O Papagaio e o Doutor III

O Papagaio e o Doutor (Brasil, 2ª ed., 1998)

 

P: Do que trata O Papagaio e o Doutor?
BM: Seriema, a heroína, é neta de imigrantes libaneses radicados no Brasil. Ela rememora, no romance, a história dos ancestrais e a sua análise com um célebre doutor parisiense, um doutor que Lacan poderia ter inspirado. Por isso, aliás, o romance foi muito bem recebido na França.

P: Você se analisou com Lacan, não é?
BM: Foi.

P: O que o divã faz o leitor do romance descobrir?
BM: O drama da imigração e os efeitos dela. A heroína se pergunta, rememorando, se é necessário renegar as origens para se integrar, quando se descende de imigrantes.

P: As questões da sua heroína foram as suas?
BM: Sim, eu sou neta de imigrantes libaneses e também escrevi o romance para encontrar resposta para questões minhas. Me dei conta de que o imigrante, por causa do sofrimento, quer esquecer o passado. A imigração é um drama tanto por causa da separação real que ela supõe quanto pela mutilação resultante do fato de que o imigrante é arrancado da sua cultura natal. A imigração tem consequências dramáticas.

P: Quais?
BM: A primeira é que o imigrante quer se esquecer da travessia, deseja que o passado seja apenas o prólogo do futuro e, portanto, não conta a história aos descendentes. Para que esses descendentes possam escapar à recusa do ancestral e ter um passado, eles precisam reconstruir o passado, inventá-lo. Sem essa invenção, o filho do imigrante é um ser incompleto, porque ele fica sem passado. Isso é o que a minha heroína compreende à medida que conta a história. Outra consequência da imigração é a relação dúbia que o imigrante tende a estabelecer com o seu novo país. Ele tem uma relação nostálgica com a pátria perdida, mesmo quando a abandonou por causa da guerra, e, por isso, lega o novo país só aos filhos dando a ideia de que “o verdadeiro país” é o que ele teve que abandonar. Seriema, a heroína do livro, sofre porque os ancestrais fizeram a América exaltando o Líbano e se referindo aos nativos com um certo desprezo.

P: O imigrante então despreza o país onde se radica…
BM: Tende a desprezar os nativos, porque são diferentes e porque eles o desprezam por causa da sua própria diferença. Inclina-se para a xenofobia, o ódio pelo estrangeiro, apesar de ser vítima da xenofobia dos nativos. O descendente de uma imigração vive dividido entre o desprezo transmitido pelo ancestral e o desejo de amar e ser amado pelos compatriotas. Ele é levado a dissimular as origens e o ódio de si mesmo. O recurso à psicanálise permite descobrir que o ódio de si não é o preço da integração, que ninguém precisa esquecer o passado para se integrar.

P: A Seriema lamenta até a pele morena…
BM: Sim, até descobrir que a cultura da mestiçagem pode nos preservar das intolerâncias e abrir espaços novos. A gente vê através do romance que o Brasil, à sua maneira, é um país muito moderno porque todas as crenças são aceitas e ninguém é marginalizado pela religião.

P: Por que o recurso à psicanálise para contar a história?
BM: Não utilizei a análise como recurso narrativo por acaso, mas porque ela me permitiu mostrar de que forma uma heroína que se envergonha das suas origens e do fato de ser mulher pode superar a vergonha e se amar.

P: Do ponto de vista literário, qual a particularidade deste romance?
BM: A heroína se constitui através do discurso dos ancestrais, e não através da sua psicologia, o que é contrário à convenção literária. A Seriema é o produto de uma história que ela procura compreender para encontrar o seu lugar. Trata-se de uma personagem feminina de grande irreverência e que, apesar de tudo, acaba bem, ao contrário da maioria das personagens femininas irreverentes da literatura mundial, como a Bovary ou a Madame de Merteuil, de Ligações perigosas.

P: Trata-se ou não de uma autobiografia?
BM: Não, o que eu escrevi é a biografia da Seriema, reinventada por ela através da história dos ancestrais. Trata-se de uma heterobiografia.

P: O Papagaio e o Doutor foi lançado no Brasil, em 1991, pela Siciliano. Depois, na França, em 1997, pela Editions de l’Aube. A Record lança agora a “versão definitiva” do livro. Gostaria que você explicasse qual a diferença entre esta versão e a primeira.
BM: A versão definitiva é o resultado de dez anos de trabalho. Fui levada a isso por ter feito a adaptação do texto para o francês e ter acompanhado a tradução. Ao adaptar o texto para outra língua, encontrei soluções melhores e fui modificando o original. A versão brasileira supunha conhecimentos que o francês não tem, e eu reescrevi várias passagens em função disso. Queria que o texto passasse mesmo para a outra língua e tive que adaptá-lo. Foi um trabalho considerável. Mas compensou, não só pelo resultado em francês, mas ainda porque eu reescrevi o livro e a nova versão brasileira é melhor.

P: Você então reescreveu o livro?
BM: Aproximadamente quinze por cento, mas, num romance, isso é muito.

P: Além da francesa, há outras traduções?
BM: O romance já está traduzido para o espanhol, por Alicia Dujovne Ortiz, e será lançado pela Homo Sapiensna Argentina. Na Alemanha, vai ser traduzido por Meyer Clason.

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Betty Milan e o Brasil de Rabelais”, entrevista concedida a Deonísio da Silva,publicada na revista O escritor, São Paulo, março, 1997.