Carmen Miranda (1985)

Carmen Miranda (1985)

Betty Milan
Este texto integra a nova versão
do livro Isso é o país

A hostilidade da cultura oficial relativamente à popular é evidente no caso de Carmen Miranda, chamada de “falsa baiana” pela crítica, que não suportava o fato de sermos representados no exterior pela baiana — a preta —, como “macaquitos”. A crítica teria certamente preferido ver projetado lá fora o Edifício Martinelli, “o maior arranha-céu da América do Sul” nos anos 1920, ou algum equivalente.

Miranda levava para fora o que temos de mais autêntico. Carnavalizando a baiana, exportava o brincar. Na verdade, ela só fazia o que faz o Carnaval, que reinventa todos os anos a baiana para perpetuar a tradição. Carmen Miranda era ladina, capaz de ser carnavalesca fora do Carnaval e afirmar que a brasilidade se exprime através do brincar.

Se na sua época ela era “falsa” porque exportava a preta, hoje ela o é porque figura o país como paraíso de araras e abacaxis. Além de racista e classista, a crítica desconhece o Brasil, ignora o privilégio da fantasia do paraíso na cultura popular.

À diferença da atriz, a crítica quer ser engajada porque está de todo afastada do povo, cujo imaginário ela desautoriza. Miranda embarcava na do paraíso, da baiana e do brincar, porque a sua sensibilidade e a do país ladino eram a mesma. Assim, no enredo de 1981, a Mangueira fez a apologia de Juscelino Kubitschek e da baiana, apresentando esta como a mãe do presidente.

A ladinidade de Carmen Miranda era tamanha que ela transformava as lojas nova-iorquinas no paraíso do brincar, adquirindo tudo o que via para criar as suas roupas e até mesmo recriar as de lá — capas de lamê ao invés das de borracha. A moda Miranda inspirou modelos de sucesso e a Sacks Fifth Avenue dispôs de todas as vitrines para lançá-la.  A atriz era única, e a crítica americana se dizia incapaz de aplicar-lhe os rótulos usuais, nem wampf, nem glamour, nem propriamente it.

Assim, através da diferença, virou estrela. O sucesso de Carmen é o da brasilidade, ainda que o grupo do black-tie dissesse, para puni-la, que estava americanizada. A Brazilian Bombshell usou e abusou do direito de ser internacional. De tão brasileira, no seu enterro, era o samba Adeus batucada que o povo inteiro cantava.

Adeus, adeus
Meu pandeiro de bamba
Tamborim de samba
Já é de madrugada
Vou-me embora chorando
com meu coração sorrindo
E vou deixar todo mundo
Valorizando a batucada

Sinval Silva

À diferença da cultura ladina, a oficial é repetitiva e faz hoje a Joãosinho Trinta a mesma crítica que fazia a Carmen Miranda, acusando-a de “americanizada” e “falsa baiana”. Diz que “não são de raiz” os carnavais daquele, como dizia que eram falsas as baianas desta; afirma que o enredo “O Carnaval do Brasil, a oitava maravilha do mundo” não pode ser considerado brasileiro, ignorando que o carnavalesco se vale dos outros teatros para fazer o seu cenário — como Carmen Miranda se valia dos trajes alheios.

A cultura oficial é xenófoba; a outra, através da sua irreverência, reverencia o que é estrangeiro, assimila, criando e recriando o brasileiro. A japonesa do Brasil não é como a do Japão. Desconhece o recato, porque nasceu para a exibição. A cultura oficial vê na diferença uma ameaça, pois só reconhece a tradição no que se repete de modo religiosamente idêntico, só sabe preservar de modo rígido, através dos mesmos atos. A sua vocação é a clausura, e a sua promessa é a de que este país, quase continente, se transformará numa ilha. A cultura do brincar vive da sua diferenciação incessante, dos deslocamentos e das mais inesperadas condensações: Cinderela negra ou gueixa loura, por exemplo. A identidade nacional, para ela, se produz no ato de abrasileirar a diferença e a sua tendência é a de se internacionalizar.

A clausura diz da cultura do brincar que ela não é séria. Para desmenti-la, basta contemplar as várias etapas que uma escola de samba deve vencer até o desfile. O empenho — “tem uns por amor, outros por mais amor ainda” —, a solidariedade — “o que tocar pra um, toca pra todo mundo” —, a tenacidade, que sustenta meses de trabalho para produzir a extraordinária magia. A eficiência é tamanha que, apesar da inexistência de ensaios e do número de componentes (cerca de 3 mil), o desfile transcorre conforme o esperado e bem merece ser considerado o verdadeiro milagre brasileiro, como diz Joãosinho Trinta.

A cultura ladina só não é sisuda, só se opõe ao que existe de dogmático, de categórico e de inibidor no sério. Sabendo que nunca há uma só versão dos fatos, ela promove a ambivalência e a invenção. Assim, todos os anos, a escola de samba joga fora fantasias, adereços, alegorias. Se não, como poderia ele se reinventar?