O sexophuro: o interdito necessário

O sexophuro: o interdito necessário

 

Nelly Novaes Coelho (1)

“travessia nova, a escrita escuta à cata da palavra, sua própria, onde o antigo drama se esvaía, adeus à clausura do apego, a ele e à Outra, no torno do que mais precisava, saber de si o desejo qual era

pulsando através da memória, enquanto o amanhã se urdia no saber do que queria, o nome próprio e a palavra que o sustinha
o desejo que agora se escrevia, exigindo-lhe o gozo contido do corpo na letra, sua memória do futuro”

Nesta breve novela-novelo de Betty Milan (psicanalista paulista que estreia como ficcionista), temos a mulher tomando a palavra para se dizer, para trazer à tona da possível comunicação vivências essenciais e profundas, que até bem pouco ou lhe eram desconhecidas (porque havia o interdito que se levantava em barreira) ou eram ocultas no mutismo que o próprio interdito (mesmo quando infringido) exigia. É nessa linha de sondagem que se desenvolve O sexophuro, tentando tocar o cerne enigmático do sexo, para lá das relações “oficiais” do casamento e do adultério.

A categoria de novela-novelo (conforme classificação da autora) já revela a natureza antilinear de sua estrutura, linguagem e efabulação. O traço estilístico dominante é, pois, a fragmentação; a linguagem sinuosa/quebrada; a frase eriçada de obstáculos ao livre curso dos pensamentos, a “mensagem” enovelada em intricado discurso… Desse modo-de-narrar resulta o relato, que não se entrega facilmente ao leitor. Exige leituras e releituras, que acabam por revelar a funda coerência existente entre a forma novelesca escolhida pela autora e a situação dramática ali em causa.

Sintetizando, pode-se dizer que essa situação é extremamente banal. Trata-se do velho triângulo amoroso: Ele, Ela e a Outra. Entretanto, apesar da existência de fulcro dramático, O sexophuro é uma novela sem “fábula”, isto é, sem uma trama evidente, onde os acontecimentos e peripécias se sucedam, cronologicamente ou não, mas compondo um processo facilmente reconhecível pelo leitor ou que se torne eixo do interesse da leitura. Aqui, Betty Milan constrói um universo ficcional em que, entre o leitor e a possível “mensagem”, se interpõe uma espécie de teia verbal, tecida por uma digressão contínua e labiríntica, que evita (ou retém em suspenso) o esclarecimento objetivo e claro dos fatos ou problemas.

Vencendo-se essa “teia”, descobre-se, afinal, que os fatos são simples: um caso de infidelidade do marido; a consequente separação imposta pela esposa; as reações desta (as do marido também) diante do problema representado pela Outra e, finalmente, a reaproximação do casal, agora na clandestinidade de encontros furtivos.

Se chegamos com certa facilidade a essa delimitação da trama, já não é o que acontece com a problemática em jogo. O que pretenderia a autora? Mostrar a eterna submissão da mulher ao homem, sugerindo, porém, uma nova solução? (a de a esposa traída tentar ser a Outra?) Mostrar a falência do casamento e a crise existencial que ela pode gerar? Apontar para uma nova ética matrimonial? Mostrar uma mulher em busca de sua identidade, através da memória e da escrita criadora? Ou tudo isso? Enfim, muitos são os problemas que podem ser levantados por entre a massa verbal informe que instaura o universo aqui construído por Betty Milan.

A partir de certos índices na narrativa, queremos crer que O sexophuro, muito mais do que sondar o enigma da feminilidade (como se diz na contracapa), coloca em questão a própria sexualidade do ser humano. Em apoio a essa afirmação está o fato de que tanto ela, a “esposa traída”, como ele, “o esposo traidor”, acabam por viver o mesmo problema: ambos necessitam da Outra, como mediadora entre eles, ou melhor, como interdito patente ou latente que lhes devolva a plenitude erótico-amorosa que o estado conjugal acabara de neutralizar.

