Nada é mais contrário ao sentimento amoroso do que o machismo

Nada é mais contrário ao sentimento amoroso do que o machismo

 

P- É possível conciliar casamento e liberdade? Existe uma arte do casamento?

BM-A geração que fez a revolução sexual questionava o casamento. Mas há dois grandes escritores franceses que se casaram, naquela época, e estão casados até hoje, Philippe Sollers e Julia Kristeva. Em 2015,  eles publicaram un livro cujo titulo é O casamento considerado como uma das belas artes. A comparação entre o casamento e a arte faz sentido porque o casamento como a arte implica uma contínua reinvenção. Isso só acontece se houver liberdade. Octavio Paz inclusive diz que o amor é uma aposta na liberdade. Acrescenta que o verdadeiro amor é uma jóia rara, requer a generosidade e suporta a espera. Um bom exemplo está na Odisséia. Penélope espera Ulisses, incansavelmente,  durante toda a errância dele.

 

P- Com tantas possibilidades de relacionamento que existem hoje, o casamento tradicional ainda faz sentido?

BM- O casamento deixou de ser um destino depois da revolução sexual dos anos sessenta. O mesmo pode ser dito em relação à maternidade. Nós nos tornamos livres para casar ou não…para ter filhos ou não. Isso evidentemente foi um grande avanço. Agora, a maior liberdade será alcançada quando, além da liberdade sexual, nós tivermos  liberdade subjetiva.  Isso posto, não existe regra geral. Há pessoas para quem o até que a morte nos separe é necessário. Trata-se evidentemente de uma jura difícil de se realizar porque a roda da vida não para e o que me convém hoje pode não me convir amanhã.

 

P- A fidelidade é importante no casamento?

BM-A fidelidade é o ideal dos que se amam, mas este ideal é raramente atingido. Isso se explica pela dissociação que pode existir entre o amor e o desejo. O ser amado é único, mas o desejo é errante e o  objeto do desejo pode mudar. Quem se casa por amor aceita o desafio de não mudar de idéia durante décadas. O que é obviamente problemático porque pela natureza do desejo, a infidelidade nos ronda. Quem casa está exposto ao adultério.

Nem sempre é possível resistir à paixão. A exemplo disso, um senhor bem casado de setenta anos que se apaixonou loucamente por uma moça e me escreveu perguntando se  devia ou não se declarar. Podia dizer que não ? A paixão propiciava a ele a  ilusão da juventude e ele talvez não tivesse como renunciar a esta ilusão sem consequências graves. Quando Don Quixote, pressionado pelos familiares e amigos, abriu mão de ser um cavaleiro andante e aceitou ser Don Quijano, ele morreu.

A paixão suspende a realidade e nós desejamos isso. Todos nós temos algo da Bovary, a encarnação mesma do adultério. Ao escrever o romance, Flaubert se queixou inúmeras vezes : « A Bovary me aborrece »,  « Este assunto burguês me enoja », « Maldita idéia de escolher um tema como este ». No entanto, ao terminar o livro, ele declarou : « A  Bovary sou eu », tornando pública a sua identificação com a personagem.

Quando o romance foi editado,  o escândalo foi tal que processaram Flaubert por ofensa à moral pública e à religião. Acusavam-no de ter glorificado o adultério, além de ter descrito cenas de sexo. Hoje, nenhum escritor seria processado pela mesma razão. Já ninguém ignora que, além de eterno, o drama da Bovary, é moderno.

O descompasso entre o ideal do amor e a  realidade é tal que o adultério está sempre no ar. Como diz Octavio Paz, o amor é uma paixão que quase todos veneram e  poucos vivem realmente. A exclusividade é a exigência ideal do amor, porém a infidelidade é comum na vida dos casais.

Claro que entre  a exclusividade e a promiscuidade há uma série de gradações e de nuances. A infidelidade pode ser consentida ou não, frequente ou ocasional. Quando é consentida e praticada por só um dos cônjuges, pode provocar sofrimento no outro. Quando os dois cônjuges são consentidamente infiéis, não se trata mais de paixão amorosa e sim de cumplicidade.

 

P-  O relacionamento aberto pode dar certo?

BM-A propósito do relacionamento aberto vou me referir aos franceses que foram mestres nisso. No século XVIII ele era frequente. O prédio, onde hoje fica em Paris o  Museu Picasso, foi construído por um conselheiro do rei para abrigar a própria família e a família do amante da sua esposa. Sollers e Kristeva se inspiraram nos libertinos. Para eles, a fidelidade sexual não é um requisito do casamento. Sollers escreveu Femmes e teve muitos casos. Isso não encomodou Kristeva. Tanto um quanto outro considera que não é preciso contar tudo e o segredo é fundamental. À diferença de Sartre e Simone de Beauvoir que eram contrários ao segredo.

