Baal IV

A lingua do escritor

 

1 –  Quando se deu conta de que queria ser escritora?

Sempre fui ligada na Literatura. Pensei mesmo em deixar a Faculdade de Medicina para fazer Letras. No ginásio, meu professor preferido era o de português e eu aprendi a língua decorando poesia. Sabia de cor o Navio Negreiro inteiro. De certa forma, ele inspirou Baal, o meu novo romance, que focaliza a escravidão, além da imigração. Omar, o protagonista, diz que o escravo  tinha sido despossuído de tudo e jogado no porão de um navio – sem ar, sem luz e sem água. A ele só era dado dançar e rezar para o Deus dos desgraçados.  Não escrevi  isso pensando no Navio Negreiro mas fui influenciada pelo poema.

 

2 – Quais são suas manias e obsessões literárias?

A mania é um ato compulsivo. Tenho a mania de anotar alguma coisa que me ocorre de repente, que eu vejo ou ouço para eventualmente usar depois em algum texto. Quando isso acontece, se eu não tiver um lápis ou uma caneta na bolsa, peço emprestado e me sirvo de qualquer papel que esteja ao meu alcance. Queira ou não estou sempre atenta e ouço até demais, razão pela qual eu preciso me isolar.

 

3 – Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?

A do meu próprio texto. Mas eu gosto muito de ler os clássicos, os precursores. Sêneca, Montaigne, Shakespeare, Flaubert, Joyce. Atualmente, tenho me debruçado sobre a literatura americana. O ano passado eu reli Moby Dick e fiquei deslumbrada. Os grandes escritores americanos são grandes porque antes deles teve Shakespeare.

 

4 – Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?

Uma biografia de Mahatma Ghandi.

 

5 – Quais as circunstâncias ideais para escrever?

Posso escrever em qualquer lugar e o barulho não me atrapalha. Quando era menina, escrevia na copa, olhando a cozinheira trabalhar. Mais tarde, na França, escrevia no bistrô. Naquele tempo, se fazia muito isso. Hoje, a França infelizmente se americanizou… Há circunstâncias em que eu escrevo para viver porque a vida se tornou insuportável e outras em que vivo para escrever, fico observando o que acontece à minha volta. Isso acontece sempre que eu viajo. 

 

6 – Quais as circunstâncias ideais de leitura?

Leitura requer silêncio. Até a música me atrapalha.

 

7 – O que considera um dia de trabalho produtivo?

A questão é difícil de responder. Fico feliz quando consigo dar forma a uma ideia através da escrita. Mas ficar na cama de manhã imaginando o texto também é produtivo.

 

8 – O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?

A imersão porque ela suspende a realidade e a gente não sabe do tempo que passa. Também tenho prazer quando me leio em voz alta. Faço bastante isso porque estilizo a oralidade. A leitura, em voz alta, me dá a garantia de que o texto soa bem, de que ele é musical. Como a maioria dos descendentes de imigrantes libaneses, eu fui privada da língua árabe e é possível que eu esteja sempre à procura da musicalidade desta língua. Os meus ancestrais consideravam que a integração seria melhor se nós aprendêssemos só o português, o inglês e o francês. Mas o árabe se impôs, apesar dos ancestrais. Isso, no começo, foi um problema porque eu era prisioneira da minha voz, que me distanciava da realidade. O escritor precisa gingar entre a voz em que ele se reconhece e o projeto a ser realizado. Não pode ficar fascinado por si mesmo como Narciso.

 

9 – Qual o maior inimigo de um escritor?

A vaidade. Por causa dela, o escritor pode fazer concessões que tiram a sua energia e a força do seu texto. Só o que interessa verdadeiramente é o texto e isso implica em muito trabalho. O que caracteriza o escritor é o trabalho que ele faz com a língua. Nem todo autor é um escritor apesar da confusão reinante.

 

10 – O que mais lhe incomoda no meio literário?

Quase não frequento. Tenho alguns amigos escritores de quem eu gosto verdadeiramente e, portanto não me incomodam.  

 

11 – Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.

Claudio Willer, que acaba de lançar Dias ácidos, Noites lisérgicas. O texto dele tem a força dos textos de Dias tranquilos em Clichy do Henry Miller, que foi uma das minhas referências quando escrevi Paris não acaba nunca.

 

12 – Um livro imprescindível e um descartável.

Imprescindível ? Os Ensaios de Montaigne. Descartáveis são os livros de auto-ajuda porque não existe regra geral para ser bem sucedido.

 

13 – Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?

