Psicanálise e Literatura II

Psicanálise e Literatura II

 

P – Você vive entre Paris e São Paulo. Sente diferenças significativas na forma como as mulheres francesas e brasileiras lidam com a independência, a visão do mundo, do casamento e da sexualidade?
BM – Claro que há diferenças significativas, apesar da globalização. Um exemplo disso é que as francesas são escoladas para cozinhar. Seja qual for a classe social. Já no Brasil, as mulheres de classe média e alta não se concebem sem a empregada, são dependentes dela. Isso também acontece porque a nossa infraestrutura não facilita a independência, claro. Por outro lado, acho que há maior amizade na relação entre homens e mulheres na França do que no Brasil. No que diz respeito aos sentimentos despertados pelo amor… o ciúme, na França, é malvisto. Isso, obviamente, é um efeito da cultura libertina do século XVIII e da cultura anarquista do começo do século XX, que era contrária à fidelidade.

P – A rotina que adotou de viver metade do ano em cada uma dessas cidades não interfere em seu posicionamento diante de cada sociedade e suas diferenças e especificidades?
BM – Não. Na França, eu levo em conta as especificidades da cultura francesa e, no Brasil, me comporto como sempre fiz. No começo, eu estranhava os hábitos parisienses. Hoje, eu vivo bem nos dois lugares e até preciso variar o modo de vida. Aprendi a passar rapidamente do teclado brasileiro para o francês, de um apartamento de 60 metros quadrados em Paris para um apartamento grande em São Paulo, de um clima tropical para um clima temperado etc.

P – Você disse uma vez que sua independência fez com que se sentisse uma estrangeira entre as pessoas do meio social do qual é originária. Ainda se sente assim? E que processo mental é necessário usar para não ter essa sensação?
BM – A posição de estrangeira não é desvantajosa, ela permite ter maior objetividade. Sou uma estrangeira no meio social do qual sou originária porque não me identifico com os valores da burguesia, que implicam a representação e o recalque.

P – Falando em feminismo, tema bastante recorrente em sua obra, o que mudou no aspecto psicológico das mulheres desde a chamada revolução sexual até os dias de hoje?
BM – A revolução sexual nos liberou para transar com quem quisermos, mas, durante décadas, nós fomos vítimas dos imperativos de transar. Também por isso eu fiz um consultório sentimental na Folha de S. Paulo e na Veja. Queria difundir a ideia de que a liberdade implica a possibilidade de dizer não ao gozo e de que, para tanto, é preciso se liberar das determinações inconscientes e alcançar a liberdade subjetiva. Sumariamente, é isso que eu digo na maioria das minhas crônicas, que foram publicadas em dois livros, Fale com ela e Quem ama escuta. Os livros reúnem as crônicas mais expressivas, e eu inclusive fiz uma adaptação delas para o teatro. A peça foi encenada no teatro de duas grandes livrarias pelo Grupo Vozes. Escrevi e também dirigi os atores.

P- Como os homens acompanharam a emancipação das mulheres? Muitos dizem que o homem até hoje não sabe lidar com o fortalecimento da mulher e o fato de ser visto hoje em dia sob uma ótica mais vulnerável. Você concorda?
BM – Antes da emancipação, havia uma regra de conduta para os dois sexos. O homem devia proceder de uma determinada maneira e a mulher, de outra. Com a emancipação, não há mais regra, e cada indivíduo deve escolher a sua via. Isso implica maior consciência de si mesmo e maior responsabilidade. Isso é mais difícil para certos homens, aqueles cuja ética é machista.

P – Alguns psicanalistas dizem que a emancipação da mulher trouxe muitas vantagens, mas, como tudo, também ocasionou alguns ônus. Um deles é o fato de a mulher ter se tornado escrava do próprio corpo, ou seja, tendo de se submeter a uma espécie de ditadura estética. Você concorda com essa tese?
BM – Não foi a emancipação que trouxe a escravidão. O que escraviza é a impossibilidade de dizer não aos imperativos da moda, a falta de liberdade subjetiva. A ditadura da família, do sexo e da moda estão sempre no ar e cada um se defende como pode. A experiência analítica permite decifrar o inconsciente e se liberar. Por isso, continuará a ser válida sempre.

