QUEM SOU

leitura dramática

I
QUEM SOU?

Uma identidade malfadada

O Doutor me vendo sonhou, com fome de Pantagruel. Quem ia bancar o sonho obviamente era eu. Bem verdade que só poderia entregar o equivalente a vários cachos de banana de ouro maciço, porque no passado os meus fizeram de si burros de carga, cem quilos na cacunda até o sangue e o pus, mascateando de sol a sol e de porta em porta. Isso claro eu não ia dizer ao grande homem. Cartão de visita? Ora, omitir simplesmente a história dos que largaram do Cedro para fazer a América, a saga dos avós, os “turcos” de Açu, também ditos come-gente, os que na França teriam sido apenas arabes entre os arabes.
Podia não querer tal passado esquecido? não evitar a alcunha que a nacionalidade dos ancestrais me valia? Se não era dita come-gente, não deixava de ser uma turca, ainda que merecesse às vezes ser chamada de turquinha. Ia eu me apresentar revelando as origens? Seria exibir de saída o que desde sempre me empenhava em ocultar, não padecer do mal de ter que dissimular a história, em suma, não ser eu quem era.
Que o Doutor vislumbrasse as praias e as palmeiras, me tomasse por uma nativa filha de nativos. A sua fantasia então não me conferia a ascendência que eu desejava? Não dava a ilusão de ser uma açuana que nada tivesse a ver com a imigração? Uma ilusão imprescindível – e não porque eu amasse a terra natal, onde me formara entre conterrâneos que tudo dariam pelas quatro estações, por um outro país no qual “não sendo perene, o verde seria um bem”, o povo se expressasse numa língua sintaticamente perfeita, sem neologismos ou estrangeirismos, e “a cultura não fosse a do batuque”.
Que o Doutor sonhasse e, de uma neta de imigrantes, fizesse uma açuana secular. Me trocasse ele a malfadada identidade.

Uma origem datada do Carnaval

O Doutor sub-repticiamente datava as minhas origens do Carnaval, dançava a valsa vienense, mas também apreciava o rebolado, insistia que Açu é um sonho de França e esta deveria se tornar mais açuana. “Ah, minha cara, tanta regra que é impossível não cometer gafes”, sempre culpados de alguma coisa, mea culpa, mea culpa, o que, além de enfadonho, é uma verdadeira neurose. Se não for uma psicose!

Uma índia na França

– Sangue índio na sua família?
Uma pergunta inesperada. Queria mesmo saber se ainda que remotamente eu era uma silvícola? Se acaso descendia daqueles seres que se exibiam inteiramente nus e se atiravam para embarcar nos navios europeus, acreditando assim partir para o céu? Se ali estava como outrora os tupinambás para animar as festas francesas, propiciar a reis e rainhas, bispos e prelados o espetáculo do Novo Mundo? Onde o arco e a flecha? as plumas e os maracás?

II
O PAPAGAIO LOIRO

Um herói civilizador

O negócio dele estava na cara. Eu, no entanto, só queria o que a ideia desmascara. Olhos para não ver, ouvidos para só escutar uma espécie de mutante, o Papagaio loiro, um açuano que não suportava o trópico. Casa? Onde a luz não penetrasse. Quarto? Se possível sem janela. Cama? Baldaquino e mosquiteiro. Natureza? Só à sombra de uma árvore, entre macacos amansados e Papagaios que, em vez de palavras tupis, repetiam frases latinas e francesas, pois que a França, sendo a pátria universal dos insurretos, era a destes mutantes. Vestimenta do loiro? Variando do negro ao cinza. Conforme o imperativo de Verlaine: Pas de couleur, rien que la nuance! Função? Pedagógica. As mais variadas disciplinas, porém, de sorte a ensinar sempre o que é Ideologia, separar o joio do trigo. Convicções? De que a revolução aconteceria – embora o sexo do nosso povo fosse a paciência – e nós um dia voltaríamos a falar uma língua atenta à gramática, contrária aos neologismos, mas novamente capaz de palavras como observância (no lugar de observação) ou mantença (no lugar de manutenção), uma volta que se “inscrevia” entre as prioridades nacionais – “tarefa prioritária” –, exigia o “labor” de todos e havia enfim de “instaurar” no trópico a civilização.
Queria ver o país entregue a estes heróis civilizadores, que regularmente despontavam papagueando no céu da pátria para nos salvar.

