ADEUS ZÉ

Adeus Zé

betty milan
Folha de S. Paulo, Opinião. 06/07/2023

 

 

Por que foi que, aos 86 anos, Zé Celso se casou com Marcelo Drummond, oficializando uma relação de 40 anos  e fazendo dele o seu legatário universal ? No século XIX, houve uma pandemia, que Dostoiewski  previu no último capítulo de Crime e Castigo, escrevendo que  uma praga originária    da Ásia  cairia sobre o mundo  e as pessoas morreriam por causa de um ser invisível que entrava no corpo humano. Como todo grande artista, Zé Celso era vidente. Acredito que tenha antevisto o fogo que incendiou mais da metade do seu corpo.

Iniciou a carreira de dramaturgo aos 21 anos com Vento Forte para Papagaio Subir (1958). Daí por diante, o vento não parou de soprar, a exaltação da terra dei pappagalli por  Zé Celso, que  cantou de mil e uma maneiras o Brasil. Vou me deter na sua obra prima, Os Sertões –por ter acompanhado o processo de produção e  escrito sobre  a peça. 

A primeira parte de Os Sertões é Terra. Me lembro de quando as portas azuis do teatro se abriram e os atores,  dançando e sambando, foram nos buscar. Vendo o chão coberto de areia, nós imediatamente nos transportamos para o sertão. Ouvimos Marcelo dizer : « Os Sertões foram escritos por Euclides da Cunha, nos raros intervalos de folga. Irritam-me as meias verdades que não passam de mentiras. Autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma. Quero  ser bárbaro entre os bárbaros. Mais antigo do que os antigos »

 Já com isso, o Oficina fez a língua soberba de Euclides da Cunha ressoar,  dita pelas crianças do Bexiga – crianças de rua ou dos cortiços da região. O espectador foi logo introduzido no espaço do Vaza-Barris, às margens do qual ficava Monte Santo.  Euclides da Cunha – Marcelo vestido de terno e chapéu preto–e o Conselheiro – Zé Celso com um lençol branco e um cajado– entraram em cena para ficar face a face e, no contexto do espelhamento, pedir o fim da maldição de que é vítima o sertão. Tratava-se evidentemente de uma metáfora – referência à  maldição de que é vítima o nosso eterno país do futuro. 

Nesta primeira parte da peça, falavam a terra, o rio, as árvores e as flores.Todos os seres ditos inanimados eram personagens, como todos os atores eram narradores. Subitamente, apareceu um e o Conselheiro falou do mal de não ser amado e da jura de não matar ninguem. Vários atores o encarnaram contando a sua história trágica. Além de ter sido o maior homem de teatro brasileiro, Zé Celso foi um humanista e um educador. Sem nunca ser nacionalista, ele ensinava o  Brasil.

À Terra, seguiram-se O HomemO Transhomem, Luta 1 e Luta 2. No Homem, Zé Celso fez pouco do “brasileiro típico” dizendo que não passa de um mito,  insistiu na diferença que é o nosso tesouro. Nessa parte, graças à insistência do diretor, o trabalho dos atores foi excepcional por encarnarem o personagem com a maior  convicção e serem capazes de se desnudar em público – como só o ator se desnuda.Sabem, graças ao seu ofício, que o ator se torna avergonhado, deve renascer com a sua inocência em cena. A contribuição das crianças de certo foidecisiva para a aprimoração dos adultos  e permite dizer que o Oficina é o Teatro Brasileiro da Inclusão.

Como O HOMEM,  A Terra é uma metáfora. Mostra  que Canudos é aqui. Os sem-terra estão no campo e os sem teto espalhados pela cidade, na rua Jaceguai, na frente do Uzyna Uzona, que é uma usina de formação e de paz. 

O  TRANS-HOMEM, o espectador assistiu se transformando.  O espetáculo, que durou sete horas, poderia ter durado mais sete. Shakespeare queria que o espectador gostasse da peça e permanecesse no teatro, onde podia comer e beber. O mesmo se passava no  Oficina que fazia pensar no Globe Theater, além de resplandecer como um templo de amor e paz. Evoé, Buda ! 

