SÔNIA RÉGIS

SÔNIA RÉGIS (1)

 

Tanto na teoria quanto na ficção, Betty Milan vem se dedicando a refletir sobre o pensamento e o comportamento brasileiros. Amor, sexo, futebol, Carnaval e, agora, o roteiro — de ficção e de fato — de um dos tantos possíveis inícios da realidade brasileira. O Papagaio e o Doutor revisita a ambigüidade dos nossos fundamentos históricos, psicológicos e sociais. É um texto que retoma com muita propriedade uma das mais ricas inquietações do Modernismo: a necessidade de voltar a olhar para os nossos inícios.

A imagem caleidoscópica de nossa cultura dificulta que nos olhemos de frente; encarar as diferenças é encarnar uma realidade às vezes muito dolorosa. No entanto, a Literatura Brasileira voltou a realizar este tema nos últimos tempos, e o livro de Betty Milan é o testemunho de que é esse o nosso caminho. É necessário enunciar “as palavras todas para das vergonhas tirar o véu”, como ela o finaliza, pois a nossa sobrevivência depende desse sonho. “Do desejo de sonhar eu não quero e nem posso me curar”, diz a narradora, sem pontuar a afirmação. Afinal, o que se convencionou chamar de “pensamento brasileiro” nasceu do esforço dos modernistas em reverter a cena do nosso início, ora levantando o pano de frente e colhendo de surpresa os bastidores, ora puxando o tapete da representação histórica, mas sempre na tentativa de recuperar a imagem de si e do outro para ensaiar uma nova figuração.

Se os caminhos poéticos e filosóficos do Modernismo desvendaram o revés da cena da descoberta apontando para o estado paradisíaco da nostalgia européia de antes do baile da carnavalização cultural, foi para que não desistíssemos do nosso discurso. Depois de vestido o índio com a beca de bacharel da civilização e de criado o código comportamental do romântico bom selvagem, foi refeito o mapa de posse da terra-metafórica, onde deveria ser lançada a semente para uma nova utopia dos desencantados mitos europeus. O Modernismo ajudou-nos a perceber as artimanhas do messianismo e a fundar o conceito de antropofagia, carnavalizando tanto o aprendiz quanto o mestre — como Bouvard e Pecouchet tupiniquins — que papagueiam quaisquer modas ou modos.

Felizmente, alguns indícios apontam novamente para uma continuidade revigorada dessa revisão. O Papagaio e o Doutor nos põe de novo no caminho da releitura crítico-criativa dos conceitos de origem. Com ele voltamos a acreditar que alguns bocados do anunciado — e esquecido — banquete antropofágico podem nos fazer bem. Essa especulação é tão necessária quanto a erva amarga para a boa digestão. Na impossibilidade do resgate da origem, o começo é um início possível.

Em O Papagaio e o Doutor, Betty Milan parte de um começo condicional, que a ficção (assim como a filosofia e a psicanálise) torna possível: delatar todo discurso usurpado e diluído, incorporando no percurso do texto uma revisão da definição de conhecimento (contra o Papagaio e o Doutor). Essas são instituições reconhecidas e veneradas na nossa cultura: uma pela repetição inconseqüente da (in)formação decorada e mal digerida e a outra pela imposição de um saber como verdade, sem o reconhecimento das diferenças pluralizadas. A essas instituições malfadadas, seu discurso diz não. “Não, malgrado o papagaio loiro, que, empoleirado de toga nas cátedras dos pontos chaves do país, diria prontamente Supereu, spereu, spreu, esperando com isso despertar a culpa e nos inserir na via reta da civilização.” (2)

A autora começa pelo começo, isto é, fazendo com que a protagonista da história trilhe o caminho de um reconhecimento que, aliás, coincide com o beco sem saída da nossa história. Início dentro de início. “Por onde no entanto começar? O Doutor teria me dito imperativamente que o fizesse: — Diga, minha cara.” (3) O fascismo da linguagem, como bem mostrou Barthes, é dizer. Ao imperativo da história, portanto, resta responder com o condicional da estória. A fundação do texto de Betty Milan parece calar-se no aforismo de Guimarães Rosa: “A estória, em rigor, deve ser contra a História”. Seriema, a protagonista da narrativa, embora se sujeite a escrever o texto prometido ao Doutor (que serve para inscrever a memória da experiência da autora como analisanda de Lacan), deseja tornar-se agente do seu discurso. No seu discurso de ficção a figura do Doutor vai aparecer como uma categoria que se anula pela absoluta impossibilidade de comparação, dada a constância do artigo definido que precede todos os seus renomes — Xan, o grande homem, o taumaturgo, o incomparável, o redentor. Seriema não é uma logógrafa e, como Platão, sabe que todo discurso é órfão. Por isso pode afirmar que “é para não mais responder aos imperativos do grande homem que eu aqui estou” (4). A invenção do nome passa a ser o seu lugar.

