Catherine Millot: O sexo

Catherine Millot: O sexo

Betty Milan
Texto integrante do livro O século.
Publicado como “Felicidade e tirania do sexo”,
Folha de S. Paulo
, 10/01/1999

Psicanalista – membro da Escola Freudiana de Paris, fundada e dissolvida por Jacques Lacan –, filósofa e ensaísta, Catherine Millot publicou vários livros, entre eles La vocation de l’écrivain (“A vocação do escritor”), de 1991, pelo qual é conhecida. Nasceu na França e vive em Paris, onde clinica e ensina na Universidade de Paris VIII. Gide, Genet, Mishima – A inteligência da perversão, Freud antipedagogo e Extrasexo – Ensaio sobre o transexualismo são algumas de suas obras em circulação no Brasil.

Betty Milan: Você escreveu um livro de grande sucesso, Gide Genet Mishima, cujo subtítulo é “A inteligência da perversão”. Gostaria que você dissesse qual é o sentido da palavra perversão hoje e comentasse o subtítulo do seu livro.
Catherine Millot: Prefiro comentar o subtítulo primeiro. Foi escolhido pelo meu editor, Philippe Sollers, porque, desde o início do trabalho, eu queria fazer um elogio à perversão, mas não ousava sustentá-lo publicamente. Temia que as pessoas logo se opusessem ao elogio, invocando o serial killer, que é um perverso. Ninguém pensaria na inteligência de Gide, que tornou pública a sua homossexualidade para defender o direito dos homossexuais de serem como são. O procedimento dele teve uma grande repercussão social e foi por causa disso que ele recebeu o Prêmio Nobel. Gide foi explicitamente nobelizado por ser um liberador dos costumes e do espírito.

FREUD: A UNIVERSALIDADE DA PERVERSÃO

BM: Seria possível retomar a questão e analisar o sentido da palavra perversão hoje?
MILLOT: A palavra perversão é usada na França para designar a manipulação de uns pelos outros. Por isso, o termo aparece muito na política. Quanto a mim, uso-o no sentido dos sexólogos, de Krafft-Ebing. No século XIX, o termo designava todas as formas de desvio sexual, ou seja, toda prática sexual que não estivesse ligada ao primado da reprodução. Em 1895, nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud mostrou que tal desvio era universal, ou seja, que as práticas perversas servem de preliminares para os heterossexuais. Noutros termos, que a sexualidade humana não é determinada pela procriação. Foi uma ideia subversiva, inteiramente nova.

BM: Que relação existe entre esta ideia de Freud e a liberação que ocorreu no século XX?
MILLOT: Por ter mostrado que a sexualidade humana não é redutível à reprodução, Freud induziu a uma tolerância social maior e favoreceu a aceitação dos homossexuais. Mas esta só ocorreu realmente depois de maio de 1968 e, na França, só quando a esquerda tomou o poder em 1981, porque ela modificou as leis. Quanto à liberação das mulheres, também está ligada à separação entre a sexualidade e a reprodução, mas só se tornou possível graças à pílula, que é na verdade uma arma de dois gumes.

BM: Por quê?
MILLOT: Porque a procriação, agora, é mais complicada, na medida em que depende de uma decisão. A mulher precisa pedir e o homem, aceitar. Ora, a paternidade é angustiante e não é fácil o homem assumir. Num certo sentido, a pílula dificultou a vida das mulheres. Ganharam por um lado e, por outro, perderam. Ademais, as pessoas agora resolvem ter filhos quando já é muito tarde, e as mulheres precisam de assistência médica para procriar. A procriação in vitro é a expressão mais clara da disjunção entre a sexualidade e a procriação.

BM: Voltando à perversão sexual, eu gostaria de saber desde quando ela deixou de ser considerada um delito.
MILLOT: Se considerarmos as diferentes perversões, existe apenas uma que deixou de ser delito: a homossexualidade. Na França, ela foi crime até a Revolução Francesa. Ainda no século XVIII, há gente queimada em praça pública por causa de sodomia. No Código Penal de 1810, a homossexualidade com menores de 15 anos leva à cadeia e é punida com trabalhos forçados, caso tenha havido violência. No século XIX, a idade passa de 15 para 13 anos. Com o governo de Vichy (1940-1944) há um endurecimento. Qualquer um que satisfaça suas paixões homossexuais com menores de 21 anos é preso. Durante o governo de Charles de Gaulle, as mulheres passam a ser consideradas maiores aos 15 anos. Mas a grande mudança ocorre em 1981, porque, a partir de então, a homossexualidade só é considerada criminosa com menores de 15 anos, homem ou mulher. Por um lado, se estabelece a igualdade entre os sexos e, por outro, se considera que o delito não é a homossexualidade, mas a pedofilia.

