Gregory Rabassa: Traduzir é uma arte

Gregory Rabassa: Traduzir é uma arte

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como “O tradutor de Márquez e Machado”.
Folha de S. Paulo
, 15/03/1998

Desde que traduziu Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, Gregory Rabassa é conhecido nos Estados Unidos como “O” tradutor. Além de traduzir do espanhol, ele traduz do português para o inglês. Entre os seus autores estão Jorge Amado, Clarice Lispector e Machado de Assis. Gregory Rabassa, filho de um imigrante cubano, nasceu em 1922 em Nova York. Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como criptógrafo. Depois, formou-se na Universidade Colúmbia, onde foi professor por duas décadas antes de passar para o Departamento de Tradução do Queens College, também em Nova York. Prêmio Nacional do Livro de 1967 pela tradução de O jogo de amarelinha (Hopscotch), do argentino Julio Cortázar (1914-1984), e a Medalha Nacional das Artes em 2006. Em 1965, foi traduzido e lançado no Brasil seu ensaio O negro na ficção brasileira.

Para saber o que significa traduzir do português para o inglês e quais as dificuldades que a literatura brasileira encontra para se impor no mercado americano, fui entrevistar Gregory Rabassa na sua sala do Queens College, que fica nos arredores de Nova York.

Betty Milan: Quais autores você já traduziu?
Gregory Rabassa: Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Miguel Ángel Asturias, Jorge Amado e Clarice Lispector.

BM: Você então traduz do espanhol e do português?
RABASSA: Estudei as duas línguas.

BM: Você viveu nos países dessas línguas?
RABASSA: Estive no Brasil durante dois anos. Escrevi uma tese sobre o romance brasileiro. Entendo o português do Brasil, mas não o de Portugal.

BM: Também eu tenho dificuldade em compreender os portugueses. Gostaria de saber o que há de comum na sua opinião entre os autores latinos-americanos.
RABASSA: As lendas, o folclore. Acho que o conceito de América Latina é artificial. O Brasil é tão diferente da América espanhola quanto dos Estados Unidos. São três culturas diferentes. Parecem iguais por causa das origens étnicas e da arquitetura.

BM: Qual é a especificidade das culturas latino-americanas de língua portuguesa e de língua espanhola?
RABASSA: Acho que é mais fácil escrever certas coisas em português do que em espanhol. A língua portuguesa do Brasil é uma língua em aberto. O espanhol é uma saia justa. A grandeza de um autor da língua portuguesa está em saber controlar a língua. A de um autor de língua espanhola está em conseguir romper com ela. São duas posições inteiramente diferentes. O Jorge Amado diz que ele se deixa levar pela língua. Já o Gabriel García Márquez precisa romper com ela.

BM: Por que a literatura espanhola teve maior penetração no mundo do que a brasileira?
RABASSA: A geografia deve explicar isso. Porfírio Díaz, o ditador do México, dizia: “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”. Os europeus veem a América Latina com os olhos dos americanos, que estão mais próximos do México e de Cuba. Seja como for, os melhores escritores que eu conheço são brasileiros: Machado de Assis, por exemplo. O que explica a maior penetração da literatura espanhola nos Estados Unidos é o contato maior que estabelecem. Isso, sim, é importante.

BM: Autores como Jorge Amado e Gabriel García Márquez foram muito bem-aceitos no mundo inteiro. Por quê?
RABASSA: Vou responder com um clichê: escreveram bons livros. Além disso, existe o realismo mágico. O Jorge Amado faz a fantasia se tornar realidade, uma estátua adquirir vida. O engraçado é que a estátua é católica e, quando se torna viva, passa a ser um orixá. Ou seja, o santo católico é morto enquanto o africano é dotado de vida. Jorge Amado é um bom narrador e Gabriel García Márquez também. As pessoas projetam as suas próprias histórias nas de Márquez, fazem interpretações.

BM: Quais os maiores problemas que você encontrou ao traduzir do português e do espanhol para o inglês? Que construções passam com maior dificuldade para o inglês?
RABASSA: É mais difícil traduzir do português pela liberdade dos brasileiros com a língua. Brincam com ela.

BM: Talvez seja uma das razões pelas quais a nossa literatura é menos conhecida no mundo…
RABASSA: Guimarães Rosa é intraduzível.

