O sonho encantado de Lia

O sonho encantado de Lia

 

Deonísio da Silva (1)

I

À distância do documental

“…para existir, ela só precisava se expressar ” diz a narradora na abertura da A paixão de Lia, romance desconcertante para quem não conhece outras obras de Betty Milan, que prima por uma capacidade surpreendente de fugir ao documental. Com efeito, desde o romance de 30, nossa prosa de ficção tem obsessão por espelhar a realidade, às vezes submetendo a literatura a outros discursos, como o sociológico, interessados em constituir documentos. Tudo com o fim de obter certa homologia entre o romance e as ciências sociais.

Betty Milan segue outros rumos, buscando os caminhos do sonho para a sua ficção. Nas tramas que inventa, muito mais importante do que o conteúdo das narrações, é o modo como ela as estrutura, deflagrando outro tipo de verossimilhança, a interna. Pois, se a verossimilhança externa é indispensável às ciências humanas, ela é opcional para os ficcionistas.

A narradora conduz sua personagem deixando-se levar pelo seu não saber. Assim não evita a vertiginosa caminhada à beira dos abismos, pois ela procura lugares ainda encobertos. Betty Milan segue o caminho de Marguerite Duras, na França, e de Clarice Lispector, no Brasil. Para estas escritoras, a intimidade demanda prospecções inventivas e às vezes inusitadas.

O romance parece nascer e crescer no divã do psicanalista, onde as palavras deixam a obscuridade de seus habituais esconderijos e se manifestam em todo o seu esplendor.

Lia, a personagem, pode ter uma certeza: a narradora a compreende. Mais do que isso, é a indispensável intermediária entre ela e os leitores. A propósito de Lia, a narradora diz: “Ela talvez tenha me negado o rosto para que eu a escutasse da maneira mais atenta possível” Escutar para ouvir.

“Ora, direis, ouvir estrelas”, disse Olavo Bilac num verso que se tornou famoso. Pois Lia é a estrela deste romance que semelha um filme a revelar, em belas imagens ensejadas por palavras bem escolhidas, as intimidades de uma mulher apaixonada.

II

A estrutura narrativa

Betty Milan estrutura as fantasias de sua protagonista numa polifonia narrativa, vez que Lia inventa vozes para outros personagens. Assim, no primeiro capítulo O amante –, Ali proclama: “A tudo eu prefiro te amar”. No segundo – O bordel –, Li diz: “Toma, tomais” e Laís: “Me dá, eu quero mais”. No terceiro – A cortesã –, fala a máquina do ouro: “Sou … dura e linda como um diamante”. No quarto Lesbos –, ouvimos Lídia: “Pudesse eu te emoldurar de costas, assim te eternizar”. No quinto – Ave Maria –, é o filho que se impõe com uma pergunta: “O que significa eu te amo?”.

Não apenas as tramas, mas também as personagens e o tema do romance aparecem em permanente construção. Com efeito, dada a natureza poética do texto, os leitores transformam-se em co-autores. Cada um pode ler um livro diferente, fazer a sua leitura, projetando o próprio repertório no da autora. Cada leitor acaba escrevendo o seu livro.

Uma verdade, porém, é recorrente para todos: é o amor que funda as coisas e tudo muda, dá outra existência às pessoas: “Outra que não eu, por me fazer amar, Ali me fará ser. Por amar, outro forçosamente ele será.” Lia nunca será a mesma, será sempre outra, “a dos lábios de fogo” ou “a das palavras de mel”.

III

A linguagem

Pela prevalência das metáforas, este romance evoca o Cântico dos Cânticos. Assim, os amados são comparados a flores e frutas. “Ser flor de laranjeira” é um dos votos de Lia. “Lia de Aluá, essa carambola tu me dá”, pede Ali. “Sou manga e sou jaca”, responde a amada. No ato amoroso, a metáfora também comparece: “ Me beije, me envolva e se afaste para olhando me apalpar o seio-cabaça da direita”. “Não haverá porta de entrada que não nos convenha e nenhuma que deva permanecer fechada.”

