A senhora VI (anos 1980)

A senhora VI (anos 1980)

Betty Milan

A Senhora ansiava por São Paulo, rever a família, os amigos. Fez as malas e deixou o Rio de Janeiro. O que devia ter realizado na vida já estava, e o tempo agora era o da fantasia. Liberando-a das amarras, a idade a remoçava.

Chegou, encontrou a filha e a netinha, a quem obviamente ela daria um presente – a sandalinha dourada que a menina, fixada na ideia de ser a Mulher Maravilha, tanto queria. Depois, telefonou para um amigo. Alô, era ela? Já estava de volta? Iria naquela noite mesmo visitá-la. Bem, então até às oito. Perderia o último capítulo da novela, mas a perspectiva da visita compensava.

O relógio da sala deu oito horas. Ficou atenta à campainha. Em vez, tocou o telefone. O amigo se desculpando. Um imprevisto. O filho da vizinha estava em sua casa, o guarda atrasado e sem este não havia como sair. A vizinha fora assaltada na semana anterior e o menino andava apavorado.

Esperasse tranquilamente o guarda, viesse depois, mesmo porque ela se deitava tarde e podia recebê-lo às nove, até às dez. Disse isso e ligou a televisão. Tirou o sapato que lhe apertava o pé e ali ficou, esquecida na imagem.

Nove horas. O telefone. Foi atender. Agora o guarda acamado, e o amigo lhe pedindo que fosse à sua casa. Vontade era de ir, mas como? Sem carro, tendo que andar três quarteirões na escuridão para achar um táxi? Lamentando, ele concordou que era arriscado e o encontro ficou para outro dia.

Desligou o telefone e a televisão, foi para o quarto trocar de roupa, sentir pena daquela conversa adiada, constatar então que de medo estava presa. Morava num apartamento para prescindir de um guarda, mas, sem o carro que a guardasse, não podia sair à rua – impossibilidade de andar a pé na cidade, de ter, se quisesse, pernas. Igualmente esdrúxula era a situação do amigo. Para ter como na infância uma jabuticabeira no quintal, morava numa casa. Consequentemente, estava sujeito ao guarda, dependia de sua saúde e humor para entrar e sair. O desejo da jabuticabeira limitava-lhe os movimentos, e a infância era assim uma algema de que precisava se libertar para viver na cidade.

Desistir das pernas e renunciar à infância era então o que o futuro exigia? uma pergunta que a Senhora se fez para se dar conta da premente necessidade de reconquistar a rua, insistir no sonho, preservar as árvores, as jabuticabeiras e os quintais.