Um papagaio loiro de boina preta

Fosse como fosse, iria. Marquei pois a data para ir à França, contrariando o velho hábito de não dizer nem sim nem não, e silenciei, deixando falar o que quisesse a mãe, contar e insistir em que a filhinha, como outrora etcétera e tal. Um feito que de saída me valeu um chapéu que só não era de plumas e paetês, pois ficaria ridículo em terras dos outros. Uma boina de veludo preto melhor conviria para a ocasião em que eu, à moda de Malena, usaria um tailleur. Depois, já na Europa, a mesma boina havia de esquentar o precioso casco.
Voava nas malhas da mãe, e eu, que imaginava inaugurar o caminho, trilhava o dos outros, da avó materna, do doutor meu pai e dos Papagaios loiros todos especializados fora do país – seres que, empunhando numa pata a foice e na outra o martelo, moravam em palacetes, comiam servidos à francesa e nunca, mesmo adultos, prescindiam de babá. Maria, me dá isso, me dá aquilo, sem nem mesmo dizer por favor.

III
SERIEMA E OS FRANCESES

Só sou mulher por Paris… Viva a capital!

Naquela cidade, até bordel para mulher havia e era justo parodiar Montaigne: Só sou mulher por Paris… Viva a capital!
Os divertimentos vários ou a corte se desejasse, buquê de flores sem nada dever a quem mandasse, antes devendo o recolhimento que permitiria insistir, enviar outro buquê diferente e me fazer mais um salamaleque, já que só com isso podia se bastar aquela gente do beija que beija a nossa mão, faz-de-conta, aproximação de lábios, beijo propriamente não. Uma gente intrigante, me dizia eu que, à moda dos canibais, vivia a querer o semelhante na boca, e então me perguntava como se podia a isso renunciar.
Vasculhando o mundo a fim de satisfazer a mesma boca… iguarias e mais iguarias criteriosamente arquivadas para, além da novidade, oferecer a tradição… horas e horas dedicadas à comida e à degustação dos vinhos, sem jamais considerar o tempo assim gasto, perdido.

IV
SERIEMA E OS DESCOBRIDORES

Uma portuguesa, não!

Foi por ter sugerido que eu me analisasse com a portuguesa que o Doutor obrigou a fincar pé. Sim, eu com ela deixaria de estar em casa até na própria língua. A analista recomendada me visse comendo um sanduíche diria que eu ingeria um prego, e eu, ignorando ser o tal prego sinônimo de sanduíche, me perguntaria por que a mulher me considerava masoquista. Se inadvertidamente a elogiasse por algum broche, me expulsaria sem mais do consultório, imaginando que ousava louvá-la pela sua felação e me tomando por uma tupiniquim sádica. Caso eu chamasse alguém de puto, ficaria pasma diante do ódio manifesto no tom, por entender que um puto fosse um anjo. O mesmo ocorreria se enraivecida eu dissesse bestial, que na língua dela significa supimpa. Podíamos nos entender? ela não considerar que eu deturpava a sua língua desconhecendo-lhe os sentidos secularmente existentes?

V
SERIEMA E OS HOMENS

Um iceberg num país tropical

A mulher, para o Doutor, era a lira do homem, seu falo. Ninguém podia dizer isso impunemente, sobretudo eu, que já imaginava os varões lá da terra me acusando de roubar o dito-cujo, organizando-se para mostrar com quantos paus se faz uma canoa. A heresia era tamanha que o concílio dos homens, na impossibilidade de me condenar à fogueira, decretaria o gelo, acabava-se formando um iceberg num país tropical.
Claro que o falo não era o pênis. Quem desejaria distinguir um do outro e me deixar com o primeiro? Qual dos varões, seres por definição auto-suficientes, aceitaria depender das mulheres? A qualquer preço, me obrigariam a dobrar a língua, a colocar o rabo entre as pernas. O tal do falo era uma pedra no caminho. Precisaria exercitar-me para sustentar o discurso contra os opositores, pedregulhos na boca para vencer os conterrâneos do outro sexo, que ademais não reconheciam em mim a sua lira por não serem de cantar o amor, e sim de esperar que eu os cantasse.

VI
SERIEMA E A CIDADE NATAL

Do concreto arrancar o lirismo

Lembrar-me de Tão, que se fez abatendo o minarete e arrancando os cafeeiros? condenando as mansões e a saudade da infância, construindo arranha-céus saudosistas em forma de palacetes, aterrando os rios para dar espaço a outros prédios e tornar idênticos os horizontes de todos os vales e colinas. Querer Tão deixando a fumaça das indústrias se espraiar? tingindo-se de cinza e desmentindo estrelas, exigindo que arrancássemos do concreto e do alumínio o nosso lirismo?

Sem vista para o longe

Eu não chorava Tão, cidade que se autodevora, inóspita por consumir todas as lembranças, substituir mansões por arranha-céus, fachadas inteiras por cartazes publicitários e não dispor do passado sequer nos arquivos, abstrata e sem vista para o longe.