Baal I

Baal – um romance da imigração

 

1 – Como descendente de libaneses, sua história e de sua família permeia o romance?

Não escrevi um romance sobre a minha história pessoal. Baal não é uma auto ficção, como bem disse o critico literário, Manuel da Costa Pinto, no lançamento do livro em São Paulo. Trata-se de uma história familiar. O patriarca e personagem principal, Omar, narra um drama sempre atual: o da imigração. No final do século XIX, quando seu melhor amigo é capturado por uma milícia para servir no exército inimigo, Omar é forçado a largar do seu país no Oriente Médio. Ao fugir da aldeia, coração partido, jura que  voltará buscar a família e a noiva. Embarca para os trópicos, atravessa o oceano e começa a vida na mascatagem, como os conterrâneos que emigraram para o Novo Mundo. Valendo-se da sua força física e da inteligência, vence as dificuldades, torna-se um próspero atacadista e constrói um palácio, Baal, «uma jóia do Oriente no Ocidente», para sua filha única, Aixa, e a família dela. Só que, depois da sua morte, os descendentes dilapidam a fortuna. O patriarca, que morreu sem poder descansar em paz por causa dos conflitos familiares, vê a guerra do país natal se repetir no país da imigração. Pervertidos pelo dinheiro e com medo do empobrecimento, os netos resolvem demolir Baal  a fim de vender só o terreno e fazer com o palácio « o negócio mais rentável ». Tiram a mãe já idosa do lugar onde ela sempre morou e a transferem com a fiel servidora e o cachorro para um cubículo. Indignado com o comportamento dos netos, Omar os culpa por não se darem conta da sua luta e do alto custo do berço de ouro que lhes proporcionou. Associa a crueldade deles à vergonha das origens. Diz que, além de xenófobos, são  desmemoriados, « sucumbiram no fundo negro do esquecimento». Para se opor a isso, ele rememora a história. A rememoração o  obriga a reconhecer os seus erros. Não se empenhou em transmitir o que aprendeu na travessia e, por preconceito em relação às mulheres, não formou a filha, para ser sua sucessora. Se valeu dela para animar Baal, o seu pequeno império tropical, e não para que  o palácio continuasse a existir depois da sua morte e se tornasse o que deveria ter sido, um memorial da imigração.

 

2 – O livro conta a história de um homem, Omar, que trocou o Oriente Médio pelo Brasil. Fala sobre o drama e a humilhação de não receber acolhimento na terra onde vive. Em algum momento viu algum familiar sofrendo isso? O assunto é atemporal. Por que escolheu para ser tema do seu novo livro?

O tema é atual e atemporal como você bem diz. Boa razão para trabalhar com ele. Quase todo imigrante é vitima da xenofobia. A palavra xenofobia vem do grego e significa medo do estrangeiro.  Quando os meus ancestrais imigraram para o Brasil eles eram tratados de come gente. Ao chegarem nas fazendas, as mulheres  saiam correndo de medo. Tanto em Baal quanto no outro romance que eu escrevi sobre a diáspora, O Papagaio e o Doutor,  eu focalizo isso. E, além da xenofobia dos nativos em relação ao imigrante, existe a deste em relação aos nativos. Nós só gostamos espontaneamente do que é semelhante e precisamos ser educados para gostar do que é diferente. Nada seria mais importante do que ensinar o respeito pela diferença, que implica a escuta. Só ela possibilita a tolerância, que o mundo de hoje requer mais do que nunca.

 

3 – Baal expõe uma história familiar passível de identificação. As tentativas de acerto dos ancestrais acabam resultando em grandes erros. Mas, quem imaginaria? Foi intencional mostrar isso?

Tudo no meu livro é intencional. Baal trata de uma família originária do Oriente Médio, mas o drama de Omar é universal. Por outro lado, não pode ser reduzido a um drama moral embora diga respeito a um crime, que eu chamo de memoricídio.  Quando a gente destrói o passado da civilização ou se esquece do próprio passado, a gente se repete. Daí a importância da História e da Psicanálise, que ensina o homem a se reinventar através da rememoração.

 

4 – Como é para você escrever como se fosse homem? Tem o hábito de estudar comportamentos e práticas? A propósito, como você cria a personalidade de seus personagens?

Já escrevi como se fosse homem em várias peças minhas. Criei um bom número de personagens masculinos antes de escrever.  O escritor é como Tiresias, o profeta cego de Tebas, que viveu sete anos como mulher. O escritor sabe dos dois sexos e consegue se transfigurar. A transfiguração é a sua arte.   O melhor monólogo feminino que eu conheço foi escrito por James Joyce, Molly Bloom. Quanto ao meu método de trabalho, nunca me debrucei seriamente sobre ele.  Mas eu primeiro escrevo, depois reescrevo até saber o que eu quero exatamente. Analiso a progressão dos personagens e a relação entre eles. Retrabalho incansavelmente. Antes, eu gravava o texto para depois escutar. Hoje, eu sou menos fascinada pela minha voz e tenho um procedimento mais fundado no estudo do romance. Trabalhei com Robert Mckee, o autor de Story, e com meu filho, Mathias Mangin, que é cineasta. Aprendi muito com ele. Para fazer Baal eu tive, por outro lado, um grande interlocutor, o escritor surrealista Claudio Willer. A nossa correspondência vai ser editada, ela é superinteressante.

 

5 – Fernando Pessoa escreveu que “A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar de si  mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação”. Você entende que seus livros trazem energia de liberdade?

Acho que sim. Por isso sou bastante lida. Vendi mais de 150.000 exemplares num país onde não se lê e os meus livros foram traduzidos para outras línguas, inclusive para o chinês. No caso de A Mãe Eterna, os direitos foram comprados  pelo Cao Hamburger. Agora, os direitos de O Papagaio e o Doutor cedidos para o cineasta Richard Ledes e o romance vai ser adaptado nos Estados Unidos. Talvez com Eliot Gould no papel do Doutor. Baal é o mais cinematográfico dos meus livros.

6 – Aliás, em tempos de pouca privacidade, senhas compartilhadas e vidas expostas onde fica a valorização da liberdade individual? E como ela se entende (ou deveria) dentro das relações?

Ninguém obriga ninguém a compartilhar senhas e expor a vida. A questão da liberdade é absolutamente individual. Tenho um iphone, mas uso pouco. Só para o essencial. Escritor precisa de silêncio e não de comunicação.

 

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Jornal Fluminense, Revista Oflu, 2019.