 

P- A traição acaso pode ser considerada uma forma de mostrar para o cônjuge que algo vai mal no relacionamento?

BM-Pode, mas  é um recurso arriscado.

 

P- Existe sempre rivalidade entre os amantes?

BM- Não sempre, claro. Quem ama quer coincidir e, para isso,  pode abrir mão do que não é fundamental. O que acaba com o casamento é a rivalidade, a luta de prestígio, entre os cônjuges.

 

P-O amor é sempre cruel?

BM-O amor pode se tornar ódio. Um bom exemplo disso está no Otelo de Shakespeare. Tomado pelo ciúme, «um monstro que se autoengendra », Otelo mata Desdemona, que ele tanto amou. Há um sem número de exemplos da conversão do amor em ódio na literatura e na vida.

 

P- Estamos vendo uma mudança no comportamento das mulheres, que hoje combatem o machismo com mais veemência. Como combater o machismo eficazmente?

BM- O machismo se manifesta das mais variadas formas nas diferentes culturas. Conheço a brasileira, a árabe e a francesa. Sobre o machismo no Brasil, eu escrevi em O que é o amor, procurando mostrar como ele se manifesta na música popular, na literatura e no teatro. As peças de Nelson Rodrigues são bons exemplos e o consultório sentimental  que ele fez é bem machista. Sobre o machismo na cultura árabe, eu escrevi no O Papagaio e o Doutor – um romance que está sendo adaptado para o cinema nos Estados Unidos – e no romance sobre a imigração, Baal,  que saiu este ano e, graças ao qual eu participei da Conferência Internacional da Diáspora no Líbano. A supervalorização do sexo masculino e a desqualificação do feminino é impressionante na cultura árabe. Particularmente entre os muçulmanos.  A cultura francesa é a menos machista de todas e também por isso eu a adotei. Graças à sua educação, as francesas se fazem respeitar mais. O papel social delas é tradicionalmente importante. Nem por isso existe uma verdadeira igualdade entre os sexos

 

P- Quais os possíveis resultados de uma verdadeira liberação feminina nos relacionamentos, na maternidade, no mundo ?

BM- A mulher livre fará as escolhas que mais lhe convierem e, com isso, será mais feliz e mais generosa. A maternidade não pode ser obrigatória e, quando é assim, a mãe fica privada da alegria do convívio com o filho. Neste sentido houve progresso.

 

P-  Parece que o número de ataques contra as mulheres aumentou nos últimos tempos. Pode ser verdade ou apenas um aumento nas notificações. Os homens estariam se sentindo mais acuados e reagindo de forma violenta? Afirmar isso seria uma forma machismo?

BM- Pouco antes de morrer, o poeta Paulo Bonfim comentou comigo que a situação havia piorado e parece ser verdade. Mas eu não sei ao que se deve. Claro que é uma forma de machismo atribuir a violência masculina à liberação das mulheres. Nada  justifica a violência. Só que também não adianta bater de frente. Além de perigosa, a agressão é inútil.

 

P-A cacofonia produzida pela tecnologia atrapalha o amor e os relacionamentos ou, pelo contrário, ficou mais fácil entrar em contato com gente diferente e encontrar a pessoa amada, através de aplicativos e redes sociais ?

BM- Posso responder à sua questão dizendo que ora a tecnologia atrapalha ora facilita. Analisei casos concretos durante sete anos nos meus consultórios sentimentais da Folha e da Veja.com, que depois foram publicados em livro pela Record (Fale com ela e Quem ama escuta). Os livros estão à disposição de quem quiser saber mais. Um deles inclusive vai ser publicado na França,  no próximo ano.

 

P- O narcisismo das selfs atrapalha o amor?

BM-O amante se espelha no amado e o amor sempre tem algo de narcísico. Mas ele não existe sem as palavras de amor e o recurso da self é limitado. Ninguém ama ninguém só por causa da imagem.

 

P- Você disse em uma entrevista que “o amor não suporta banalização”. Nós hoje estamos banalizando o amor? De que maneira?

BM- O amor não se confunde com o sexo e não  está ao alcance de todos, ele é sublime, permite alcançar a eternidade. Nasceu com os trovadores, como amor cortês, valorizando a mulher. Nada é mais contrário ao sentimento amoroso do que o machismo.

 

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Portal Revista Época, projeto Cidadão Global
São Paulo, 13 novembro 2019.