Nós, puritanos às avessas

Nós, puritanos às avessa

 

Michel Lahud (1)

“De todos os males, o meu difere, agrada-me. Regozijo-me com ele. Meu mal é o que quero e minha dor é minha saúde. Não vejo portanto de que me queixo, pois meu mal me vem de minha vontade. É meu querer que se torna meu mal. Mas tenho tanto gosto em querer assim que sofro agradavelmente, é tanta alegria em minha dor que estou doente com delícias.” (Chrétien de Troyes).

Fazer de um mal certo um bem supremo: é exatamente desta contradição – glorificada tanto pelo que há de melhor como de mais ordinário em nossa tradição literária – que se alimenta toda paixão amorosa.

Há muito que esse sentimento contraditório, marca indelével de nossa cultura e móvel secreto de nossas (in)consciências, foi destacado e magistralmente analisado por Denis de Rougemont num livro já clássico sobre a história do amor no Ocidente (2). História do “amor recíproco infeliz”, na verdade, já que o amor feliz simplesmente não tem história: “O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do casal. É menos o amor satisfeito que a paixão do amor. E paixão significa sofrimento. Eis o fato fundamental.”

Grande parte do livro de Betty Milan – O que é o amor? – gravita em torno desse “fato fundamental” e é composto estritamente de suas irradiações. Não se trata, para a autora, de propor uma ou outra definição objetiva do amor, mas de assumir, em seu livro, a própria lógica da paixão amorosa, enredando-se, de saída, no interior de sua trama. Em vez de tentar dominá-la (“o amor só existe quando me escapa”), mediante um tratado, deixa-se impregnar por ela, cede às suas solicitações e, como “tomada”, entrega-se à escrita à maneira do próprio amante “que tudo espera do amado e sobretudo teima em navegar”. Escrita errante, portanto, que, ao fazer do amor menos seu objeto do que seu guia, vai apenas traçando, sem método rígido nem plano predeterminado, uma viagem concêntrica ao redor do mundo trágico da paixão. E, no cruzamento promovido por esta escrita entre vários mitos gregos, grafitos e diálogos de rua, cenas de teatro clássico, contos árabes, ditos amorosos corriqueiros, versos líricos e célebres cartas de amor, sempre o mesmo “fato fundamental” – não existe amor feliz – é revelado em cada fragmento do texto, através de alguma de suas variantes: ora o amor-paixão aparece como busca do objeto perdido; ora se mostra narcísico em sua essência; ora inexistente, sem vínculo com a morte; ora necessariamente cúmplice da solidão.

Flashes sobre uma paisagem bem familiar, a incursão de Betty Milan pelos domínios da paixão do amor apresenta-se, pois, como uma viagem não de descobrimento, mas essencialmente de reconhecimento. Ou seja, acima de tudo, como um generoso convite para que nós, leitores, dando curso às nossas associações e lembranças, retracemos, sobre as pistas impressas no texto da autora, nossas próprias trajetórias; e para que, reconhecendo-nos assim neste texto, reconheçamos, ao mesmo tempo, que estamos vagando todos, desde sempre, no mesmo barco.

O caráter extemporâneo do amor

O livro de Betty Milan é um convite à divagação por mares tantas vezes navegados. Por que a apreensão declarada da autora por escrevê-lo? De onde vem o receio de que falar do amor “em brasileiro” possa parecer ridículo e de que seu texto possa se tornar objeto de escárnio público? (3)

O que mais desagrada – ou melhor, incomoda – em O que é o amor? é, em primeiro lugar, seu caráter extemporâneo. De fato, “a arte de amar é hoje a de gozar e o saber dos sexólogos nos governa; ao mito do amor eterno substituiu-se o do orgasmo genital perfeito. (…) O gozo prometido é só o do orgasmo e este, um dever”. Ora, “o dever do gozo é uma violência contra o amor” – escreve a autora. Por quê? Simplesmente por ser o amor um desejo (impossível) de suprimir as diferenças, de igualar os amantes. “De dois fazer Um”: eis a marca profunda estampada sobre o amor pelas mais variadas e sólidas vertentes de nossa tradição cultural – da filosofia grega à religião católica, do pensamento esotérico à psicanálise. Se assim é, em que outro terreno, então, mais tropeçaria o desejo profundo que move o amor, senão no da sexualidade? À busca amorosa da identificação entre os sujeitos, a união dos corpos contrapõe o espetáculo de suas diferenças inalienáveis – e se o amor é crença de que de dois se possa fazer Um, o sexo é certeza de que em dois há sempre, no mínimo, dois.

