Psicanálise e Literatura III

Psicanálise e Literatura III

 

P – Você retomou a prática do consultório sentimental, recurso que foi utilizado por Nelson Rodrigues (homenageado da Fliporto 2012) com um nome feminino. Qual o cuidado que um profissional deve ter na hora de responder a uma carta de um leitor que, por estar escrevendo a uma publicação, não deve ter tido uma consulta prévia com um terapeuta ou psicanalista?
BM – O consultório sentimental é uma tradição da cultura ocidental que data da Antiguidade. Assim, na maioria de suas cartas e tratados morais, Sêneca responde a amigos para transmitir o seu saber sobre a vida, o único saber verdadeiramente importante para este filósofo que passou a existência refletindo sobre o amor, a vida e a morte e nos legou as mais belas páginas. Sêneca precisa ser lido e relido, porque ele ensina que não é viver que importa, mas viver bem. Que só o tempo nos pertence e a vida é longa se for plena. Os antigos sabiam disso. Dai o lema da liga hanseática: “Navegar é preciso, viver não”. Um lema que nós conhecemos através de Fernando Pessoa.

P – No Brasil, o consultório sentimental mais conhecido foi o de Nelson Rodrigues, que se valia do pseudônimo Mirna e respondia como se fosse uma cartomante. Entrava no papel de Mirna, uma das tantas personagens criadas por ele, e fazia o teatro acontecer no jornal, se realizando também aí como dramaturgo. Desse trabalho resultam algumas pérolas, como, por exemplo: “Não há pior solidão do que estar mal acompanhado… mais vale o deserto do Saara”.Ou, sobre o casamento: “… num matrimônio em que falta amor, falta tudo”. E, sobre o sentimento amoroso: “Em amor, ninguém tem direito de exigir nada. O único direito que se tem é o de aceitar o que a pessoa dá de todo o coração e com um máximo de espontaneidade”.
BM – Mas Nelson Rodrigues dava conselhos, e eu nunca fiz isso. Respondo da posição do escritor que tem formação psicanalítica. Quero acrescentar que não respondo da posição do analista, pois não existe cura analítica pelo jornal. O que o colunista consciente dos seus limites pode fazer é indicar o caminho no qual é possível encontrar uma solução. Noutras palavras, ele não pode dar a solução, a menos que seja um ilusionista. O cuidado que o consultor deve ter, do meu ponto de vista, é o mesmo do analista. Ou seja, deve analisar o texto do consulente para que este possa se debruçar sobre si mesmo e encontrar uma pista nova, começar eventualmente uma análise.

P – Muito já foi debatido em relação ao papel da Psicanálise. Em sua opinião, a função da Psicanálise é ajudar, confortar ou provocar?
BM – O psicanalista escuta o analisando para que este rememore o seu passado até reinventar a sua vida. Quando a análise dá certo, ela ajuda – e muito. Agora, cada analisando tem o analista que merece. A escuta, seja ela qual for, sempre conforta. Mas confortar não é a meta da análise, que existe para que nós possamos decifrar o inconsciente e conquistar a liberdade subjetiva, uma liberdade que implica dizer não aos diferentes imperativos, os da família e os da moda.

P – A dívida da Psicanálise para com a Literatura é imensa. Por outro lado, o que a escritora de ficção Betty Milan deve à Psicanálise?
BM – A dívida da Psicanálise para com a Literatura é tão grande que Lacan dizia não ser suficientemente poeta para ser um grande analista. Dizia isso, embora ele tenha sido o mais poeta dos psicanalistas. Uma das suas grandes referências era Joyce, sobre o qual ele fez um seminário. Chamava-se “Joyce, o Sintoma”. Lacan estava interessado no sintoma, e Joyce quis mostrar, através da sua literatura, o sintoma dos seus conterrâneos. Queria revelar o sintoma de Dublin, sua cidade natal. Tive a pretensão de revelar o sintoma de São Paulo, “a cidade que não pode parar”, em Consolação, o meu último romance. Agora, o texto em que a minha ficção mais se alimentou da Psicanálise foi O Papagaio e o Doutor, que eu levei muitos anos fazendo e depois traduzindo para o francês. Trata-se de um romance sobre os “turcos” do Brasil. A história é narrada por uma descendente deles, Seriema, que foi à França fazer sua análise com um renomado Doutor – inspirado em Jacques Lacan. Rememorando a análise e o passado dos imigrantes, ela se libera do Doutor e dos ancestrais, para se tornar quem ela deseja ser, cultivar a língua brasileira ou a língua do ão, em que ela sonha. Pela irreverência, esta personagem evoca a Emília do Monteiro Lobato e o herói sem caráter, Macunaíma. Como Emília, ela diz o que pensa. Como Macunaíma, faz pouco do sentimento de culpa. Ri de si mesma e dos outros para se libertar. Só que, à diferença do Macunaíma, ela não morre no fim do romance, não vira estrela, sai de cena gostando de ser brasileira, mestiça e mulher.

P – Na Fliporto, haverá a leitura de uma peça sua. Nos fale desse projeto.
BM – A peça se chama A vida é um teatro. Trata-se de uma adaptação do meu livro Quem ama escuta, que reúne as crônicas do meu consultório sentimental. Uma adaptação feita e dirigida por mim. Transformei as crônicas propícias à dramatização em pequenas cenas. Há um consulente, um consultor e uma personagem cuja função é a do coro, A VOZ. Todos ficam em cena, do começo ao fim, diante de um púlpito com o texto, que é tratado como uma partitura. Isso significa que o ator, como o cantor, entrega o texto ao público com a voz. Escrevi para o Grupo Vozes, focalizando a infidelidade, o ciúme, o masoquismo e o preconceito sexual. Barbara Riethe, Fabio Carrilho e Miguel Prata, todos alunos da USP, são os atores do grupo. O nome deste tem a ver com o projeto de fazer ecoar as vozes de que é feita a nossa voz, as que se expressaram e as outras que foram silenciadas – censuradas ou reprimidas. Pretende despertar o espectador para a escuta do que habitualmente não se diz e, no entanto, nos determina. Para tanto, privilegia a palavra plena, aquela que ressoa com virulência, toca e faz pensar.

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Blog Fliporto, 19 set de 2012.