Literatura, Arte e Psicanálise

Literatura, Arte e Psicanálise

Escola Lacaniana do Rio de Janeiro, 2014

 

Foi na confluência da Arte e da Psicanálise que eu me situei desde que terminei minha análise. E eu talvez tenha procurado Lacan precisamente para me situar nessa confluência em que pude me encontrar. Para isso, para me encontrar, tive que passar por várias separações, claro.

A separação é tão vital quanto o encontro, e também é para se separar da realidade que o artista trabalha, para criar as metáforas que dão conta dela.

A fim de tematizar a relação entre a Literatura e a Psicanálise e depois entre o Teatro e a Psicanálise, vou focalizar trabalhos meus. Não por eles serem meus, mas por serem os trabalhos através dos quais eu posso refletir melhor sobre o assunto. Não foi por acaso que Freud se valeu dos próprios sonhos para escrever A interpretação dos sonhos, introduzindo o sujeito na reflexão científica.

Vou falar de três trabalhos meus: O Papagaio e o Doutor, Fale com ela e Quem ama escuta, estes dois últimos escritos a partir do consultorio sentimental.

O Papagaio e o Doutor é um romance que escrevi para me separar do meu analista. A menos que tenha sido para continuar a análise. Continuar, porque o escritor, como o analisando, se entrega às suas associações e confia no saber das palavras.

O que há em comum e o que há de diferente entre o analisando e o escritor? O analisando confia no saber que decorre da fala e o escritor confia no saber das palavras que vão se escrever se ele suspender a ação. O analisando escuta a fala e o escritor se depara com as palavras que se escreverão. Ambos se sujeitam à espera e se deixam surpreender. A surpresa está tanto no cerne da Psicanálise quanto no da Arte.

Para se surpreender, o analisando conta com o analista. Já o escritor só conta consigo mesmo, com sua capacidade de se entregar ao vazio, esperar, escrever e reconhecer. A obra de arte pede a ele que seja tão capaz de estar na posição do analisando quanto na posição do analista.

Foi bem antes de saber disso que eu escrevi O Papagaio e o Doutor, cuja escrita começou em 1985, quando fiz o encerramento do Congresso de Psicanálise, organizado pelo Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e realizado no Copacabana Palace, do qual participaram artistas e intelectuais de várias áreas e reuniu cerca de mil pessoas.

A escrita desse primeiro romance foi uma aventura perigosa. Por três razões. Primeiramente, porque eu não sabia como escrever um romance – tive que aprender fazendo. Levei cinco anos trabalhando no texto. Em segundo lugar, foi uma aventura perigosa porque acabou revelando o que a análise não havia revelado; e, em terceiro, porque eu escrevi um romance cujo tema é o inconsciente, um tema até então inexplorado na literatura.

Inadvertidamente, descobri que havia feito minha análise com Lacan não pelo que ele sabia, mas pelo que ele não sabia, ou seja, o português do Brasil, a minha língua materna. Seriema, a heroína do romance, escolhe um analista diante do qual ela pode ficar velada. Faz essa escolha por razões inconscientes, para obedecer a um pai que, sendo oriental, desejava uma filha eternamente velada. Isso, obviamente, não escapou a Lacan, e o meu romance mostra o quão perspicaz ele foi. Vou ler um trecho de diálogo entre o analista e Seriema(1):

 

“ANALISTA
— Diga, eu aqui estou à sua escuta.
SERIEMA
— Sim, eu agora posso ficar quatro meses.
ANALISTA
— O quê?
SERIEMA
— Os quatro meses combinados.
ANALISTA
— O francês? O seu francês… A língua é um problema.
SERIEMA
— Só me dar um tempo…
ANALISTA
— Poderia enviá-la a uma discípula de língua portuguesa, uma analista de Portugal.
SERIEMA
— Portugal?
ANALISTA
— O país dos vossos descobridores!
SERIEMA
— Se não for com o senhor, tomo ainda hoje o avião.
ANALISTA
— Bem, então, volte amanhã.
Disse, levantou, abriu a porta e saiu me deixando seguir atônita. O fato é que o decisivo havia sido dito, ele ou ninguém significava: só ele, condição absoluta. O Doutor talvez tivesse simulado a hesitação para precipitar os fatos, porém foi por ter mencionado a portuguesa que ele me obrigou a fincar pé. Sim, eu com ela deixaria de estar em casa até na própria língua. A analista recomendada me visse comendo um sanduíche diria que eu ingeria um prego, e eu, ignorando ser o tal prego sinônimo de sanduíche, me perguntaria por que a mulher me considerava masoquista. Se inadvertidamente a elogiasse por algum broche, me expulsaria sem mais do consultório, imaginando que ousava louvá-la pela sua felação e me tomando por uma tupiniquim sádica. Caso eu chamasse alguém de puto, ficaria pasma diante do ódio manifesto no tom, por entender que um puto fosse um anjo. Podíamos nos entender? ela não considerar que eu deturpava a sua língua desconhecendo-lhe os sentidos secularmente existentes?”

