A França de Albi (2003)

A França de Albi (2003)

Betty Milan

Albi, cidade do albigense, nome que no século XII designava todos os adeptos da religião dos cátaros. Possivelmente porque acolhia esses heréticos. Albi, cidade indissociável da heresia, que hoje é ali evocada às avessas.

Diante de uma catedral que é uma fortaleza, a pergunta que se impõe quando você faz a ronda é: E a porta da casa de Deus, onde fica? Ao contrário das outras igrejas góticas que têm várias portas – seis em Notre-Dame de Paris –, a de Santa Cecília, construída logo depois da Cruzada contra os albigenses (1208-1229), tem uma porta só. Foi erguida para celebrar a força do catolicismo, simbolizar o poder de Roma, e não para inspirar a fé, que ela paradoxalmente evoca através da padroeira, a santa que lhe deu o nome. Era romana, viveu no século II e morreu por ter se recusado a renegar sua crença. Uma santa que cantava ao rezar e foi, por isso, considerada a protetora da música.

Ao lado dessa igreja paradoxal – a maior das góticas –, ergue-se o antigo palácio do arcebispo, que também é uma fortaleza e um símbolo do poder. No interior deste edifício, representação do que há de mais oficial, encontra-se o Museu Toulouse-Lautrec, celebrando o mais irreverente dos artistas, o que tirou sua força da fragilidade física e contrariou radicalmente a convenção pictural focalizando o circo, o cabaré e a prostituta. Na tradição do trovador – a da sua cidade –, Toulouse-Lautrec cantou a mulher. Não a que só por ser difícil é cantada, mas a outra. Sacralizou o seu corpo oferecido, largado, fazendo a palavra largaço – que precisaria constar do dicionário – ressoar.

Talvez por ter sofrido dois acidentes graves, dos quais saiu estropiado, ele fez pouco da convenção e, como os cátaros, só quis saber da própria fé. Por ter sido um herético radical, sua obra está hoje no palácio do arcebispo, induzindo a refletir sobre a fraqueza do dogmatismo e o alcance da arte que, sem vencer a igreja, a deixa aos seus pés.

Albi é a história dos cátaros, dos trovadores e da sua reencarnação em Toulouse-Lautrec, que amou os frágeis e deixou uma obra que também é monumental por ser um elogio da fragilidade. Em Albi, hoje, reina o artista que nasceu quase feito e se valeu dos acidentes para exacerbar a vida, antes de morrer aos 37 anos. Reina fazendo o bordel cintilar no coração da igreja, tornando assim tão míticas as águas do rio quanto o voo das gaivotas que o atravessam de uma a outra margem. Serão as gaivotas cátaras tão resistentes também? Nesta cidade medieval, tudo leva à reflexão.

A igreja-fortaleza faz pensar que o tempo passa, mas que estamos fadados à repetição. Na Idade Média, a religião organizou cruzadas e ergueu torres fortificadas para se impor. No século XXI, valeu-se de aviões e pilotos suicidas – camicases fundamentalistas – para inaugurar a ferro e fogo o novo milênio. Com torres crematórias.

Santa Cecília, a santa cantora, nos faz considerar que a força bruta não tem como eliminar a fé. Quem se detém na obra de Toulose-Lautrec vê que a representação censurada – a prostituta, no caso – um dia volta e ocupa a cena.

Uma cidade surreal, de casas de tijolo cor-de-rosa, atravessada por um rio cor de esmeralda, o Tarno, que faz lembrar outras cidades mediterrâneas. Florença, particularmente. Pelas glicínias, mas ainda pela rima fácil de Tarno com Arno.