Curriculum vitae até quatro anos (anos 1970)

Curriculum vitae até quatro anos (anos 1970)

Betty Milan

Elizabeth, na tradição da monarquia inglesa. Na infância, Betty, a rima fácil de vedete. Púbere, adota Liz. Mulher, atende a qualquer Bé.

Contrafeita, viu a luz no dia 5 de agosto de 1944. Em sinal de protesto, não chorou. Mascate, o avô paterno se descabela: quem não chora não mama. Na tumba, nos confins do Líbano, o bisavô estrebucha: a jovem neta renega o espírito combativo da raça. A progenitora no entanto se compraz. No nome realiza a monarca que não foi, na filha o menino que não teve.

O monarca cresce atrevido, tem bronca da vida. O leite não serve, o horário também não. De dia dorme, à noite chora. Os ponteiros da barriga atentam contra a produção. Às seis horas, quando o pai se levanta da noite maldita, o monarca concilia o sono dos justos.

A primeira palavra aprendida foi não. Nela se exercita até o presente. Na criancice se dizia brabeza, no Rorschach deu oposicionismo.

Com ano e meio já era carnívora. 1945, fim da guerra, carne era mercadoria de luxo. O pai se deslocava de Vila Matilde, o subúrbio onde morava e exercia a sua medicina de interior, até os mercados da capital. Ia comprar alguns gramas de carne para a sua delicinha.

Em 1947, a mãe, já cega de um olho, se vê ameaçada de perder o outro, atacado pela mesma doença: uveíte. O marido resolve levá-la para os EUA. De uma ex-paciente compra um Nash e revende no câmbio negro. A diferença somada ao dinheiro da venda de uma baratinha Ford, do equipamento e do ponto do consultório, da máquina de costura, de um requintado chapéu verde de seda que a esposa nunca havia posto e de um rádio em desuso revertem na quantia necessária. O triângulo se desloca para a América.

Na América a vida é parcimônia. Macarrão no almoço e no jantar. Em dia de festa, meat ball. Mas para a heroína ninguém poupa esforços: steak todo dia. Ainda assim, só come aboletada nos muros do centro de patinação no gelo.

Sabe dizer duas coisas e com isso se basta: I am from Brazil, I want ice cream Um belo dia, enquanto a mãe faz compras no Macy’s, desaparece. Encontram-na numa cafeteria. Tomando sorvete, claro. Acaso não era o dia do seu aniversário? Quatro anos.