 

O Papagaio e o Doutor é uma autoficção. Por ter sido mal interpretada pelos que sacralizam Lacan, causou grande mal-estar. Mas eu não escrevi para pôr meu analista em questão, e sim para mostrar que ninguém escapa ao inconsciente – e, por isso, é possivel escolher um analista diante de quem a gente fica velado.

Os lacanianos, que são guardiões do templo, teriam me silenciado se pudessem, e os adoradores das convenções literárias se valeram do silêncio para censurar o romance.

Seja como for, foi através da literatura que eu descobri a fantasia fundamental da minha análise. Porque a palavra escrita tem um poder revelador diferente do que tem a palavra falada.

Tendo em vista esse poder revelador, fiz anos depois o consultório sentimental, e quero falar dele porque ele também se presta à tematização da relação entre a Arte e a Psicanálise. No consultório sentimental que fiz para o jornal Folha de S. Paulo e para a revista Veja, eu me debruçava sobre a questão enviada pelo consulente e fazia uma análise de texto para responder. Não respondia à questão dando uma solução, porém indicando o caminho no qual esta pode ser encontrada. Fazia isso através de uma análise rigorosa do texto do consulente, valorizando as palavras e a sua maneira de se expressar.

Meu procedimento, como consultora, era análogo ao do romancista. Ao contar a história de Madame Bovary, Flaubert contou a das bovarianas passadas, presentes e futuras. Fez da Bovary uma adúltera universal. Também eu procurava a universalidade de cada caso e, para evidenciar essa universalidade, recorria à literatura e ao teatro. Por outro lado, fiz com o texto do consulente o que o analista faz com a fala do analisando. Sublinhei o que importa, a fim de que o consulente pudesse olhar para si de maneira nova e desvendar o motivo do seu drama.

As colunas foram reunidas em livros e, depois da edição dos livros, eu fiz a adaptação do consultório para a dramaturgia, em A vida é um teatro.

Minha guinada para o teatro é aparente, porque o artifício analítico é um artifício teatral. Disso, eu falo no meu último livro, Carta ao filho, digo que o setting analítico é um teatro, e o analista, um ator que finge não ser. Um ator, pois aceita ser quem o analisando imagina que ele é, o pai, a mãe, o irmão… No seu silêncio, sem se transfigurar, encarna a pessoa imaginada, deixando o analisando se tornar o autor da própria epopeia.

O parentesco entre a Psicanálise e o Teatro é inegável, e o teatro serve para ilustrar as teses da psicanálise. Hamlet, por exemplo, ilustra a relação do sujeito com o discurso dos ancestrais, o discurso do Outro de Lacan. Acredito mesmo que seja insuperável por isso. Segundo Harold Bloom, só o Quixote se aproxima da carreira de Hamlet.

Tudo na peça de Shakespeare depende da resposta do príncipe ao espectro do pai, que entra em cena pedindo ao filho que o vingue: “Vingue seu pai de um assassinato horrível e monstruoso. Disseram a você que, enquanto eu dormia no meu jardim, uma serpente me picou… Mas saiba, nobre jovem, a serpente que mordeu e matou o rei seu pai hoje usa a sua coroa”.

O príncipe, cuja liberdade intelectual é impressionante, sabe que ele não é feito para cumprir o mandato paterno. Não é feito para satisfazer à exigência da vingança que o coloca numa situação impossível. Hamlet vai ou não responder ao desejo do espectro? Em termos psicanalíticos, vai ser objeto do desejo do Outro ou dizer não e se tornar sujeito do próprio desejo?