Por isso, o mito do andrógino, a sua figura tão insistentemente evocada por nossa cultura como expressão do desejo amoroso perfeitamente realizado. Mas também por isso a espada da castidade separando os amantes é peça decisiva do jogo do amor cortês, essa encarnação primordial do nosso amor-paixão: “Nada sabe verdadeiramente do domnoi (dom) aquele que deseja a inteira posse de uma dama. Já não é amor isso que tende para a realidade” (4). Pois, sendo a realidade o plano em que a crença amorosa – profanada pela diferença dos sexos – revela-se pura ilusão, ela tende a desqualificar as promessas do amor e a desmenti-lo de modo inexorável. Por isso se pode dizer que o momento da satisfação do desejo físico dos amantes é, ao mesmo tempo, o da frustração de suas expectativas amorosas; e que, para os apaixonados, o sexo não é, como ingenuamente se pensa, uma apoteose, mas antes uma difícil prova. Como então não reconhecer no dever do gozo uma violência contra aqueles para quem, efetivamente, “o melhor da festa é esperar por ela”? A fugacidade do orgasmo pode bem satisfazer a volúpia física dos amantes. Já o amor é, por vocação, desejo pudoroso, “masoquista, sim, porém ilimitado, eterno” – é paixão que, “na impossibilidade do gozo narcísico do espelhamento recíproco”, só um certo culto do gozo da falta consegue manter acesa.

Que amor mais puritano! Parece até uma freira falando de amor! – insurgem-se os leitores “modernos”, fazendo coro ao samba: “Romeu e Julieta? Que coisa mais careta”. Comentário à primeira vista desconcertante, pois quem não sabe que toda paixão implica ascese e que, portanto, mística ou erótica, sua linguagem é sempre a mesma? Se o texto de Betty Milan soa ao leitor algo religioso, isto, então, deveria ao contrário ser creditado como um dos méritos do livro (que, por sinal, em suas linhas acolhe, sem nenhuma fissura, várias vezes as palavras daquelas especialistas da paixão amorosa que foram a religiosa portuguesa Mariana Alcoforado e Santa Teresa d’Ávila, por exemplo).

Mas essa crítica inconsciente torna-se imediatamente reveladora, na medida em que deixa transparecer nas próprias acusações que formula as pulsões precisas que de fato a mobilizam. Pois o que mais, através da denúncia de puritanismo religioso, poderia ser visado no texto de O que é o amor? senão seu frontal desacato justamente aos preceitos básicos da religião e do puritanismo oficiais de nossa modernidade? Ao nos indicar a lógica da paixão amorosa, Betty Milan peca sobretudo pelo exercício de um discurso no qual a sexualidade desempenha menos o papel de ídolo do que o de obstáculo, contrariando assim as exigências fetichistas de nosso culto venerado ao sexo. Peca ao exaltar no amor do Amor os prazeres da espera e o gozo da falta, por não pregar em favor das maravilhas do orgasmo redentor e da plenitude prometida no gozo genital satisfeito.

Peca, em síntese, por não posar descontraidamente de alegre sacerdotisa “do falo erigido e da vulva exposta”, acomodando-se melhor à dramática imagem de vestal devotada ao fogo espiritual e ardente da paixão. Falar de amor assim perturba a ordem oficial e consagrada do discurso de nossa época sobre a sexualidade: a ordem dominante e dominadora em que justamente, como tão bem mostrou Foucault na introdução de sua História da sexualidade, “o sexo, a revelação da verdade, o desmoronamento da lei do mundo, a anunciação de um novo dia e a promessa de uma certa felicidade se acham interligados”. Ou seja, a ordem discursiva onde o sexo passou a servir de suporte “a esta velha forma, tão familiar e tão importante no Ocidente, da predicação”. Entende-se daí que, para os pregadores da nova ordem sexualista, o amor-paixão deva ser, mais que ridicularizado e depreciado, radicalmente banido. “Valorizado, só o sexo” – completa Betty Milan – “a que a modernidade nos entrega para neutralizar a paixão. Só sexo, forma de interditar o amor, fazer de nós puritanos ao contrário.”