O modo como se utiliza a língua, que é um tesouro e precisa ser explorada. Nenhum best seller faz isso. Inclusive porque os autores não sabem fazer. Só conhecem a língua da comunicação – sujeito, verbo e complemento. A língua do escritor não é esta e sim a que ele inventa. Foi isso que os modernistas fizeram. Mário de Andrade  atrelou a língua escrita à língua oral  e produziu uma literatura inteiramente original. Macunaíma é um livro eterno, ainda que ele não tenha emplacado no exterior. Tem como leitores possíveis todos os que nascem no mapa-mundi do Brasil desde que não haja o descaso atual pela literatura. Se o planeta resistir às mudanças climáticas a literatura volta a ser valorizada porque certas coisas só podem ser ditas através dela.

 

14 – Que assunto nunca entraria em sua literatura?

Todo assunto é bom. Depende de como é tratado. Me lembro de ter ouvido um crítico dizer que São Paulo não é uma cidade literária. Três romances meus foram inspirados pela capital paulista, que não é menos literária do que Paris. Nunca me esqueci de um sem abrigo que morava no Trianon e inspirou o monólogo de um dos personagens de Consolação : «  Não entrei na Faculdade de Medicina porque é tudo chiq-chiq, puf-puf, chiq-chiq, puf-puf. Se pagar, entra. E você não precisa fazer nada. Chega e diz: “— Quero ser médico”. Aí ele: “— Você me compra uma casa”. Você compra e depois entra. Tá pensando que é mentira? Tô falando a verdade. » O sem abrigo em questão era descendente de italianos vindos de Luca e, por causa dele, eu fui conhecer a cidade.

 

15 – Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?

Os cantos onde os mendigos da Avenida Paulista e dos arredores dormem. Quando fiz a pesquisa para escrever Consolação, eu conhecia todos eles. Por isso, a epígrafe do romance é um texto do Ginsberg : « santos os mendigos desconhecidos sofredores e fodidos/ santos os horrendos anjos humanos! » Quem mora perto da Paulista, anda vendo os mendigos e eu sinto vontade de pegar no colo. Não entendo por que não existe uma política pública para se ocupar deles.

 

16 – Quando a inspiração não vem…

Isso não me acontece. Inspiração eu tenho sempre e dificuldade de resolver um problema literário também. Para fazer Baal fiz 25 versões. Parece mentira mas não é, está tudo no computador.

 

17 – Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?

Octavio Paz, que eu tive o prazer de entrevistar sobre A Dupla Chama, um livro que ele escreveu pouco antes de morrer. Nenhum livro sobre o amor é melhor e a entrevista está publicada em A Força da Palavra, também editado pela Record.

 

18 – O que é um bom leitor?

Aquele que se surpreende e surpreende o escritor com algum comentário pertinente.

 

19 – O que te dá medo?

O medo.

 

20 – O que te faz feliz?

Escrever ou encontrar um amigo. O esporte também me deixa feliz. Na adolescência, eu participei do campeonato paulista de natação e tive o sexto lugar.

 

21 – Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?

Dúvida ? Sobre qual livro eu devo escrever. Tenho sempre vários projetos na cabeça e no computador.

Certeza? De que o livro acabou.

 

22 – Qual a sua maior preocupação ao escrever?

Não fico pre-ocupada. Me ocupo de escrever e depois reescrevo tantas vezes quantas necessárias. Leio, releio, escuto as críticas e me deixo orientar por elas.

 

23 – A literatura tem alguma obrigação?

Compromisso com a verdade. Se eu escrevo romances é porque só através deles é possível dizer certas coisas que estão recalcadas. O romance desvela a realidade, põe a injustiça a nu, possibilitando a identificação e  eternizando o universo que ele cria. Don Quixote é um justiceiro com o qual todos nós nos identificamos e o universo dele é eterno.

 

24 – Qual o limite da ficção?

O céu é o limite da ficção. O que limita o escritor é o tempo que passa. Mas se ele não passasse, a gente nunca escreveria os romances da maturidade.

 

25  – Já está trabalhando no próximo livro? Se puder adiante o assunto para nós.

Estou sempre escrevendo, porém nunca falo de um livro que não está pronto. Clarice Lispector aconselhava a não fazer isso e ela tinha razão. Falando, a gente perde energia. O artista precisa saber se proteger.

 

26  – Como você acha que sua carreira como psicanalista agrega à de escritora?

Com a psicanálise eu aprendi a escutar, o que não é pouco. Mas a estilização da oralidade, que é fundamental na literatura contemporânea, eu aprendi com os poetas da língua portuguesa e com os modernistas. Num dos meus romances, Consolação, a narradora conversa com Mário de Andrade e diz isso.

 

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Jornal Rascunho, agosto 2019.