A Causa Freudiana

A Causa Freudiana

Congresso Brasileiro de Psicanálise da Causa Freudiana do Brasil, 1985

 

Brasília tem euforia no ar, dizia Clarice Lispector. Cito-a para me referir à Brasília desta Causa, que é a freudiana, que aqui se inaugura graças aos esforços de vários, aos esforços vários do país.

Brasília é perfeita e sem erros. A mim, só me salva o erro, dizia ainda Lispector, que de novo cito para falar da Psicanálise, pois não interessa o sucesso, mas o que falha e sucede através de sintoma.

Se assim não fosse, o discurso psicanalítico já não se reconheceria na ética que é a sua, e o lugar onde ele se pronuncia estaria ameaçado de desaparecer.

O que nos traz a Brasília e nos congrega, se não a certeza de que só o real, senão o impossível, revela o sujeito? A certeza de que este só se define pelo que lhe escapa?

O que, no entanto, no nível da Causa, está para ser revelado e dar assim a esta nossa atividade um sentido novo? Talvez seja o significante Brasília, futuro que aconteceu no passado e quer vigorar significativamente no presente, saber de si através de nós, saber que significa ser o significante dos brasileiros.

Se é verdade que diferimos, que somos sem ser latino-americanos, resta-nos dizer quem somos. Nisso eu espero ver a Causa engajada, dizendo-nos em que o inconsciente de um brasileiro difere do inconsciente de um chinês ou de um francês, retomando assim uma proposta de Lacan que, lamentavelmente e não por acaso, ficou esquecida.

Lacan queria saber do inconsciente e, por isso, encontrou a censura pela frente. O sintoma da cultura brasileira pode até se dizer, mas não é ouvido, é sistematicamente abafado pela cultura oficial, que não quer saber da diferença e só se ocupa da nossa identidade para nos tornar idênticos aos outros todos que não somos.

A cultura da Causa, no entanto, é outra. Como a questão do analisando é “quem sou eu?”, isso implica a análise da cultura onde este eu se inscreve. A Psicanálise pode assim, no limite do seu campo, saber do país, reenviar a Brasília a sua própria mensagem, dotada, entretanto, de um sentido que Brasília desconhece.

A América é latina, mas, sendo brasileira, ela é ladina; gosta, como Macunaíma, de brincar e não nega que vê nisto um mérito. Onde, senão nesta América ladina, se ousaria afirmar a importância de brincar sempre, de não saber para sacar e de não guerrear para continuar, seguir vivendo como falasser, com dois esses, que fala para morrer e poderia, como Lispector, declarar: “Morri, morri assassinada por Brasília. Morri para pesquisar”.

Não fosse o cadáver, o analista não se conceberia. Ele então não se cadaveriza em vida para analisar? Para ocupar o lugar do Outro e daí reenviar ao sujeito a sua própria mensagem?

Mas como ser para Brasília o Outro? Assumir que nos cabe a tarefa de responder à questão da brasilidade, afirmar a diferença e nos inscrever na margem onde a Psicanálise encontra a Antropologia e se abre a partir do campo freudiano, o campo ainda inexplorado e no entanto fecundo da Etnopsicanálise.

Isso se impõe precisamente por sermos nós quem somos, sermos sem ser latino-americanos. O que é, no entanto, ser um latino-americano? Antes de mais nada, se reconhecer numa ideia do espírito europeu que nega as diferenças.

A ideia de ser um latino-americano é triplamente incômoda. Primeiro, porque não queremos ser uma ideia do outro. Segundo, e paradoxalmente, porque só nos concebemos através da Europa e não queremos ser percebidos por ela como diferentes. Terceiro, e em consequência, por não querermos nos assemelhar aos outros latino-americanos.

O melhor exemplo que me ocorre da nossa dependência ao espírito europeu se encontra nas sete teses de Celso Furtado sobre a cultura e a identidade, apresentadas recentemente, em Belo Horizonte, no Encontro Nacional de Política Cultural(1). Celso Furtado apresenta Aleijadinho como o último gênio da Idade Média, pois, diz ele, a sua mensagem, como a dos artistas medievais, atingia senhores e escravos. Ou seja, faz-nos descobrir que Aleijadinho não é daqui, já que não tivemos Idade Média; furta-nos o artista que, sendo grande, não pode ser nosso e, neste mesmo ato, valoriza o que não temos.

Celso Furtado deixa de reconhecer como nosso o que é nosso, recusa o que somos pelo que não podemos ser, já que o outro não nos reconhece como idênticos. Não admira que ele se refira a uma crise de identidade.

O mal-estar que nos causa esta alienação resulta numa recusa de tudo o que é do outro, senão mesmo numa recusa do outro, que se manisfesta através de descaso e onde o psicanalista pode detectar em ato o que Lacan chamava de hainamoration e cujos pressupostos já encontramos no texto de 1948, A agressividade na Psicanálise.

A exemplo disso, temos Celso Furtado afirmando que a assimilação de novas técnicas pode mutilar a nossa identidade cultural, como se tudo o que temos, à exceção da cultura indígena, não resultasse de assimilação.

