ALICIA DUJOVNE ORTIZ

ALICIA DUJOVNE ORTIZ *

 

A Cabala procurava dar um sentido ao sofrimento dos judeus expulsos da Espanha, afirmando que eles tinham uma missão: a de recolher as centelhas que teriam se dispersado pelo mundo quando uma cabaça de luz, existente na origem, se quebrou. Para a Cabala, o exílio não era portanto um sofrimento e sim uma missão. Cabia ao exilado recuperar as centelhas.

Quem me ensinou isso foi um rabino francês, autor de um livro cujo título poderia ter sido o de Betty Milan: Ler às gargalhadas. Ela, no seu livro, gargalha.

O Papagaio e o Doutor é feito de fragmentos. Por quê? Porque a sua autora não escreveu um livro como os franceses fazem, desenvolvendo uma só idéia do começo ao fim, um livro que avança em linha reta. Não podia fazer isso porque a missão dela era de recolher centelhas — nós latino-americanos somos feitos de centelhas senão de fragmentos esparsos.

Mas, apesar da nossa identidade fragmentária, os fragmentos poderiam ter sido organizados de outra maneira. Por que então Betty Milan conta em dois níveis? no da análise, por um lado, e no da rememoração da história dos ancestrais imigrantes, por outro? Por que este ziguezague? Simplesmente porque os latino-americanos são todos descendentes do navio. Inclusive os índios. Pelo simples fato de terem visto os descobridores, a alma deles se estraçalhou, eles se tornaram mestiços. Todo mundo na América Latina é mestiço e, por isso mesmo, temos um modo oblíquo de ocupar o espaço.

O nosso modo faz pensar no filme de Charles Chaplin, no do Charlot imigrante, que se senta à mesa, toma uma colher de sopa e oferece uma colher ao outro, uma para ele e uma para o outro, uma para ele e uma para o outro, repetidamente. O livro de Betty Milan tinha que ser uma colher para a França e uma colher para o Brasil, uma para o Doutor e outra para a rememoração da história ancestral.

Esta forma oblíqua do romance foi imposta à autora pelo fato de ter nascido num continente oblíquo. A escrita barroca, que é a nossa, está fundada na linha transversal, contrariamente à escrita clássica. Dizem que existe uma enorme diferença entre o samba e o tango, porque o samba é alegre e o tango é triste. Trata-se de uma análise superficial, pois o samba e o tango correspondem a duas maneiras inclinadas de se comportar na terra. Isso, no tango, é evidente e também no samba. Quando a gente pensa na mulata se desancando de um lado para o outro, a gente se diz que é como no filme do Charlot, uma colher para mim e outra para você.

O barroco se estrutura a partir do vazio e do excesso. Houve mesmo quem afirmasse que o barroco preenchia o horror do vazio pelo excesso. E o barroco tanto existe nas partes de O Papagaio e o Doutor em que Betty Milan se refere aos ancestrais e vigora o excesso quanto nas outras partes em que ela se refere ao Doutor e vigora o vazio.

Não entendo por que Borges não é considerado um escritor barroco. Ele começa as suas novelas afirmando que não quer contar a história que ele vai contar. Trata-se da atitude de Seriema face ao Doutor, quando ela silencia embora esteja no consultório para falar.

No que diz respeito ao inefável Doutor, depois de ter lido o livro, tenho grande simpatia por este homem, que é tão brasileiro porque suscita a ironia e faz a heroína, Seriema, rir dele. A gente sabe o quão importante o riso é para alguém que, pela condição de exilado, é obrigado a gargalhar. O Doutor, aliás, faz rir porque, na qualidade de grande bruxo parisiense, o papel dele é o de um sedutor — aparece, aliás, escondido nas volutas de fumaça.

No que diz respeito ao tempo, o Doutor também se comporta como um brasileiro, não se submete ao tempo cronológico, não começa a sessão e nem a termina na hora marcada; o seu modo de agir é comum nos países tropicais.

Mas a melhor das qualidades do grande homem é a de aceitar todos os dizeres. Ele sabe que a verdade não é uma só, que os opostos são verdadeiros e isso é muito latino-americano. Quando escrevi a biografia de Eva Perón, ouvi versões contraditórias dos fatos e me dei conta de que todas elas eram verdadeiras.

Sendo francês, o Doutor é profundamente latino-americano. Por isso, não é estranho que Seriema encontre no seu divã a mais luminosa das centelhas, a sua alma materna brasileira.

 

 

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* Intervenção na mesa redonda sobre O Papagaio e o Doutor, na Maison de l’Amérique Latine, em março de 1997, por Alicia Dujovne Ortiz, escritora argentina radicada na França, autora de Eva Perón (Grasset), entre outros.