora deseja falar quando é entrevistada?
SARRAUTE: Não gosto de entrevistas. É muito difícil explicar numa linguagem jornalística o que eu só fiz com muito trabalho. Impossível comentar o meu próprio livro.

BM: Eu não vou pedir isso à senhora.
SARRAUTE: Também não gosto de falar da minha vida privada.

BM: Por que a senhora dá entrevistas?
SARRAUTE: Porque acho que, quando a gente publica um livro, tem de entrar no jogo – ou não publica. Dou entrevistas, mas confesso a você que não gosto.