O início é um condicional do imaginário (e da cura). Uma aprendizagem, um começo como anulação do imperativo do grande homem, na sua ausência. É uma condição do despertar, do perder-se para se achar, depois de “sessão atrás de sessão, e os dias e as horas para decifrar as palavras ditas e as escritas, comigo levar para Açu o Doutor” (5). Açu (que em tupi que dizer “grande”) é o nome do país onde deveria ser plantada a nova semente, o país de Seriema. A autora faz o início da estória coincidir com os inícios dados da nossa história mais oficial. Açu e Brasil são uma coincidência marcada pela intensidade desta sátira. Seriema vai ao “grande homem, o incomparável” (o quase inconcebível) com uma carta de apresentação, “pedindo que nos enviasse um emissário ensinar a sua arte” (6). E acaba sendo investida com essa incumbência, ela, a nativa, de trazer a arte dessa cura para Açu, seu país de nascimento, mas não de origem. O Doutor “recebeu-me vislumbrando terras de bons ares e águas infindas, onde em se plantando tudo dá e o melhor fruto seria a instrução da sua gente” (7). Seriema não tem propriedade para se apresentar, não tem apresentação: uma carta a representa. A única estória possível, portanto, é uma sátira — um prato de vistosos frutos (de outras sementes) verbais. Sátira quer dizer exatamente isso: ianx satura, prato cheio de frutos sortidos que se oferecia a Ceres, deusa das sementeiras (satum). E, tal como nas demandas anunciadas pelos primeiros registros da descoberta, o desejo dos colonizadores é ” transformar o país quase continente, de ponta a ponta todo praia parma, formoso a estender os olhos, num incomensurável chão freudiano” (8).

Além dos muitos engastes e resgates de citações que revêem a complexa realidade das culturas oprimidas, a autora mostra o complexo destino dos emigrantes, posição que ocupam os ascendentes de Seriema, que vieram do Cedro (metáfora para o país dos libaneses). Para superar a “fraqueza” de não pertencer à cultura dominante, os seus exigiram para ela uma educação especial, que não a conformasse apenas aos nativos da terra. “Tamanha a megalomania que em mim estava o começo e o fim, a história propriamente inexistia”. (9) Seriema (que em tupi — sari’ama — quer dizer “crista em pé”, concebida “para o máximo”, “para o píncaro”, também ela “doutora”, tingida sempre pelo “sonho do outro”, vai ao encontro do grande homem, o redentor, que a leva a curar-se dessa constante encarnação do desejo do outro. Seriema vai a Paris entregar a carta. Seu discurso procura pelos inícios, investindo contra o “papagaio loiro”. Para o “Doutor”, ela conta a sua história fragmentada. “Uma história americana da imigração, Sr. Doutor, uma açuana que não o é para os do Cedro e tampouco para os de Açu, entre estes aliás é uma ‘turca’, um ser inviável, senhor Doutor, no próprio país, à procura de outro onde seja reconhecida”. (10) Seriema persegue e é perseguida pela questão atávica, “a do nome”, e da identidade que lhe são negados pela falta de uma origem. Seriema-Cedro é Seriema-Açu e aprende a ser Seriema na língua.

O texto de Betty Milan não chega a se conformar num verdadeiro romance, não tem liberdade de narração, ocupa-se mais com a inscrição e menos com a descrição e não dá independência de ação e existência aos personagens exatamente porque pontua com acerto os múltiplos discursos da nossa formação, assentada nas impossibilidades. E se não tem uma autonomia imaginária é porque Seriema não tem essa independência, por ter o imaginário censurado na sua origem.

Seriema, no entanto, impede-se de realizar o papel de um “papagaio Loiro”. Embora até mesmo aceite o Doutor como “ancestral”, sendo batizada pelo seu conhecimento, não se converte e lembra-o numa sátira (o livro é dedicado a Jacques Lacan). Seriema não quer “mais penar como e pelo ancestral”, quer ser “escrava só do próprio idioma” e enfrenta o destino com o seu próprio discurso: “escrever brincando uma sátira”. Uma sátira que remende todas as suas respostas dadas ao “Diga” imperativo do Doutor. A sátira que o próprio Doutor havia preconizado. Seriema se cura pelo discurso, que a autora propõe como uma história circular. Junto com ela nós também podemos recomeçar. “Por onde no entanto começar? O Doutor teria me dito imperativamente que o fizesse: — Diga, minha cara. Mas é para não mais responder aos imperativos do grande homem que eu aqui estou.” (11)

 

 

____________________________

(1) “Banquete antropofágico do Brasil”, artigo publicado no Jornal da Bahia, a 25.1.1992, por Sônia Régis, professora de Semiótica e Literatura da PUC-SP e escritora, autora de O Brontossauroazul, entre outros.

(2) Milan, Betty. O Papagaio e o Doutor. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 47.

(3) Id. Ibid., p. 9.

(4) Id. Ibid., p. 9.

(5) Id. Ibid., p. 70.

(6) Id. Ibid., p. 9.

(7) Id. Ibid., p. 9.

(8) Id. Ibid., p. 10.

(9) Id. Ibid., p. 16.

(10) Id. Ibid., p. 48.

(11) Id. Ibid., p. 9.