Candelária, sem número (1998)

Candelária, sem número (1998)

Betty Milan
Este texto, apresentado no Congresso
da Escola Lacaniana do Rio de Janeiro, em 1998,
faz parte da nova versão do livro Isso é o país

O nome do menino ora é Toquinho ora é Manchinha, dependendo do bando em que está. O nome dele é o que lhe dão, circunstancial.

O endereço do menino? Candelária, sem número, por exemplo, ou então Praça da Sé. Nemo, esse ninguém, não tem endereço certo. Por força das circunstâncias, é um nômade.

O menino é dito “de rua”, como se estivesse fadado a não sair dela; e, assim, na inconsciência do nosso dito, nós o condenamos ao traficante, ao justiceiro ou à polícia. Sua vida depende do que dizemos.

Isso foi o que Joãosinho Trinta me lembrou logo de saída no barracão da Beija-Flor, invertendo, no diálogo, uma pergunta que eu fiz:

— Gostaria de entrevistar os meninos da Flor do Amanhã, João.
— Tiveram que sair do Rio…
— O que foi que eles aprontaram?
— Ora, você devia me perguntar o que foi que os outros aprontaram com eles —, me respondeu o carnavalesco sabiamente.

A inversão deslocou a culpa dos meninos para os outros, e, com isso, me aproximou logo dos que foram de rua e depois os Meninos do João, passaram da Candelária para o Espaço Flor do Amanhã, que surgiu a partir da organização da escola de samba dos pivetes, tendo sua integração na sociedade como meta. Sim, porque o carnavalesco, desacreditando da política autoritária das Secretarias do Menor, primeiro oferecia à criança o Carnaval, a possibilidade de brincar, para só depois a introduzir numa outra vereda.

Situado no centro do Rio de Janeiro, à Rua Barão de Tefé, numa doca construída por Dom Pedro II, o Espaço servia de ponto de referência para os meninos de vários bairros do Rio — os participantes do desfile — e, alternativamente, congregava, para fazer um show, 30 crianças da Zona Sul, os “mauricinhos”, 30 da favela e as 30 originárias da Candelária.

Sede das atividades da escola de samba e do grupo de show, irradia-se para a favela, onde realizava um trabalho preventivo — sem o qual o abandono das crianças é inevitável — e atuava igualmente nos bairros. Aí sua ação se desenvolvia, por um lado, junto às Associações dos Moradores, e, por outro, junto às empresas que financiavam a reconstrução da doca. Adentrando a cidade, o Espaço Flor do Amanhã arregimentava a sociedade civil para tirar as crianças da rua e dar a elas uma casa. Sem nunca realizar isso de modo autoritário. Os Meninos do João estiveram na Candelária até que o assassinato de um deles precipitou no bando a decisão de viver numa escola. O carnavalesco teve a sabedoria de não lhes impor uma casa, indicando, com o seu modo de agir, que A CASA NÃO DEVE SER UMA IMPOSIÇÃO, MAS UMA CONQUISTA.

A passagem de um lugar para o outro resultou de uma demanda dos próprios meninos, e é preciso que assim seja, para que a integração possa se fazer. NÃO DESEJAR PELA CRIANÇA, MAS DEIXAR QUE O DESEJO DELA SE MANIFESTE E IR AO ENCONTRO DO MESMO é um dos imperativos da ação.

Isso significa que, ACIMA DE TUDO, É PRECISO ESCUTAR. A surdez pode precipitar a ruptura ou desencadear a violência. Assim, no ano passado, duas semanas antes do desfile da escola, os meninos destruíram as alegorias todas por não terem sido idealizadas e propostas por eles mesmos.

O entendimento só é possível se lhes deixarmos a iniciativa, que aliás sempre foi o maior trunfo dos abandonados, a condição mesma da sua existência. A rua ensina a encontrar por si só as soluções requeridas e este ensinamento deve ser valorizado.

Trata-se, portanto, de ACEITAR A CULTURA DA RUA. Isso significará, por exemplo, abrir mão de um planejamento a longo prazo, porque a criança abandonada é imediatista. O preparo do seu desfile de Carnaval não pode se fazer com meses de antecedência, como o desfile das outras escolas. Tudo se faz de última hora, fantasia, adereço ou alegoria. O imediatismo e a improvisação são para os meninos “de rua” a condição mesma da sua sobrevida. O tempo deles não é o da casa, mas o do roubo e da fuga, a jato.

A criança que vive na rua em tudo difere da outra. Pode quem só come quando tem o que comer ser moderado à mesa? Quem dispõe do território inteiro da cidade, ora dorme sob a marquise, ora na praça, se limitar ao espaço da casa? Pode quem na rua grita para ser ouvido “falar baixo como se deve”? Acreditar na Lei se nunca a teve a seu favor?

A cultura da rua é outra e desconhecida por nós. Quem se dispõe a trabalhar com os abandonados deve primeiro ser um aprendiz. Só depois terá como ensinar o comer, o dormir, o falar e o respeito à Lei. Isso levou Joãosinho Trinta a abrir, através de convênios com a Universidade, o Espaço Flor do Amanhã para o universitário que quer saber da rua e nela interferir. Inaugurou a primeira escola onde não há mestre algum e quem ensina é a criança, não há livros e a escuta é o recurso do aprendizado. Uma escola onde o doutor irá para se formar brasileiro e eventualmente desfilar na ala que a escola de samba dos pivetes reservar para ele: a ala do maior abandonado, mas ocupado. Isso porque, sem estar propriamente identificado com a criança, ele já terá descoberto que a cultura do brincar é o caminho da integração, o Carnaval é um recurso privilegiado para ensinar o prazer do corpo a quem só sabe do gozo do sexo e da droga, e o futebol pode servir para ensinar a Lei através da brincadeira.

O Espaço Flor do Amanhã é um modelo de ação porque ensina a respeitar a diferença e, assim, deixa a subjetividade aflorar, a das crianças “de rua” e a dos “mauricinhos”, a dos menores e a dos maiores. O seu projeto visa integrar os dois Brasis para efetivamente construir a Nação.