Trabalho de luto

Trabalho de luto

 

Manuel da Costa Pinto (1)

O título “Consolação”, do novo romance de Betty Milan, tem ao menos duas conotações: refere-se à rua da Consolação, em São Paulo, e também à busca do alívio de uma aflição. Essa é a primeira polaridade de um livro percorrido por polaridades.

A narrativa tem início em Paris, onde a protagonista, Laura, descreve a agonia do marido Jacques, vítima de um câncer que se espalha rapidamente pelo corpo e turva sua consciência.

Nas visitas a ele no hospital, durante diálogos nos quais Jacques reaviva os fantasmas de uma família marcada pela Segunda Guerra Mundial, insinuam-se as lembranças (não menos turvadas) de Laura, memórias de uma cidade sem memória, à qual será conduzida pela morte de seu duplo.

Esse entrecho doloroso se desdobra para além da temática amorosa e do âmbito privado, projetando-se nas mínimas estruturas de um livro feito de sugestões metafóricas e no âmbito público que a narrativa abrange.

Numa rápida passagem, o encontro de Laura com um “clochard” (o típico mendigo parisiense) em meio às funerárias das imediações do cemitério de Saint-Ouen prenuncia seu encontro com a miséria sem qualquer lirismo das ruas de São Paulo e um enfrentamento com a morte que começa a se dar no cemitério da Consolação, para onde se dirige após desembarcar de Paris.

O trajeto entre o aeroporto e o centro da cidade é uma “via crucis” na qual notícias sobre o câncer da criminalidade, da degradação dos laços e dos escândalos políticos apresentam o Brasil como “metástase infernal”.

E o passeio de Laura pelas vielas da necrópole paulistana faz parte, mais uma vez, do jogo de oposições e complementaridades do romance.

A caminhada entre os túmulos é, paradoxalmente, fuga da morte: a mesma personagem que evita o filho para não ter de falar com ele sobre a agonia de seu pai, que adia o reencontro com a família para fugir das condolências, vaga a esmo pelo cemitério da Consolação em busca de uma consolação que não é apenas para sua dor pessoal.

Depois de sua viagem onírica pela cidade dos mortos -onde encontra os fantasmas de Mário e Oswald de Andrade em diálogos repletos de ironia sobre as contradições das elites modernistas-, a protagonista digere antropofagicamente as ruas de São Paulo, com seus teatros e restaurantes que oferecem a face festiva, consoladora, de uma realidade pública com a qual poderá se reconciliar e viver sua perda privada.

A escritora e psicanalista Betty Milan, que vive entre São Paulo e Paris, usa sua cidade natal para descrever um trabalho de luto, mas também faz do luto uma forma de fazer a catarse -no sentido freudiano de “purgação”- de uma morbidade social.

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1. Manuel da Costa Pinto é escritor, crítico literário e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Autor de “Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século 21” pela Publifolha e “Albert Camus – Um Elogio do Ensaio” (Ateliê).