E onde encontrar demonstração mais profunda desse puritanismo às avessas do que na própria língua? Pois se é verdade que “fazer amor”, por exemplo, é expressão que atende a um velho puritanismo em relação às coisas da carne, “transa” é, ao inverso, a palavra mágica que, por suas conotações claramente libidinosas, hoje serve de cobertura à vergonha de se falar abertamente de relações sexuais. De modo que, em vez de acusarmos precipitadamente um discurso de amor-paixão de religioso ou pudibundo, de careta ou de reacionário, deveríamos, antes, indagar-nos – tal qual Foucault em seu capítulo não por acaso intitulado “Nós, vitorianos” – como foi possível que o lirismo e a religiosidade, nas sociedades industriais e ocidentais, tenham sido transferidos para o sexo.

A prolixidade sexualista

A prova de que tal transferência vingou entre nós está no psicanalismo – avidamente consumido nas mesas dos bares e lares de nossa “burguesia esclarecida” – e na presença obrigatória em nossos vídeos, na voz e no sorriso profissionais de nossas sexólogas de plantão. Respondendo diretamente à incitação discursiva através da qual o controle social sobre nosso desejo e sexualidade passou a ser modernamente administrado, esta fastidiosa prolixidade sexualista a que hoje assistimos, longe de contestar os quadros do poder instituído, exercita-se em sua própria esfera e é condição mesma de seu bom desempenho.

E esta prolixidade afeta, igualmente, o trabalho de uma certa imprensa, que se pôs a definir, para consumo cultural de mercado, seus critérios de qualidade/criatividade através de padrões de pura sexualidade. Operação singular, com efeito, mas sem dúvida responsável pela sensação de que um palco tão vigoroso como, por exemplo, o da MPB, vem sendo, já há algum tempo, transmutado num autêntico e insípido “mar de peitos e bundas”. Se não, como entender o acolhimento caloroso de Cauby Peixoto por uma burguesia fascinada com a atribuição ao cantor do glorioso título, na imprensa, de “o precursor do assumir”? Ou o fato de que uma Ângela Ro-Rô seja bem mais conhecida por seus “escândalos” do que por suas melodias? Ou que o som pasteurizado dos discos de Gal Costa seja imputado à sua “amizade colorida” com Simone?

Não é de estranhar que, para os promotores dessa confusão obsessiva entre produção cultural e exibicionismo sexual, um livro como O que é o amor? possa ser altamente desconcertante. Aos extorquidores profissionais da confissão erótica, deve mesmo frustrar a réplica que o próprio livro tem a oferecer à sua empresa: a firme sustentação amorosa do pudor e do recato. Assim como não deve também ser fácil para eles – tão bem condicionados à associação sacramentada do discurso sobre o sexo com uma certa pose “progressista” e um tom de voz revelador de um grande orgulho de ser “moderno” – perceber como e por que “desistir, se necessário, de ser moderno”. Cometer o anacronismo de trazer o amor de volta à nossa cena pode hoje, de fato, encarnar uma atitude profundamente subversiva.

Porém, não é apenas por sua inatualidade que o livro de Betty Milan se faz provocante, mas também por sua especial atenção a uma paixão cujas fontes não são, de fato, genuinamente nacionais. Como diz a autora, além de arcaico, “o amor do Amor é estrangeiro, o nosso é o amor do brincar ou o brincar é o amor à brasileira, entre os sexos e no Carnaval”. Pensemos em Macunaíma – sugere-nos ainda a autora. Ao contrário do silêncio de Tristão – cujo amor “para existir requer a ausência”, porque culto soturno da memória e da espera –, mas à diferença também do pálido autômato da sexologia – monotonamente programado para só “erigir-ejacular” –, o herói solar de nossa gente morena “só quer se assanhar”, fazendo do amor um jogo imediatista e incessantemente renovável, ou seja: uma brincadeira em que o sexo deve “erigir-se para não ejacular” e “o fim só existe para promover o começo”, puro estímulo à criação imaginosa das “artes novas do brincar”.