O transhumano Zé – no papel de Conselheiro– vestido de azul, viveu a sua saga, indiferente aos perigos, alimentando-se mal, dormindo à beira dos cami- nhos porque a vida se compreende melhor pelo « incompreensível dos milagres ». Mais parecia um anjo, quando ele, com uma coroa de folhas, encontrou  Marcelo – no papel de Euclides da Cunha. Quem sabia da paixão entre os dois s — uma paixão que sustentou o Oficina — olhava a cena, escutando que a multidão precisa de alguém para traduzir os seus anseios indefinidos e  conduzir nos trilhos do céu. O Nordeste soprou o seu vento forte. Proféticamente, o  Conselheiro disse : «  As águas do mar se tingirão de sangue. A terra se confrontará com o céu. Haverá chuva de estrelas e  será o fim ». 

O Transhomem terminou com a extinção da monarquia e a proclamação da república. O elenco cantou “Liberdade, abre as asas sobre nós”. Mas o arraial fortificado entrou em cena. O Conselheiro sabia que perderia muitos dos seus e os atores diziam que eram jagunços. Antes da matança começar, o teatro-corredor foi atravessado por uma procissão gozosa, ao som de um expressivo violino e uma esteira se desenrolou no chão para oferecer ao público um banquete de frutas brasileiras. 

No catálogo do espetáculo seguinte, A Luta 1, Zé Celso evocou quarenta anos de tropicalismo e a influência de Oswald a quem ele dedicou a peçaAs atrizes eram impressionantes. Sobretudo quando apareceram enroladas num mesmo pano que também servia de xador, dando vida a uma muçulmana de muitas cabeças, uma figura onírica que reenviou ao Oriente de todas as guerras e universalizou Canudos.

Zé Celso alcançou mais uma vez, nesta parte da epopéia, a meca da grande arte, que se materializou em cenas poéticas porque para Zé Celso o que interessava não era a co-municação mas a cu-municação, ou seja, o verbo que o corpo traga e vira música, vira canto da sereia. Porque não é a significação que importa, mas o sentido, não é o co-nhecimento, mas o cu-nhecimento, o saber que passa pelo corpo, ou seja,  a sabedoria.

Por fim, LUTA 2, o ataque ao vportal das luzes das Cunanãs. O Withworth, o canhão com o qual o sino da igreja de Canudos será destruído, precisava passar! As cenas do espetácuo eram quadros pintados pelo diretor e pelos atores. Acompanhei o making off e vi como Zé Celso liberava o ator, ensinava a dizer o texto a partir da música e apontava na atuação o seu gesto mais expressivo. A interpretação então supunha  sensibilidade para captar a fantasia cênica do diretor. As imagens que resultaram desse trabalho, em que Zé Celso era tão dependente dos atores quanto estes dele, arrebatavam como as imagens dos cineastas, cuja referência é a pintura. O teatro de Zé Celso também foi cinema, além de ser ópera. Sobretudo, não se limitava ao que se convenciona chamar de “teatro”, porque antropofagicamente devorava os outros gêneros. Como a pintura de Picasso, que devorava a escultura. 

Entre as grandes cenas deste ato estava a da personagem Bahia Eulâmpia, encarnada por Ricardo Bittencourtv que, abrindo a saia do parangolé, abrigava as tropas do Brasil inteiro, recebendo-as com os braços abertos. O ator nem era homem e nem mulher, introduzia em cena a presença da mãe de santo e a sensualidade da pombagira. Um símbolo do teatro orgiástico que Zé Celso criou e recria, lembrando-nos  que o teatro nasceu da orgia

O elenco todo era bom, além de bonito. Formados no credo oswaldiano do pensamento ávido da totalidade, do humor e da vertigem, os atores do Oficina são únicos. Estão preparados para fazer o público entender que as tropas, sejam elas quais forem, rumam sempre para a morte. Com eles, Zé Celso conseguiu fazer da história real de Canudos uma história metafórica e universal. Prova disso é o sucesso de Os Sertões na Alemanha. Primeiro em Recklinghausen, que fica no coração da indústria militar alemã e produziu as armas utilizadas na guerra de Canudos. Ali, para apresentar Krieg im Sertao, o produtor reconstruiu o espaço do Teatro Oficina tal como foi concebido por Lina Bo Bardi. 

Obrigada Zé. Apesar de mortal, você foi um Deus e o seu culto vai continuar.

 

______

Betty Milan é psicanalista e escritora, membro da Academia Paulista de Letras