BM: Quais foram, no século XX, as principais vítimas da repressão sexual?
MILLOT: Oscar Wilde é uma delas. Todo mundo conhecia sua homossexualidade, mas ninguém havia se oposto a ele legalmente. Foi porque Wilde processou o pai do seu amante, um homem que o injuriava, tratando-o de homossexual, que a prova disso foi constituída. Nessa época, na França, era possível ter relações sexuais com menores, desde que tivessem mais de 13 anos. O fato é que Wilde saiu da prisão em 1897 arruinado e nunca mais se recuperou. Isso marcou André Gide, que conheceu Oscar Wilde na França em 1891 e depois o reencontrou na Argélia em 1895, onde Wilde ofereceu a ele um jovem músico. Pouco depois, Wilde foi preso, e Gide, que estava se iniciando, ficou muito impressionado. Tornou pública a sua homossexualidade para que a repressão não fosse mais possível.

BM: A situação de Gide foi diferente da situação de Wilde por um ser francês e o outro, inglês…
MILLOT: Verdade que sempre houve maior tolerância na França do que no mundo anglo-saxão. A gente se dá conta disso considerando o que acontece nos Estados Unidos com o caso de Clinton, por exemplo. Na França, há uma tradição de não-interferência na vida privada das pessoas.

BM: Quando Gide tornou pública a sua condição, a homossexualidade já não era mais considerada um crime na França. O que ele visava exatamente?
MILLOT: Quis se opor à condenação moral…

BM: E por que não foi reprimido?
MILLOT: Por causa da Primeira Guerra Mundial, que pôs frente a frente povos civilizados, povos que eram vizinhos e poderiam ser amigos – uma guerra que foi extremamente traumática em razão da destrutividade das armas modernas e do número enorme de mortos. O trauma foi tal que acabou com os valores tradicionais. Pode-se dizer que houve uma revolução de costumes depois da guerra de 1914. Foram os chamados Anos Loucos. Gide se beneficiou da liberdade que vigorava então.

BM: Nos anos 70, o homossexualismo foi assumido publicamente por muitos. O que levou a isso?
MILLOT: O militantismo apareceu em 1971. Foucault apoiou a luta pela igualdade entre os homossexuais e os heterossexuais, pela igualdade diante da lei.

BM: E o que você acha do fato de assumir publicamente a opção sexual?
MILLOT: Há grupos que até fazem propaganda da homossexualidade e outros que são mais reservados. Foucault, por exemplo, nunca declarou que era homossexual – até porque ele considerava que se trataria de uma confissão forçada. A tendência que obriga os homossexuais a tornar pública a sua homossexualidade é uma tendência tirânica. Muitas pessoas precisam viver a própria sexualidade de forma secreta. A dissimulação pode fazer parte do gozo.

BM: A liberdade, portanto, consiste em ter o direito de mostrar ou de esconder, e nós estamos bem longe disso…
MILLOT: Exatamente.

A REVOLUÇÃO SEXUAL DOS ANOS 60

BM: Nós falamos que a liberação dos homossexuais precedeu a das mulheres. Gostaria que você falasse da revolução sexual dos anos 60, que diz respeito sobretudo a elas.
MILLOT: Passamos da ideia de que as mulheres não tinham vocação para o gozo para a de que têm o direito e o dever do gozo. A revolução sexual dos anos 60 foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis, e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. Antes da pílula, as mulheres não tinham sossego. A gente corria o risco de ficar grávida e precisava estar atenta o tempo todo. A pílula apareceu na França em 1965, mas só foi legalizada em 1967. O grande boom foi mesmo em 1968.

BM: A homossexualidade deixou de ser incriminada e as mulheres foram liberadas para o gozo, mas passamos a estar sujeitos a dois imperativos: ter de falar de sexo e ter de transar, o que não deixa de ser opressivo. Você diria que nós passamos da repressão para a obrigação?
MILLOT: Quem focalizou mais claramente essa questão foi Michel Foucault. Na História da sexualidade, ele se opôs à ideia que vigorava nos anos 70 de que a sexualidade sempre foi reprimida e de que graças à psicanálise a repressão deixou de existir. Mostrou que a psicanálise nos incitou a falar de sexo continuamente e isso só favoreceu o controle da sexualidade pela Igreja. Para Foucault, a cura analítica não passa de um prolongamento da religião… A sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é proibido para o que é obrigatório. Nos anos 60, escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, mas, para ser liberada, era preciso dizer sim a todas as propostas masculinas. Do contrário, éramos consideradas retrógradas. As mulheres tinham de dizer sim, e os homens, de responder ao imperativo de ter uma atividade sexual intensa, ao imperativo do gozo. A liberdade sexual não existe. Ou bem estamos sujeitos à interdição ou ao imperativo de transar.

