Segredos de Betty Milan

Segredos de Betty Milan

 

Deonísio da Silva

O romance Carta ao filho, de Betty Milan, é também epístola ou encíclica dirigida a todos nós. Ela abre o coração ao filho e, por meio dele, a nós também; desarruma e arruma de novo os sentimentos de mãe, em vez de apenas relatar, revelando ao filho o que ele sabe, o que julgava saber e o que jamais saberá, se não ler este romance, pois é narrativa repleta de inconfidências.

Acompanho a literatura da psicanalista e escritora há décadas. Nunca a vi nem a senti mais terna, nem mais aguda, mais sagaz, garimpando nas palavras os modos do amor. Do amor pelo filho, pelo marido e pelas outras pessoas às quais verdadeiramente ama, aí incluídos os familiares e amigos de longo convívio. Podia dizer: é um amor comovente. Mas, não, preciso usar o plural: são amores comoventes esses amores ora repostos para exame e balanço. Este estranho masculino de balança também lida com dois pratos ao mesmo tempo, na busca do equilíbrio, seja sentimental, seja financeiro etc.

O romance é narrado em blocos intercalados, não segue uma estrutura linear, o que afasta qualquer possível monotonia. À p. 74 , a mãe diz com toda a simplicidade como foi o nascimento, ato inaugural do filho no mundo:

“O rosto crispado e a pele manchada pelo sangue da placenta, você era ainda um pedaço de mim. E, para todo o sempre, o sangue do meu sangue. Eu, que já te amava no meu ventre, te amei mais ainda e te dei o primeiro beijo, aquele que significa você é meu filho, e eu, sua mãe”. E fala ao filho sobre o pai dele:

“Seu pai primeiro entrou na nossa vida com rosas vermelhas e um ‘enfim, três’ no bilhete do buquê. Está guardado com os outros que eu recebi”.

O número três junta-se aos dois que o geraram, mas nem isso é usual no Brasil, desde os tempos do Descobrimento, quando foi inaugurado um outro tipo de brasileiro, sem pai e sem mãe, descuidado na roça, antes, e nas ruas, agora. Não é à toa que a frase “sem pai e sem mãe”, expressando um afastamento inexplicável, pois vem de onde menos se espera, entrou para o arsenal de expressões significativas, nascidas deste abandono:

“Nós perpetuamos uma tradição perversa datada do Descobrimento: “Engravidou? Deixa nascer. Nasceu? O que tenho eu a ver com isso?”. (…) São os filhos que ninguém quis, os filhos do gozo. Isso, obviamente, só muda se a lei mudar”.

Carta ao filho retoma a opção narrativa epistolar, tão fértil em tantas literaturas, trazendo verdades partilhadas, como a de que a água do amor nos é dada em mais de um copo.

Algumas perguntas persistem. Afinal, qual será a reação do menino, hoje homem, ao ler que o pai foi diretor de um cassino na Côte d’Azur? À p. 80, o passado, talvez inconfessável, vem à tona:

“Imagino seu pai de smoking, um uísque na mão esquerda e um cigarro na direita, circulando entre as mesas ou atento ao jogo, olhando os que corriam o risco de se arruinar para existir”.

O périplo iniciado na França, com o namoro, na década que mudou tudo no mundo, termina também na França, quando, viúva, ela acompanha o féretro do marido, que sucumbe a um câncer de pulmão num hospital de Paris:

“Se fôssemos capazes de imaginar o futuro, não viveríamos. Ficou a fotografia de um belo alsaciano de terno escuro e gravata listrada em cima da mesa onde escrevo”.

Que filho privilegiado esta narradora tem! Ela abre as entranhas da alma, para que ele entenda suas inconfidências e também para saber não de onde veio, isso ele já sabe, mas como veio. À hora do nascimento, quando o médico arranca do útero um menino de quatro quilos – a mãe já estava vinte acima de seu peso normal –, ela lembra nesse comovente memorial que “quem gritou foi você, mas podia ter sido eu”.

Ser mãe dói, e esta dor é um dos maiores prazeres da existência de qualquer mãe no mundo. Mãe é masoquista? Um tema que só poderia ter sido destrinchado pela fértil aliança da literatura com a psicanálise. Ainda que os escritores tenham chegado ao inconsciente antes, a psicanálise trouxe as novidades indispensáveis de outro olhar quando lhes passou a fazer companhia.

Autora de romances memoráveis, como O Papagaio e o Doutor, Consolação, O amante brasileiro, A paixão de Lia e O clarão, já traduzida para o francês, o espanhol e o mandarim, ela se destaca no panorama da atual literatura brasileira com uma obra referencial também na psicanálise e no teatro. É uma de nossas intelectuais mais completas, com uma vivência internacional que a fez desvincular-se de paroquialismos estéreis, dando à obra uma dimensão universal. Seu grande tema, como para todos os grandes escritores, é a condição humana, vivida em tempos e espaços específicos, matizada pela cor local, mas com as antenas apontadas o mais longe possível. Carta ao filho vem compor um dos pontos mais altos de sua prosa, conciliando temas controversos e sofisticados numa linguagem entendida por todos os leitores, dos quais não exige requisito algum, a não ser o de lhe dar atenção por algumas horas. Vale a pena perder estas horas.

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(*) Escritor e professor universitário, doutor em Letras pela USP, autor de Avante, soldados: para trás e Lotte & Zweig, entre outros livros.