É bem verdade que Betty Milan nos revela muito pouco dos segredos dessa criação e das artes particulares desse amor à brasileira. Cedendo à premência do impulso militante, prefere, efetivamente, entregar-se, em seu rápido capítulo sobre a paixão do brincar, menos a um cuidadoso trabalho de conceituação do que a um empenhado discurso de acusação, no claro intuito de, acima de tudo, denunciar a violência e as afrontas de uma ética sexual machista. Com este propósito em vista, ela se sente então autorizada, após sua longa incursão pelos domínios dramáticos do amor, a passar logo à demonstração de que macho que é macho não se afina.

Empreendimento descabido – queixam-se agora os leitores “brasilianistas” –, pois de que nos vale uma demorada visita ao estrangeiro quando ainda nem sequer sabemos apreciar devidamente nossa paisagem própria? Para que, noutros termos, levar o amor tão a sério se, afinal, deste culto trágico nós, brasileiros, reconhecidamente “fizemos uma imensa brincadeira”?

A tais protestos de cunho nacionalista seria demasiado fácil retorquir, invocando simplesmente este truísmo: que nem todo estrangeiro nos é exatamente estranho, ou que nem tudo no Brasil é feito só de produtos nacionais genuínos. Assim também, evidentemente, com o nosso cenário amoroso. Ou não são, por exemplo, nossas fotonovelas – esses quadros difusos da educação sentimental de nosso povo – todas diretamente importadas da Itália e, nessa medida, produtos de uma cultura, por certo, machista, mas nem por isso menos profundamente embalada pela melodia operística da paixão do amor? Quer dizer que, em Vera Cruz, Cabral descobriu a religião do gozo livre e uma terra de corpos exibidos com pureza – “um horto de delícias onde se vive na ignorância da morte e da dor” – e inspirou ao mesmo tempo na alma de nossa gente o sopro da religião trágica que movia (“navegar é preciso, viver não é preciso”) suas treze caravelas. Sopro, hoje, cotidianamente enlatado pela TV Globo, a ponto de o reexpedirmos de volta ao Tejo, com outro timbre, mas sempre sob o mesmo invólucro novelesco tecido de muitas dores e de obstáculos reiterados ao amor-satisfeito – verdadeira toada de “fadas tropicais” ressoando (ó, louco amor!) em nossa densa mata eletrônica, onde então menos se perde do que efetivamente se reencontra grande parte dos corações de sangue lusitano.

A canibalização de Tristão

Mas, estrangeira, a paixão do amor nos diz respeito de modo ainda mais profundo. Está presente no bojo mesmo da nossa forma de amar, enquanto o outro, a partir da negação do qual nossa paixão do brincar se afirma e se determina. Nesse sentido, a referência ao culto trágico do amor é essencial para se entender uma brincadeira que, invocando alegoricamente esse culto, busca justamente exorcizar suas penas. E é nisto que o ritual carnavalesco se apresenta como clara manifestação de um impulso ao mesmo tempo crítico (porque vinculado ao sofrimento e à morte) e apologético (porque devotado à vida): impulso tematizado por José Miguel Wisnik em artigo no qual mostra, com extrema lucidez, como a tragédia e a alegria são ecos que sempre se respondem, compondo uma “novela sem fim e sem fundo onde se misturam riso e profundidade” (5). É com esse jogo de espelhamento e com essa mistura que se molda a máscara do folião, do nosso Macunaíma, Tristão canibalizado desfilando histrionicamente na Avenida.

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1. Michel Lahud (1949-1992) foi professor universitário na área de Estudos da Linguagem. Escreveu: A propósito da noção de dêixis (Ática), com L.F.F. Matos; Matei minha mulher: o caso Althusser (Kairós), e A vida clara, ensaio sobre Pier Paolo Pasolini (Cia. das Letras).
2. L‘Amour et L’Occident, cuja primeira edição data de 1939 e do qual existe uma tradução portuguesa (Moraes Editores) publicada em 1968.
3. Apreensão, aliás, que as violentas reações de uma certa crítica jornalística de cultura justificou, confirmando assim as premonições da autora.
4. Fauriel, Histoire de la poésie provençale, 1, 1846, citado no livro de Rougemont.
5. “Uns são muitos”. Folha de S. Paulo, 21/06/1983. p. 3.