O TURISMO SEXUAL

BM: O turismo sexual data dos anos 70 e é decorrente da democratização da viagem. Gostaria de saber se ele tem antecedentes.
MILLOT: O turismo de massa começou nos anos 70, mas o turismo sexual já existia antes. Sempre houve gente indo aos países do Sul nas férias para ter relações sexuais facilmente. A tradição do turismo sexual existe desde o século XIX. Os jovens da burguesia de então costumavam dar uma volta pela Europa. As viagens para a Itália fazem parte dessa tradição. Freud fez até um trocadilho porque, em alemão, ir para a Itália é gehen Italien, que lembra genitalien, ou seja, genitália. Gide, por exemplo, partiu com um amigo para a África a fim de perder a virgindade.

O PIONEIRISMO DOS ESCRITORES NA LIBERAÇÃO SEXUAL

BM: Gide foi um pioneiro da liberação dos homossexuais. E entre as mulheres, quem foi?
MILLOT: Colette. Uma de suas personagens, Claudine, tinha relações sexuais com a professora e com uma colega. A obra de Colette é atravessada por histórias de homossexualidade feminina. Ela nunca declarou que era homossexual, mas isso não a impediu de viver a sua homossexualidade e de fazer alusão a isso sob o modo da ficção. Num dos seus livros, O puro e o impuro, ela fala de um movimento homossexual que existiu no início do século em Paris. As mulheres iam aos restaurantes e às boates vestidas de homem, apesar de um decreto que proibia isso.

A TOLERÂNCIA DOS MEIOS INTELECTUAIS

BM: Quais foram os meios em que a sexualidade pôde ser vivida abertamente no século XX?
MILLOT: Os meios intelectuais e artísticos. Isso se torna evidente quando a gente lê Cahiers de la Petite Dame, por exemplo. a Petite Dame era uma amiga de Gide, uma amiga mais velha com a qual ele coabitou durante muito tempo e que todo dia tomava nota do que ele dizia. Foi testemunha das atividades de sedução de Gide, sobretudo de jovens adolescentes. Ela era de uma tolerância absoluta. Gide seduzia meninos de 13, 14 anos, e ela se divertia com isso. Havia uma cumplicidade muito grande entre eles. Trata-se mesmo de um exemplo de tolerância. Outro exemplo é o de Jean Genet. Logo depois da guerra, esteve ameaçado de prisão perpétua, porque era ladrão e reincidente… Pequenos roubos que hoje seriam considerados insignificantes, como roubo de um livro, de um lenço… Mas, como ele fazia isso o tempo todo, foi parar na cadeia – e a pena para os reincidentes era a prisão perpétua. Genet foi salvo por Cocteau, que conseguiu um juiz tolerante para ele. Depois, Genet foi agraciado pelo presidente da República. Ora, ele era autor de obras pornográficas, como Nossa Senhora das Flores ou O milagre da rosa,que narram explicitamente relações homossexuais. O fato de ter sido agraciado é uma prova da tolerância no meio em que ele vivia.

A ADOÇÃO DE CRIANÇAS

BM: Neste fim de século, se fala em legalizar a adoção de crianças por homossexuais. O que você pensa da adoção de crianças por um casal homossexual?
MILLOT: Eu poderia dizer que é melhor ter como pais um casal tradicional. Isso permite que a criança se estruture mais facilmente do ponto de vista das identificações sexuais, porque há um homem e uma mulher. Mas, considerando o que acontece com os filhos de casais tradicionais, talvez não seja pior ser criado por dois homens ou duas mulheres. Em suma, tudo depende da personalidade da criança e do casal. Há crianças que ficam traumatizadas por um quase nada e outras que se adaptam facilmente a qualquer situação.

A AIDS E A RETRAÇÃO DO ANOS 80

BM: A liberação sexual foi interrompida pela Aids nos anos 80…
MILLOT: Sim, e é preciso considerar que o medo da Aids talvez não seja proporcional ao perigo. Houve um movimento moralista que surgiu em função da sexualidade desenfreada nos meios gays, nos anos 70, nos Estados Unidos, terreno no qual a Aids, que já existia de forma incipiente, se desenvolveu. A retração de hoje também é devida ao fato de que o preservativo implica um pequeno risco. Podemos falar de sexo seguro, mas não de sexo absolutamente seguro. A Aids reintroduziu o risco e reavivou o discurso moralista sobre a sexualidade.

BM: O século XVIII conheceu a liberdade sexual dos libertinos e o XX, a da revolução sexual. Gostaria que você comparasse essas liberdades.
MILLOT: Os libertinos eram minoritários – burgueses, aristocratas ou intelectuais. Já o que caracterizou a liberdade sexual dos anos 60 foi sua amplitude. Por outro lado, os libertinos tinham um discurso pedagógico e havia também, na libertinagem, uma dimensão de segredo. Nos anos 60, além de uma reivindicação aberta, houve a divulgação através da mídia, cujo desempenho foi muito importante.

BM: O sexo está hoje associado à felicidade. Quando foi que essa associação surgiu e como ela se explica?
MILLOT: Surgiu no século XIX. Freud diz que a satisfação sexual é a mais forte que o ser humano pode ter e, portanto, a mais importante para a felicidade, pois esta depende da satisfação.