Arte e Psicanálise

Arte e Psicanálise

Academia Paulista de Letras, 2023

 

O título deste evento é Arte e Psicanálise. Na verdade, o título é redundante. Digo isso porque embora a ciência seja fundamental para a teoria psicanalítica, a prática clínica é uma arte. Num dos seus seminários, Lacan disse que não era suficientemente poeta para ser um grande analista. À sua maneira, o analista é um poeta. Foi o que eu disse quando entrevistei Octavio Paz, em Paris, sobre A Dupla chama. Trata-se de um ensaio sobre o amor, o último que ele escreveu, já com mais de oitenta anos.

Octavio Paz me disse que o analista precisava de resmas e mais resmas de papel para expressar o que o poeta expressa com uma única frase. Ouvi e não concordei, por ter me lembrado de um dos neologismos de Lacan, hainamoration, introduzido na teoria psicanalítica para falar das vicissitudes do amor. A palavra hainamoration se faz com duas outras: haine que significa ódio e amoration que tem a ver com o amor. Lacan não precisou de resmas de papel para dar a entender que o amor não se dissocia do ódio, exatamente como Carlos Drummond de Andrade no poema Destruição: “Os amantes se amam cruelmente e com se amarem tanto não se veem”.

Fiz esta pequena digressão porque foi através da literatura e do teatro que eu pude me aprofundar na minha experiência analítica com Lacan e transmitir a originalidade da sua prática tão constestada e tão eficaz. A aventura com Lacan começou nos anos 70, mais precisamente em 1973. Foram quatro anos de análise, durante os quais eu fiz a primeira tradução de um seminário dele para o português. Ousei traduzir Os escritos técnicos de Freud. Anos depois, em 1985, eu escrevi O Papagaio e o Doutor, o romance no qual o diretor de Adieu Lacan, Richard Ledes, também se baseou para fazer o filme em 2021. Eu disse também porque o filme é sobretudo uma adaptação da peça Adeus Doutor que escrevi em 2008.

A peça Adeus Doutor foi apresentada em Paris no Teatro do Rond Point (2009), em São Paulo no Sesc Santana (2010) – com José Celso no papel de Doutor e Bete Coelho no de Seriema – e, finalmente, em Nova York na New York School of Arts (2018). Quem dirigiu a leitura da peça foi Richard Ledes, que logo propôs a adaptação cinematográfica.

Antes de falar do filme, eu preciso dizer que ele é o resultado de um trabalho de décadas que implicou uma tradução, a escrita de um romance (1989 a 1994) e uma peça de teatro. O filme é a quarta etapa de uma volta ao mundo em 50 anos, porque a quinta etapa é a edição, em outubro, nos Estados Unidos, do Lacan ainda, publicado aqui no Brasil pela Companhia das Letras. Só me referi a esta volta ao mundo para dizer aos mais jovens que sobretudo é preciso não desistir.

O filme, como vocês viram, é estruturado em torno das sessões de Seriema com o Doutor. Seriema vive o drama de uma ocidental, descendente de imigrantes do Oriente Médio. A maternidade parece impossível para ela. Porque Seriema não se identifica com as mulheres da sua família, as suas ancestrais, mas também por uma razão inconsciente que ela só descobre através da análise. Seriema não pode engravidar porque ela é objeto do desejo do pai, que não a autoriza a conceber. Ao decobrir isso, deixa de ser vítima do seu inconsciente, ou seja, deixa de ser vítima do desejo alheio para se tornar sujeito do seu próprio desejo, consegue escolher um pai para o filho e se tornar mãe.

Seriema não tinha o direito de ser mulher. Através da análise, ela consegue aceitar o seu corpo e se reconhecer no sexo feminino. O filme mostra que o problema de gênero tem uma motivação inconsciente e que isso precisa ser levado em conta.

Como a questão de gênero é de grande atualidade, eu me valho desta ocasião para dizer que os limites entre os sexos são imprecisos e fluidos. A bissexualidade é universal e foi por ter demonstrado esta universalidade que Freud elucidou o enigma da escolha do objeto sexual, seja ela homo ou hetero. O problema não está no fato de um homem se sentir mulher ou de uma mulher se sentir homem, mas na forma como isso é visto tanto pela sociedade quanto pelos médicos, para os quais se trata de uma inadequação a ser curada.

A heroína de Adieu Lacan é vítima de um preconceito em relação às mulheres, preconceito que a impede de assumir as vicissitudes do seu sexo biológico. E ela só se libera graças à escuta pertinente do Doutor.

Sou particularmente grata ao diretor de Adieu Lacan, Richard Ledes(1), pela adaptação cinematográfica que fez. Gostaria que ele estivesse aqui, mas como não está, eu cito o que ele disse sobre o filme:

 

“Há duas obras que me influenciaram na realização de Adieu Lacan. In treatment, a série televisiva americana de 2008, foi um ponto importante de comparação, um exemplo do que eu não queria fazer. A câmera está sempre paralela ao solo e ao nível dos olhos quando ela passa de um ângulo para o ângulo oposto. O uso permanente da câmera paralela ao solo servia para representar a relação de equilíbrio nascida do respeito entre o médico e o seu paciente. O que eu queria representar era a experiência subjetiva da transferência na Psicanálise. Queria expressar com a câmera os sentimentos de ignorância e de impotência que se manifestam na transferência. Por isso pedi à diretora de fotografia que olhasse comigo La Passion de Jeanne d’Arc, o filme de Carl Theodor Dreyer (1928), com a Marie Falconetti no papel principal. O meu trabalho se fundamentou neste filme de Dreyer sobre Jeanne d’Arc.”

 

Para terminar, eu preciso dizer que Richard Ledes introduziu o Lacan no cinema e, com esse passo, a psicanálise americana poderá se tornar menos utilitarista e mais humana.

Obrigada.

 

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Academia Paulista de Letras, São Paulo, 23 de março de 2023.

(1) Richard Ledes, cineasta e escritor americano radicado na cidade de Nova York, mais conhecido por seu longa-metragem Fred won’t move out (2012) sobre a doença de Alzheimer.