Nacionalismo X universalidade (1990)

Nacionalismo X universalidade (1990)

Betty Milan
Este texto integra a nova versão
do livro Isso é o país

Nacionalismo? Ora, não. De que serviria nos deixarmos catequizar por este ismo? Aderir à cultura e à política do fechamento como o major brasileiro nacionalista em Lisboa.

Tendo quebrado o salto de sua bota, vai a uma sapataria e ordena que seja ele trocado. Indo depois buscar os calçados, vê que o sapateiro havia posto o salto da esquerda à direita e vice-versa.

— Isso, agora —, diz o major, exigindo satisfações.
— Trocaire é trocaire —, responde o português, acrescentando que o outro devia ter pedido que substituísse o salto. Mais do que furioso, indignado, o nosso homem desiste das botas e vai embora, maldizendo o fato de ter topado com um louco.

Recusa a diferença e se fecha para o outro, aprisionando- o como pode: na imagem do louco, do incompetente etc.

Fosse o major capaz de humor, perceberia que a relação do sapateiro com a língua é inteiramente diversa da sua, e que não é a bota, mas a língua, que faz o major.

Do lado português, a insistência no sentido exato das palavras. Do nosso, o uso delas até para dizer o contrário do que significam. Nós, brasileiros, acaso não descartamos um assunto, dizendo que sobre ele “conversaremos amanhã”? Não nos despedimos com um “apareça lá em casa” equivalente a “queira, por favor, não aparecer”?

O império do idioma português se presta à viagem, desde que o viajante seja capaz de se surpreender e tenha ouvidos que não sejam moucos. Que os portugueses se deixem nortear pela exigência do acerto, e os brasileiros, como Oswald de Andrade, falem na contribuição milionária de todos os erros, enquanto os de África outra coisa nos dirão. Que uns possam escutar os outros, não só para fazer valer a diferença, mas até para superar a identidade. É preciso deixar de ser um povo de pobres com mentalidade de rico para nos enriquecer com a lusofonia; considerar que é tão nobre a referência a um autor de nossa língua quanto a um de língua estrangeira, e assim, como Eduardo Lourenço, privilegiar o autor ao invés do divulgador.

Isso acaso significa uma nova clausura? Antes a valorização do nacional, que não implica necessariamente as tradicionais restrições alfandegárias e, no Brasil, se dá através da já tão falada antropofagia, a devoração.

Ântropo ou heterofagia. Sim, é de engolir o Outro que se trata. Engolir as outras culturas para transfigurá-las, recriando-nos incessantemente e assim cada vez mais sendo nós mesmos. Isso é fazer de conta e é ser ladino, ladino-americano, senão ladino-amefricano, já que tanto devemos à África: os modos lânguidos de falar, as maneiras e o culto suntuoso dos orixás.

A ladinidade nos caracteriza porque o abre-te-sésamo da nossa cultura é a palavra “brincar”, que talvez tenha sido a salvação de quem nos colonizava repetindo fervorosamente a palavra portuguesa “saudade”, tão chave quanto o droit francês, o fairplay inglês o el honor espanhol.

Brincando, nós, brasileiros, inventamos e reinventamos a identidade. Evitando os dogmas e exaltando a ambivalência, nos certificamos de ser uma Nação. Quererá isso dizer que somos crianças grandes ou que temos uma contracultura de massa, que a transformação alegre do tabu em totem é o nosso primeiro motor e não há mesmo lugar entre nós para “o índio de tocheiro”, “o índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de Dom Antônio de Mariz”?

A antropofagia é que nos une, ela é propriamente continental. Ouvindo to be, respondemos tupi, mas nem mesmo o tupi or not tupi nos diz respeito, porque não obedecemos ao princípio da não-contradição.

Que ser é este, aliás, que não é tubi nem tupi? O tubiniquim que recusa a política do isto ou aquilo, só quer as diferenças e promove a inclusão. Um ser contrário a todos os nacionalismos, que de tão moderno parece arcaico e de tão precoce, irreal. O tubiniquim quer a própria língua, a do outro, e se quer através de uma língua livre de todas as inquisições; ele existe e é universal.

Diferocracia é o que ele pede, recusando-se a considerar que o outro, por ser outro, é louco. Inventando uma lógica que não obedece ao princípio da não-contradição, sustentando com ela a idéia de que a alegria é a prova dos nove e triste é o Brasil oficial.