Apesar da sua independência, Hamlet não consegue escapar ao espectro. Mata e morre por ter sido objeto do desejo do pai. Uma tragédia na qual nós nos espelhamos, porque a questão de Hamlet é a questão do sujeito, ela é a nossa questão. Quem não se viu às voltas com a impossibilidade de dizer sim ao ancestral e o temor de dizer não? Quem não viveu esse conflito? Todos nós vivemos. Digo sim ou digo não? Todos nós somos Hamlet. Não foi por acaso que Shakespeare trabalhou durante mais de dez anos nessa peça. A primeira versão é de 1558 e supostamente se chamava A vingança de Hamlet. A última versão é de 1600, data em que Shakespeare provavelmente fez o papel do espectro. Segundo Bloom, ele nunca parou de escrever a peça que é o seu grande legado.

O teatro se presta continuamente à reflexão do psicanalista, e os recursos teatrais são preciosos para ele. Quero dar um exemplo da minha análise com Lacan. Mais de uma vez, falei da falta que o Brasil me fazia. Um dia, ele deu grande importância ao fato, comentando: “Foi uma grande largada… como se você fosse descobrir a América!”. Disse isso teatralmente, como vocês podem constatar ouvindo mais um fragmento do romance(2):

 

“ANALISTA
— Sangue índio na sua família?
SERIEMA
Uma pergunta inesperada. O Doutor queria mesmo saber se eu era uma silvícola? Se acaso descendia daqueles seres que se exibiam inteiramente nus e se atiravam para embarcar nos navios europeus, acreditando assim partir para o céu? Se ali estava como outrora os tupinambás para animar as festas francesas, propiciar a reis e rainhas, bispos e prelados o espetáculo do Novo Mundo? Onde estão o arco e a flecha, Seriema? as plumas e os maracás? Respondi engolindo em seco: — Sou descendente de libaneses, só de libaneses, são todos emigrantes.
ANALISTA
— Que mais?
SERIEMA
— Mais sou eu aqui na França, uma estranha até entre as estátuas.
ANALISTA
— O país, a casa, os familiares… Uma grande largada, de um para outro continente… Como se você tivesse partido descobrir a América!”

 

Lacan não era teatral por acaso, ele o era propositadamente. O teatro é um manancial inesgotável para o psicanalista, porque, como diz Harold Bloom, nós fomos inventados por Shakespeare. Algumas poucas linhas e Shakespeare diz o essencial sobre o amor, por exemplo. Antes de dizer adeus a Ofélia, Hamlet envia a ela o poema seguinte: “Duvida de que os astros sejam chamas/ Duvida de que o sol gira/ Duvida da própria verdade/ Mas não duvida de que eu te amo”. Quatro versos para dizer que o amor não suporta a dúvida, como é patente na história de Eros e Psiqué.

Eros é o mais terno dos amantes, mas não deseja ser visto. Só vai ao encontro de Psiqué à noite. Desconfiada de que ele seja um monstro, Psiqué se vale do sono de Eros para iluminar seu rosto e deixa cair uma gota de óleo quente no ombro do amante. Eros acorda e vai embora. Porque o amor não suporta a dúvida.

Também sobre a vida e a morte, Shakespeare diz o essencial em poucas linhas. Assim, no diálogo de Hamlet com a mãe. Para fazer Hamlet aceitar a morte do pai assassinado, a mãe diz: “… tudo o que vive deve morrer, ser levado pela natureza para a eternidade”. Palavras sábias. Tanto quanto serão as do novo marido da rainha, o assassino, o rei usurpador, que, temendo a vingança de Hamlet, procura apaziguá-lo com: “Viver a tristeza do luto, durante algum tempo, é uma obrigação filial, mas perseverar numa aflição obstinada é indício de teimosia… de um coração sem humildade, de uma alma sem resignação, de um julgamento fraco e malformado”.

Para terminar, quero fazer uma última consideração sobre o teatro. Desde que Shakespeare escreveu “Life is but a walking shadow” (A vida é uma sombra ambulante), a nossa vida adquiriu um sentido que ela não tinha. Passamos a ter uma consciência dramática da nossa efemeridade. Ou, em termos psicanalíticos, passamos a ter a consciência de que somos falesseres.

 

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Simpósio “Arte e Psicanálise”, Escola Lacaniana do Rio de Janeiro, outubro de 2014. 

(1) Milan, Betty. O Papagaio e o Doutor. Rio de Janeiro: Record, 1998.
(2) Milan, Betty. Op. cit.