A França de Saint Emilion (2000)

A França de Saint Emilion (2000)

Betty Milan

A melhor maneira de chegar a Saint Emilion é de trem. Porque antes de entrar na cidade você será obrigado a andar um quilômetro olhando a vinha e terá o sentimento de que a caminhada faz parte de um ritual. De que você é um peregrino e o lugar é sagrado.

Se você se deixar levar pelo que vê no caminho, poderá parar numa cave e degustar o vinho da região ou visitar o museu de cerâmica popular criado por um ex-vinhateiro, Alain Querre, o Musée des Hospices de la Madeleine. Constatará aí, olhando os caldeirões, as jarras, as moringas ou os pilares, que a cerâmica conta a história da região. Vendo os recipientes de água-benta ou os falos que encimavam o teto das casas para reforçar a procriação, você terá uma evidência de que a crença na magia é universal.

Nesse museu, instalado no interior de uma pedreira, você vai admirar a pedra e perceberá o quão suntuosa ela pode ser. Já aí a frase do guia, segundo a qual Saint Emilion é “uma jóia de pedra num esteio de vinha”, fará sentido e você terá vontade de visitar a torre construída com as pedras da pedreira, onde, na Idade Média, ficava o castelo do rei.

Do alto, você perceberá que a cidade é um burgo circundado por uma vinha sem fim e que o telhado é o que há de mais significativo nele. Porque pela forma evoca um brinquedo. É um quadrado, um retângulo, um triângulo, que ora se dispõem de um modo, ora de outro, compondo um desenho geométrico único, no qual o olhar se perde e você deseja se perder também, andando sobre o telhado ou saltando de uma para outra casa como num desenho animado.

Olhando, você agora entende por que a palavra teto é metáfora de casa e se dá conta de que, na verdade, tudo depende do ponto de vista ou da condição do sujeito que fala. Um teto é uma casa para quem está na torre ou para quem precisa se proteger contra a chuva e o sol.

Só para entender isso já valia a pena ter subido. Mas lá de cima você terá outra experiência feliz – a de ver jardins particularmente acolhedores, onde a disposição das plantas é função da fantasia do proprietário, as árvores e os arbustos estão confundidos, a pérgula é de praxe e há sempre um espaço reservado para a horta. Um jardim que faz pouco do traçado cartesiano.

Sua felicidade será completa se, na infância, você tiver brincado num jardim assim, se a balança em que a mãe então te empurrava ficasse embaixo de uma pérgula. Insensivelmente, o passado se instala no presente e você tem o sentimento benfazejo da eternidade.

Quem viaja, aliás, sai em busca desse sentimento, que a viagem tende a propiciar. Sempre oferece no presente o passado, porque ela dota o viajante de olhos de criança, descortinando a novidade.

Tendo contemplado o burgo de Saint Emilion do alto da torre, você vai querer visitar os outros monumentos. Descobrir na capela o que é um cenotáfio e nas catacumbas, que um epitáfio, além de uma inscrição, é também uma lápide. Ou, na igreja cavada na rocha, que um querubim é um anjo de quatro asas e, já no primeiro século do segundo milênio, que o mal era representado pela guerra e o bem pela arte. Poderá então considerar que, num caso, é da repetição e da morte que se trata. No outro, da reinvenção e da vida.

Meditando, você concluirá que viajar renova a sua existência, porque lança sobre esta outra luz – e que tal renovação é uma forma de reinventar a vida.

A palavra viagem ficará associada à palavra iluminação e a palavra viajante se tornará necessária para você se diferenciar do turista – que se desloca para cumprir um programa, não se entrega à errância.