LUCIA CASTELLO BRANCO

LUCIA CASTELLO BRANCO (1)

 

“Uma feita um homem foi lá. Era madrugadinha e Vei mandara as filhas visar o passe das estrelas. O deserto tamanho matava os peixes e os passarinhos de pavor e a própria natureza desmaiara e caíra num gesto largado por aí. A mudez era tão imensa que espichava o tamanhão dos paus no espaço. De repente no peito doendo do homem caiu uma voz de ramaria:

— Curr-pac, papac! curr-pac, papac!…

O homem ficou frio de susto feito piá. Então veio brisando um guanumbi e boleboliu no berço do homem:

— Bilo, bilo, bilo, la… tetéia!

E subiu apressando pras árvores. O homem seguindo o vôo do guanumbi, olhou pra cima.

— Puxa rama, boi! o beija-flor se riu. E escafedeu.

Então o homem descobriu na ramaria um papagaio verde de bico dourado espiando pra ele. Falou:

— Dá o pé, papagaio.

O papagaio veio pousar na cabeça do homem e os dois se acompanheiraram. Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito! que era canto e que era cachiri com mel-de-pau, que era boa e possuía a traição das frutas desconhecidas do mato.” (2)

Uma feita a mulher foi lá. Lá longe, em outras terras de quatre vingt dix, de nem ê nem é. Uma feita a mulher foi lá para ver o homem. Melhor: para falar ao homem, ao Doutor:

“— Diga, minha cara.”

“— Sim, sim Doutor, é que eu já estou (…) Quero vê-lo”. (3)

 

Uma feita a mulher foi lá para falar e falar, como se possível fosse falar lá de uma língua de cá que ficou: “Que escuta aquela que me incitava a falar desejando mais e ainda dizer? Capturava fazendo acreditar numa saída? Quem o homem? Um eterno cachimbo de âmbar e marfim, menos para fumar do que para aplacar sua boca. Vestimenta de veludo e seda, cor de bispo ou outra que fosse extravagante como se no consultório ele estivesse no palco — protagonista da cena que invariavelmente o surpreendia: pai, avô, mãe, madrasta… os papéis todos que lhe eram atribuídos, ele, calando-se encarnava.” (4)

Bem-vinda, ele me vendo me falou, e, como se entre nós o tempo não fosse, a ausência não contasse:

“— Diga, repetiu ele, interrompendo a associação.

— Só quero mesmo lhe contar que o vi

— Onde? perguntou surpreendido.

— Sonhando, e era o senhor que lá na terra comia sa-po-ti, no alto de uma mangueira, eu na mesma copa que bebia guaraná, um só rindo para o outro, para o anjo retinto coroado de ipê… o senhor que soletrava palavras, ca-ram-bo-la, ma-ra-cu-já, a-ba-ca-xi, dizia ca e era uma ave que pousava, ram outra — ararajubas, araras vermelhas, jandaias para comer da sua ambrosia. Me dá, me dá, oi me dá sapoti, e o senhor saciava os bichos como podia, repetindo: Quem me quis me levou… Foi-se com o anjo para o céu seguido de papagaios e periquitos verdes”. (5)

Uma feita a mulher-papagaia foi lá para falar ao homem desse impossível de ser mulher, nessa impossível língua de uma memória turco-brasileira, de uma terra pátria, querendo antes falar de uma terra outra, de uma terra mátria, numa língua outra de nem ê nem é, numa língua em que as palavras pudessem ser de novo coisas com seu aroma e cor. E diante do homem, com se eterno cachimbo de âmbar e marfim, o que dizer além do impossível de dizer? Que dizer além da tagarelice linguageira de um papagaio brasileiro que repete o outro, que se repete, que se repete, mas que no gesto mesmo da repetição fala de uma outra voz, de um outro tom, de um outro lugar?

O papagaio, esse significante já tornado símbolo de uma cultura tropical, terceiromundista, colonizada, tupiniquim, certamente nos falará com propriedade desse Brasil ainda Colônia, ainda pés descalços, ainda menor e abandonado. Mas o papagaio é também quem nos fala desse lugar da tagarelice que é o lugar do analisando, esse lugar de uma repetição incessante, de uma incessante bordagem de um vazio que não cessa de não se inscrever. E disso, aos olhos da analisanda, o Doutor Xan parecia bem saber — atirando no que via, acertava no que não via, olhar o olho-talismã pendurado no peito da cliente e assinalar ali a presença de um fetiche, de um feitiço, de magias e ritos ancestrais, de uma América redescoberta, de uma origem reinventada: “Podia eu, que só me estranhava na América, não amar quem sorrateiramente me legitimava as origens? Não querer mais e ainda o Doutor?” (6).