Os nomes dos personagens – Ali, Li, Dali ou Lia e Lídia – ensejam metáforas embutidas. Li existe em Ali e Dali. Lia em Lídia. E é através dos próprios nomes que o espelhamento entre os amantes se realiza. A palavra Lia espelha a palavra Ali porque o amante é a imagem especular da amada. Um não existe sem o outro e essa inseparabilidade se realiza poeticamente através do anagrama, recurso literário indicativo de que as palavras também se amam.

Apesar da ousadia verbal de Lia, a vulgaridade tem entrada proibida no texto e o sexo é sempre tratado com delicadeza: “Não haverá porta de entrada que não nos convenha e nenhuma que deva permanecer fechada. De todas, nós nos serviremos”

Depois das palavras, a música é o meio de transporte preferido da personagem, que segue com Billie Holiday para Nova York, Edith Piaf para Paris e Carlos Gardel para Buenos Aires. A viagem erótica de Lia é continuamente suspensa por um imaginário que se desvia do fim sexual e descortina cidades, onde Lia se deixa surpreender.

IV

A personagem

Sempre radical, Lia diz que “Os modernos bordéis são análogos à escola, e a paixão que neles reina é a da ordem” Lembra que, para conceber o bordel, a França, pátria das liberdades, recorreu ao chicote, que traz o castigo implícito no prazer.

Pelo seu atrevimento, Lia faz pensar em Teresa d’Ávila, aliás evocada no romance quando Lia encontra Lídia e celebra o amor de Lesbos “Lídia como Santa Teresa. Místicas as mulheres todas acaso serão, menos nascidas para a terra do que para o céu? Lídia d’Ávila”.

Percorrendo caminhos diferentes, Lia também chega ao âmago do desejo e leva às fronteiras da expressão a capacidade de expressá-lo em palavras. A diferença é que para Teresa d’Ávila o sexo deve ser evitado e o desejo é sublimado. Mesmo com toda a ousadia de monja apaixonada pelo Crucificado, Teresa, jamais chegaria às fronteiras alcançadas por Lia, para quem o sexo não é sublimado, mas, sim, exercitado. Não quer saber de amarras. Degusta homens e mulheres.

O desejo, a volúpia, a paixão e o amor não são efêmeros neste romance de Betty Milan. Ao contrário, têm sua eternidade garantida pelas palavras. Não é demais lembrar que Teresa d’Ávila morreu inédita. O que sabemos de Teresa foi-nos legado pelas palavras que ela escreveu. E foram elas, as palavras, que levaram Paulo VI, tantos séculos depois, a dar-lhe o título de primeira doutora da Igreja.

Não apenas para os personagens de A paixão de Lia, mas para todo homem que vem a este mundo – pertença ele ao gênero que pertencer –, vale o dito e o escrito, conforme o Evangelho de São João explicita: sem palavra, não existirá. Com efeito, a luz que brilhou nas trevas, sem que as trevas a compreendessem, foi a palavra. E é com ela que o homem pratica tudo, da cidadania ao amor.

O desfecho de A paixão de Lia apresenta a redenção pelo amor, ao lembrar que o sultão das Mil e uma noites, Xariar, se curou do ódio que tinha das mulheres, graças às historias de Xerazade. O remédio que esta ministrou a Xariar foi a palavra, destilada dia por dia, para adiar a morte a que estava destinada – ela, como toda mulher que se casasse com o sultão. Com efeito, ao entretê-lo com suas histórias, Xerazade o obrigava a suspender a execução. Até conquistá-lo. Nas Mil e uma noites, o amor vence o ódio.

O desejo dos homens pode ser mortal para as mulheres, como nas Mil e Uma Noites. O amor, ao contrário, pode vivificá-las. O percurso de Lia mostra inclusive que não existe o amor dos homens, nem o amor das mulheres, pois a qualificação mutila o sentimento. Existe e existirá sempre, soberano, o amor que dilui os gêneros quando irrompe.

V

A tradição literária

Com este romance, Betty Milan assegura um nicho na nossa prosa de ficção, consolidando suas singularidades, a principal das quais é a recusa de tradição literária consagrada entre nós. Com o seu procedimento, constrói uma via onírica para o romance, sempre surpreendente pelos novos caminhos que o sonho pode descortinar para todos.

