A ameaça da canção de ninar

A ameaça da canção de ninar

Revista Veja, 24/08/2011

Quem dorme aceita se retirar da realidade e ficar indefeso. Esta retirada, sem a qual nós não vivemos, pode ser angustiante e deve ser facilitada. Por isso, espera-se de uma canção de ninar que ela seja apaziguadora. No entanto, ainda hoje, no Brasil, ouve-se a canção aterradora com a qual eu fui criada.

Tive o desprazer de constatar isso, ligando a TV Globo e vendo um ator que a cantava, segurando  nos braços um bebê: «Dorme nenem que a cuca vem pegar/ Papai foi pra  roça/ Mamãe foi passear».  O rosto do ator era bonito e o bebê comovente. Dois anjos mas, sem ter consciência do que fazia, o ator ameaçava o bebê. Dizia-lhe que o pai e a mãe estavam ausentes, e, caso ele não dormisse, a cuca o levaria.

Popularmente, a cuca é uma velha feia parecida com um jacaré. Segundo o Aurélio, um bicho-papão, um papa-gente, etc. E, segundo Monteiro Lobato, uma bruxa com as unhas compridas como as de um gavião.

Como explicar a vigência de uma canção de ninar tão assustadora se não pelo sadismo dos adultos em relação às crianças? Um sadismo que predispõe ao masoquismo e cujas consequências podem ser nefastas. A educação começa no berço, com as primeiras palavras, que tanto podem abrir quanto fechar o caminho. Isso significa que o educador – seja ele o pai, a mãe ou outra pessoa – precisa atentar para o que diz. Em vez de fazer menção à cuca, escolher, por exemplo, uma canção de ninar como  a dos Beatles «Hora de dizer boa noite, dormir … O sol agora apagou a sua luz… Hora de dormir». Uma canção que associa o sono à desaparição do sol e faz dele um fenômeno natural.

Ninguém é obrigado a procriar. A obrigação está fora de moda. Mas quem tiver e não quiser se preocupar com o filho já crescido, precisa cuidar do mesmo durante a sua infância com devoção e inteligência, contrariando os hábitos, se preciso for. A vida não é fácil, e, por isso mesmo, é imperativo evitar dificuldades futuras. A prevenção é sempre melhor que o tratamento. Nós só esquecemos disso porque não somos educados para ser felizes e sim para repetir o que os outros fizeram sem questionar.