Por que o papagaio — ou talvez mais ainda a arara, esse significante luminosamente feminino — fala-nos ainda e sobretudo de uma tagarelice da mulher, de um discurso que se constrói por ritmos paradoxalmente abruptos e lentos, por movimentos absurdamente excessivos e lacunares. E aqui, como em Macunaíma, o papagaio deixa de ser o mero repetidor da voz do outro para se constituir como o lugar das vozes e das resignificações, o lugar do cruzamento de intertextos e palavras, o lugar de produção de um saber outro que talvez não saiba dizer de si a não ser por insistentes repetições, gagueiras inusitadas, gemidos, balbucios, gritos e sussurros: “Inhô podia se perder, já eu não estava para isso, errar de uma a outra palavra e me desentender. O grande homem que me perdoasse, férias do inconsciente eu tiraria! Uma retirada tática, como se tática de se retirar houvesse e, por simples decreto, eu deixasse de ser eu. Papagaio voluntarista… loro, loro, loro… poder é querer, dequerê, dequerê, dequerê” (7).

Assim se faz o percurso dessa mulher-brasileira-turca de pés no chão pelas terras de Notre Dame do Doutor Xan: um percurso pelo feminino. E como falar nessa língua da mãe, nessa língua de um gozo outro e fora da linguagem, se ela não ousara ainda pronunciar o nome do pai? Se ela narra:

“— Um ra-to, balbuciei eu decompondo sem querer a palavra, ouvindo o ra, a primeira sílaba do nome que desde a adolescência evitava pronunciar: Raji.

— Diga, diga, insistiu o Doutor imperativo.

— Raji, o nome do pai.

Nesse ponto ele se levantou. Que eu ficasse com a palavra banida, a que tinha se corporificado no rato imaginário; me houvesse com o pai, cujo nome revelava as origens que eu desejava esquecer.” (8)

Pronunciando o santo nome do Pai, abre-se um vão para que se insinue monocórdica a absurda língua do ão, essa língua materna que fala de uma terra de origem, que não é certamente a pátria nostálgica ai-que-saudade-que-eu-tenho, mas esse território do antes e aqui, que é também do depois e do lá, lá onde o filho impossível poderia então nascer: “em ão…mão…pão…chão… em ãe…ora meu… me dá logo a mãe”.

Língua do aqui e do lá, que é também de antes e de depois: lalíngua. Disso nos fala este texto-papagaio de Betty Milan, filha reinventada em busca da mãe-língua materna velada sob o verbo do pai. Disso nos fala este texto balbuciante, que parece não ir a lugar algum senão ao próprio discurso, senão ao próprio lugar de discurso, o consultório onde o Papagaio e o Doutor se encontram, episodicamente, para falar de uma língua outra que apenas de viés e estrangeiramente se fazia ouvir.

Mas para tanto, é preciso dizer adeus ao pai. Dessupor-lhe um saber, deixando de amá-lo como se deixa de amar um amor qualquer, que subitamente desaparece como uma estranha nave espacial cujo brilho se apaga: Como termina uma amor? — O quê? Termina? Em suma ninguém — exceto os outros — nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: “o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho” (9).

Para tanto, é preciso em certo momento calar a tagarelice nessa língua outra até que a língua da mãe possa finalmente se pronunciar reinventada. E, nesse momento, o gesto último do Doutor soube ser de extrema sabedoria, de fina delicadeza: as mãos sobre os lábios daquela que ainda insistia na palavra final falam menos de um silêncio de fim de análise que da redescoberta de uma língua outra, de um outro gozo tornado possível com a produção de uma escrita.

 

 

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(1) Texto da conferência pronunciada em Belo Horizonte, em agosto de 1991, por Lucia Castello Branco, professora de Literatura Portuguesa da UFMG e autora de O que é escrita feminina (Brasiliense, 1991), entre outros.
(2) ANDRADE, Mário de. Macunaína: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins, 1974. pp. 221-222.
(3) MILAN, Betty. O Papagaio e o Doutor. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 47.
(4) Id.Ibid., p. 69.
(5) Id. Ibid., p. 70.
(6) Id. Ibid., p. 69.
(7) Id, Ibid., p. 67.
(8) Id. Ibid., p. 110.
(9) BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. p. 86.