Entre os vários problemas psicológicos e éticos bastante polêmicos que podem ser rastreados neste desafiante Sexophuro, destacamos o do enigma da sexualidade, na medida em que nele se torna evidente a importância do interdito para a eclosão do erotismo ou para a fruição sexual plena. É muito clara, na efabulação, a atitude da “esposa traída”, que passa a ter necessidade da Outra para encontrar-se a si mesma, ao entregar-se novamente ao marido; temendo, ao mesmo tempo, voltar a ser única na relação conjugal. A Outra passa a lhe ser indispensável para o próprio prazer.

Não queria o marido, mas a posição da Outra, sua magia (…)

Certa da derrocada da Outra, ela ignorava o futuro, o lugar que ia ocupar. Amaria o marido se fosse a única? Disso nada sabia, resistindo à evidência de que sem a Outra o marido se tornara inconcebível (…)

Como a maior parte da narrativa transcorre a partir do ângulo de visão da mulher (dos 25 fragmentos que compõem o livro, apenas seis registram a visão do homem), poderíamos pensar que a problemática-base estaria limitada ao enigma da feminilidade. Entretanto, os poucos fragmentos que registram o ângulo de visão do homem confirmam que a preocupação com a feminilidade sobrepõe-se à da própria sexualidade. O marido traidor reage de maneira idêntica à da esposa traída: uma vez “casado” com a Outra, acaba se aborrecendo dela, como se havia aborrecido da esposa. Enquanto vivia às ocultas com a Outra, sentira-se seduzido não só pela força com que esta se lhe impunha, “siderando-o num contínuo desafio”, mas também pelo interdito, pois tem ciúmes do passado e gradativamente a antiga esposa passa a ser a Outra. Prova-se, assim, que a ação da rotina ou do cotidiano esteriliza a magia das relações amorosas… ou que esta magia só surja quando há um interdito a vencer. (É o caso de repensar o papel que o interdito lançado pela Igreja sobre o sexo teria desempenhado na criação do amor como valor absoluto e realização plena do ser.)

Nessa deterioração das relações amorosas dentro do casamento, estaria o significado do título da novela O sexophuro, indiciando um sexo-furo, ou melhor, um sexo falido, frustrado, quando privado do acicate representado pelo obstáculo, pelo tabu.

Aparentemente, não encontramos, nesta novela-novelo, a imagem da nova mulher já liberada do machismo, que, na literatura, começou a ganhar consistência a partir dos anos 60 – Mary McCarthy, O grupo, 1963; Sylvia Plath [com o pseudônimo de Victoria Lucas], The Bell Jar, 1963; Doris Lessing, The Golden Notebook [O carnê dourado], 1962 –, mas sim a que, no refluxo dos últimos anos 70 para cá, procura redescobrir as relações homem-mulher, cuja essência não pode, afinal, ser minimizada. De início, a mulher que aqui se manifesta parece indicar um recuo no processo de liberação em marcha, uma vez que se revela visceralmente dependente do homem amado (só existindo por ele e através dele). Entretanto, em meio aos intricados caminhos da narrativa, vamos descobrindo uma nova postura ou uma nova exigência dessa mulher: a mencionada necessidade de interdito (representado pela Outra) existindo entre ela e o marido (numa clara alusão ao esquema familiar constantemente relembrado: ela, o pai e o interdito representado pela mãe). Um interdito que parece impulsionar as fibras mais recônditas do ser e que se mescla estranhamente ao impulso de maternidade, problemática que apenas se insinua no horizonte final do texto.

O sexophuro é dos livros que podem ser lidos em vários níveis, não só devido à matéria polêmica ali presente, mas principalmente devido à experimentação com a linguagem narrativa de que ele resulta. Sua abertura a diversas interpretações se deve também à intencional ambiguidade do discurso narrativo. Em nossa leitura, iluminamos a face do interdito, mas talvez não seja a melhor… Os leitores que o decidam…

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1. Nelly Novaes Coelho, escritora, professora universitária e crítica literária, é autora de Dicionário crítico de escritoras brasileiras e Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil entre outros e publicou este artigo no livro A literatura feminina no Brasil contemporâneo, São Paulo: Siciliano, 1993