BM: O Rosa foi traduzido para o inglês…
RABASSA: Só que a tradução é ruim. O espanhol é mais fácil do que o português. Gabriel García Márquez disse mesmo que preferiu a versão inglesa de Cem anos de solidão ao original.

BM: Estou aqui porque entrei numa livraria de Nova York, abri a sua tradução e fiquei extasiada ao ler a primeira frase… Mas, voltando à questão, gostaria de saber que problemas encontrou ao traduzir para o inglês.
RABASSA: No caso do português, o vocabulário. Com Jorge Amado, foi complicado traduzir as palavras relativas ao sexo do homem. Em português, há muitos termos. Em inglês, não, e eu precisava ficar me repetindo…

BM: Isso porque a cultura de língua inglesa é puritana. A brasileira, não.
RABASSA: Verdade. Também é difícil traduzir as expressões populares. Elas não “passam” de uma língua para outra.

BM: Isso quer dizer que é mais fácil traduzir autores que não usam a língua popular?
RABASSA: Claro. Um escritor que inventa, como Julio Cortázar, não é tão problemático. Porque a gente também pode inventar em inglês. Já as expressões idiomáticas, a gente não traduz, porque o contexto social é diferente. Em inglês, por exemplo, nós usamos a palavra bastard para xingar alguém. Nas outras línguas, “bastardo” não é um xingamento. Em espanhol, é a palavra cabrón que serve para injuriar.

BM: Cabrón quer dizer o quê?
RABASSA: Um homem que foi traído pela mulher.

BM: Cornudo.
RABASSA: Isso aí, cornudo.

BM: Cabrón é xingamento em espanhol, porque, na cultura espanhola, a noção de honra é central. Há coisas que não podem ser traduzidas, porque não têm o equivalente cultural. Um francês se ridicularizaria se dissesse cabrón. O ciúme não é bem-visto na França.
RABASSA: Pois é.

BM: O que o tradutor deve fazer para que a sua tradução seja boa?
RABASSA: Primeiramente, fazer o significado passar para a outra língua. Depois, o espírito. Às vezes, uma palavra tem o mesmo significado e não tem o mesmo espírito. Em terceiro lugar, a tradução deve soar bem. Não é fácil conseguir isso tudo. O García Márquez escreve tão bem que é bem traduzido. O grande escritor indica ao tradutor a direção a ser seguida.

BM: O senhor também é professor de literatura. Na sua opinião, o que diferencia o escritor do crítico?
RABASSA: O escritor não procede como o universitário, muda o texto como um artista, como um pintor põe as cores no quadro. O escritor está para o crítico como o pássaro para o ornitologista, que não pode voar.

BM: Por isso, o crítico não tem como impor uma obra… O senhor já traduziu poesia?
RABASSA: Só Vinicius.

BM: Quais as grandes traduções do século XX para o inglês?
RABASSA: As traduções dos clássicos são boas. Fico satisfeito com isso quando me valho delas para ensinar. São boas, porque as pessoas estão dando mais atenção para a tradução, que vai se tornando mais precisa e artística.

BM: Há muitas escolas de tradução nos EUA?
RABASSA: Não sei se a gente pode realmente ensinar tradução. Traduzir não é um ofício, mas uma arte. Podemos apenas ser bons guias, mas há departamentos de tradução no país inteiro.

BM: E você tanto ensina literatura quanto tradução…
RABASSA: Gostaria de ensinar a traduzir do português, porém não há alunos.

BM: Como é a situação dos tradutores aqui?
RABASSA: Está melhorando, só que existe hoje um problema comercial. Não há mais quem queira publicar traduções. Primeiramente, porque não vendem e, em segundo lugar, porque é preciso pagar pela tradução. É difícil introduzir um autor novo.

BM: Na segunda metade do século XX, a literatura perdeu espaço. E agora, como vai ser?
RABASSA: Posso ser negativo demais na resposta… Acho que a leitura vai se transformar em hábito de uma minoria.

BM: O que a literatura dá nenhuma outra forma de expressão artística pode dar…
RABASSA: A literatura faz pensar, porém as pessoas não estão mais tão interessadas nisso.

BM: Então, só para os happy few