A senhora V (anos 1980)

A senhora V (anos 1980)

Betty Milan

Entrou no táxi e viu o sapatinho que balançava pendurado no espelho. Achou graça e quis saber o que era aquilo. Proteção, minha Senhora, e o motorista acrescentou que o sapatinho pertencia a uma vizinha apegadíssima a ele. A gasolina subindo e a clientela rareando, só ganhava na praça quem dava sorte, e ele precisava, sobretudo agora por estar desempregado e o táxi já não ser apenas um bico. Verdade que há pouco uma passageira tinha lhe oferecido um emprego de motorista particular, mas aquela dona de uma Mercedes Sport e de um Passat pagava um salário que, tendo em vista os carros, ele considerou um roubo e recusou.

Não havia de ser nada, o sapatinho ajudava, e a prova disso era a véspera, os assaltantes limpando todo mundo no ônibus, menos ele. Três homens, um no gatilho, dois na colheita – contou o motorista, dizendo que havia sido, mas já não era, contra o assalto, resultado da falta de tudo, carestia levando a assaltar para viver, a exemplo de um seu conhecido, ex-soldado da PM.

Desemprego, salário-ladrão, assalto… A Senhora deu graças ao descer do táxi. Sentia medo, embora não soubesse exatamente por que, e já em casa não conseguia se desligar do que acabava de ouvir.

A carestia podia ser uma causa, mas a naturalidade do motorista na defesa do assalto era alarmante. Se o crime era tido como normal, a violência estava legitimada – e o país, perdido. Roubar e matar à vontade, uma selva. Por outro lado, sujeitar-se à fome para cumprir a lei era uma forma de insanidade e compreendia-se que, para escapar a isso, o próprio guardião da lei, o soldado, tivesse se tornado um criminoso. E, cada vez mais afundada na cadeira, a Senhora foi se dando conta da estranha repartição dos seres no território nacional: empregadores com medo crônico dos assaltos, empregados vivendo no limiar da loucura ou da criminalidade, loucos e criminosos livres do assalto, mas não do hospício ou da cadeia.

Ali estava o porquê do medo que sentia, do quão pouco saía de casa, do nunca que se sentava em alguma praça ou jardim para ver a lua ou o pôr-do-sol. O confinamento era o preço que pagava pela fome alheia, naquele tempo em que, comer sendo um privilégio, andar na rua era uma temeridade e a vida de todos, dela, do motorista, do assaltante, tanto dependia da sorte, dos caprichos de algum venerado sapatinho.

Um tempo que, sem ser de guerra, desafiava cotidianamente a paz.