Embora vivendo na França, falando e lendo mais francês do que português, Betty Milan concebeu sua personagem em português e isso não é casual. Numa das suas entrevistas, ela declarou: “Lia surgiu com força na minha cabeça, falando português. Surgiu pouco depois que eu assisti no Théâtre des Amandiers, em Nanterre, a uma peça, cujo texto era o monólogo de Molly Bloom. Molly sustenta o desejo do gozo, mas não dá asas ao imaginário erótico feminino. Lia brinca com a sexualidade, que ela nunca dissocia do amor… Pela sua imprevisibilidade, o imaginário de Lia me fazia pensar em Macunaíma, um herói que não se submete a nenhum programa quando transa. Pode inclusive parar esquecido no meio da transa. O que ele quer é brincar com sua amada e com ela inventar ‘artes novas de brincar. Para Macunaíma, a sexualidade é um pretexto para viver o amor. Por isso, nada o impede de suspender a ‘brincadeira e se entregar à preguiça, adiando o orgasmo, ignorando sem culpa os imperativos do orgasmo. Assim, livre da tirania do genital, o amor não se realiza no ritmo imposto pela ejaculação, e, portanto, nunca é igual. Tanto pode ser suspenso quanto interrompido por uma fantasia alheia a ele, uma divagação”.

Além da célebre personagem de James Joyce, pela sua contínua transfiguração, Lia evoca o herói de Mario de Andrade. Na mesma entrevista, a autora opõe a sexualidade de Lia à dos libertinos. “Reverenciam o falo e não se concebem sem a ejaculação – na Filosofia da alcova, do Marquês de Sade, o homem descarrega e a mulher também… O ritmo da experiência e a imaginação dos parceiros estão sujeitos ao gozo genital. Quem diria numa alcova ou num bordel libertino ‘Ai que preguiça?’. Ninguém.Tanto a suspensão do ato quanto a divagação seriam inimagináveis”.

A ficção de Betty Milan é inconformada, rebelde, mas ao mesmo tempo atenta à tradição literária, que ela recusa, não por desconhecimento ou desprezo, mas por preferir outros caminhos.

Sob a alegação de ofensas à moral e aos bons costumes, foram proibidas mais de cinco centenas de livros no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985). O governo Getúlio Vargas também proibiu livros, mas em menor número. Se fosse publicado nos anos 70, este livro de Betty Milan teria entrado para aquele famigerado index, sobretudo se não se perder de vista que a autora assume as falas de suas personagens, como, aliás, fez Rubem Fonseca em Feliz Ano Novo, dispensando o eufemismo de uma terceira pessoa. As confissões eróticas, atrevidas, de Lia, são assumidas pela narradora, e esta coragem não pode ser ignorada. Aliás, com Rubem Fonseca deu-se o mesmo: o narrador assume a fala de seus personagens e é impossível dissociá-lo deles. Isto serviu de argumento adicional para os censores, que proibiram Feliz Ano Novo.

VI

O erotismo de Lia

As palavras sussurradas pelos amantes à hora do amor, os gemidos de prazer e outros sons que presidem o ato mais importante de nossa vida, deslocados de seu ambiente – não natural, mas cultural – e postos em outros contextos podem levar a graves desentendimentos. Não, porém, na ficção de Betty Milan, que faz uma narrativa erótica cheia de sutilezas.

Buscando “ser todo dia outra e com isso escapar ao tempo”, Lia se transmuta em Xerazade diante de um leitor que não pode morrer sem conhecer os seus segredos. Com este livro, a autora buscou as vozes do desejo. No começo da narrativa, tão curta e profunda, o leitor tem a mesma curiosidade que marcou o sultão, ex-matador de virgens recém-defloradas, e o filho da personagem, de Lia, que ouve o resumo das mil e uma noites da boca da própria mãe no último capítulo deste romance e pergunta: “Como?”.

Como foi que tudo aconteceu? Como é que tudo aconteceu?

É este “como” o que melhor define a modernidade da ficção de Betty Milan. Em vez de privilegiar as tramas – o “o quê” –, ela nos levanta os véus sob os quais tudo acontece no mundo do amor e do desejo. O leitor sai com outras interrogações ao final do romance, pronto a formular o próprio desejo de outros modos.

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1. Deonísio da Silva é professor universitário e escritor, com vários livros publicados e premiados. Mantém também uma coluna de etimologia na revista Caras. Este estudo lhe serviu de base para compor resenha publicada no Jornal do Brasil em 28/01/1995.