O outro lado da dependência é a xenofobia, pois, se assimilar é perigoso, tudo o que é produzido fora, em princípio, nos ameaça. O resultado é uma política da clausura. Para não correr o risco de mutilar o melhor e não importar absolutamente nada, vamos transformar logo este continente numa ilha.

Ser latino-americano é impossível, e a saída é uma só: atrevermo-nos a ser (saber) o que somos, afirmar a universalidade através da diferença.

Isso o Brasil que não duvida da sua identidade faz ladinamente, seja datando do Carnaval a sua origem com Lamartine Babo – “Quem foi que inventou o Brasil/ Foi seu Cabral… Foi seu Cabral/ No dia 21 de abril/ Dois meses depois do Carnaval” –, seja datando-a da felicidade com Oswald de Andrade – “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Ou, ainda, como Joãozinho Trinta. Dele ouvi que a possibilidade de carnavalizar tudo nos define, a cultura fluindo através da brincadeira, ou seja, descontextualizando a cultura, trazendo do Japão o kabuki, da China o Buda e da Índia as dançarinas, todos para a Marquês de Sapucaí.

A cultura do brincar faz de nós ladino-americanos e assim, precisamente, nos confere universalidade – ela então não me permite sonhar acordado? Ser criança embora adulto? Realizar essas possibilidades por todos desejadas? Ali se molda a brasilidade, mas ainda a humanidade, donde, aliás, a vocação internacional da cultura do brincar. Sonhar acordado… trazer a Estátua da Liberdade para a Sapucaí, os Jardins Suspensos da Babilônia, ver ali os nossos índios numa sala só de espelhos, a cabrocha encarnar Maria Antonieta e a vestal rebolar como só a mulata, tudo isso na ignorância feliz do princípio da não contradição. Ser criança… viver desculpabilizando a alegria que me toma, realizar na inocência as várias fantasias – tudo só segundo o princípio do prazer. Sonhar e ser, atualizando o mito universal do paraíso na Terra, exibindo seres inusitados da sua geografia fantástica – sereias, amazonas, cinocéfalos –, sua fauna e flora exuberantes, o ouro, a prata, o brilho e a transparência das minas de cristal.

A cultura do brincar é a do Brasil épico, que não se realiza através da literatura, mas do teatro, da grande ópera de rua que é o Carnaval das escolas de samba, onde, como na epopeia, o irreal coteja o real e a lenda rememora a história para celebrar a descoberta imaginária do paraíso na Terra. Ali, a realidade brasileira se reorganiza a partir do mito originário da conquista, oferecendo-se como uma realidade onírica. A epopeia nacional não se exprime pelo verbo e no ritmo só do verso, mas pela representação e no ritmo do samba. O poema épico que nos exprime é visual e musical. Precisamente por assumir esta forma, não foi reconhecido como tal. A prevalência da música encobria o sentido que, assim, não foi captado. Nisso também contou o descaso da cultura oficial pela cultura do brincar.

O ladino-americano, entretanto, sabe a sua força, reconhece os seus valores e preserva cuidadosamente o patrimônio, a memória das suas tradições. “Yes, nós temos Braguinha” é o que a Mangueira gloriosa opôs à crise, para mostrar que esta não a afeta, que é bem outro o seu país, homenageando Braguinha, que, yes, é nosso, rememorando, através das alegorias, os sambas de sucesso e a história de passados carnavais.

A cultura satírica do brincar esquece que o velho é marginal e cultiva a criança para se renovar – ela não exclui, integra. E a sua reivindicação profunda é a da nossa diferença, como se percebe, por exemplo, na marchinha Touradas em Madri, de João de Barro, o Braguinha, e Alberto Ribeiro, cantada desde 1935:

 

“Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri, beijar Ceci.
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha;
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha.
Caramba! Caracoles! Sou do samba,
Não me amoles.
Pro Brasil eu vou fugir!
Isto é conversa mole para boi dormir!”

 

Através do brincar e pela sua escuta, podemos afirmar como valores os que ladinamente elegemos e a que de fato não damos ouvidos, os valores da nossa identidade; podemos talvez deixar de ser um país de sobremesa, como dizia Oswald – “café, açúcar, fumo e bananas” –, conquistar enfim a mesa para exigir então “que nos sobrem ao menos as bananas”.

Assim, fica aqui o meu voto de uma prática psicanalítica outra, bananalítica. E ainda que brasileiramente seja alegre este congresso que, na boa companhia de Nazar, Humberto e Magno e de todos os presentes, eu também abro.

 

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2º Congresso Brasileiro de Psicanálise da Causa Freudiana do Brasil, Brasília (DF), 4 a 6 de outubro de 1985.

(1) “Que somos?”, conferência proferida por Celso Furtado no I Encontro Nacional de Política Cultural, Belo Horizonte, 23 de abril de 1984. O texto foi publicado em Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, de Rosa Freire d’Aguiar (Org.). Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado/Contraponto, 2012.