P – Como você analisa a emancipação da mulher e, em consequência, seu papel como chefe de família hoje? Acha que a mulher com isso passa para o papel de provedora, cuidadora, deixando, inclusive, a maternidade em segundo plano?
BM – Acho que a função materna precisa ser redefinida. Não é o apego da mãe ao filho que resulta na boa educação. A mulher que trabalha pode ser melhor mãe porque não fica dependente do afeto do filho. Ser mãe é cuidar, mas também é dar limites e poder se separar quando isso se impõe. O tema do meu próximo livro, Carta ao filho, é esse. A questão da maternidade é fundamental e pouco se refletiu sobre ela.

P – Na sua avaliação, onde a Psicanálise e o ofício de escritora se encontram? Um ajuda o outro, influencia, prejudica, todos esses aspectos juntos ou um não tem nada a ver com outro?
BM – No meu caso, os dois ofícios são indissociáveis. Sou psicanalista e escritora desde sempre. Escrevo estilizando a oralidade. A escuta é fundamental para a minha literatura, e a minha relação com a escrita molda a maneira de intervir enquanto analista. Me lembro de sessões que são verdadeiros poemas. Também sobre isso eu falo no meu novo livro, contando a análise com Lacan. Por sinal, ele dizia que não era suficientemente poeta para ser um grande analista, ou seja, sabia da importância da poesia para a análise.

P – Em seu livro O Papagaio e o Doutor, você cita duas frases bem interessantes: “O sexo do nosso povo é a paciência”, de Mário de Andrade, e “As religiões todas não ensinam mais do que as confeitarias”, de Fernando Pessoa. Como esses dois temas afetam a consciência das pessoas?
BM – Nós gostamos da paz e dispomos do brincar para perpetuá-la. A história do Brasil não é uma história de guerras. Já a história do Japão, por exemplo, é uma guerra só. Depois de ter sido o país do sabre, o Japão invadiu a China, a Coreia, a Mandchúria… Para Kenzaburo Oê, Prêmio Nobel da literatura japonesa, Hiroshima também é uma decorrência da violência do Japão contra os outros povos. Quanto à citação de Fernando Pessoa, não sei a que se deve, pois não sei o que a confeitaria ensina. Tendo a evitá-la para não comer açúcar.

P – Um de seus livros mais conhecidos é Quem ama escuta. Na obra, você enfatiza a importância de ouvir os problemas dos outros, como uma boa maneira de resolver as próprias questões. Essa nova educação sentimental funcionaria na medida em que os dramas vividos são semelhantes entre si. Trata-se de uma alternativa para uma das grandes questões da modernidade, ou seja, a falta de tempo para se escutar e prestar atenção ao outro?
BM – No Consultório Sentimental, eu tratava de cada caso como único, singular, mas remetia ao teatro e à literatura para mostrar a universalidade do caso. Assim, todos os leitores podiam se identificar. Os dramas são diferentes mas é sempre possível se reconhecer no que é humano, por mais aberrante que seja. A Nova Educação Sentimental, que se faz pela mídia, e não tem regra geral, é uma alternativa educativa importante nos tempos de hoje, porque tanto a literatura quanto a família estão em baixa. Por outro lado, não é por falta de tempo que nós não escutamos. Acho que é assim porque não aprendemos a escutar e também porque temos medo da escuta. Trata-se de um medo sem fundamento, pois a escuta facilita a relação com o outro, ela permite superar a intolerância e é um recurso de pacificação poderoso.

P – Você tem uma ligação muito forte com o psicanalista francês Jacques Lacan e suas teorias. Como foi sua convivência com ele e o que quis dizer quando falou que essa convivência ajudou você a domesticar o inconsciente? Como é possível domesticar aquilo de que não se tem consciência?
BM – Não convivi com Lacan. Fui analisanda dele, além de tradutora e assistente no Departamento de Psicanálise de Paris VIII. O que eu aprendi através da análise com ele foi fundamental para a minha vida. Aprendi a apostar no meu desejo e a lidar com o tempo de maneira a não me sabotar. Será mesmo que eu falei em domesticação do inconsciente? Digo que é possível decifrá-lo, através da análise, e deixar de ser vítima dele.

P – Lacan pregava um retorno a Freud, por meio da linguística e da antropologia estrutural. Foi isso que a atraiu mais no discurso dele?
BM – Não. Foi a maneira como ele me recebeu e como lidou comigo para que eu me aventurasse e fizesse análise. Lacan sabia pescar o analisando e não deixar que ele escapasse. Levei um bom tempo para entender que o divã era o meu destino e isso só foi possível graças ao procedimento dele. O Papagaio e o Doutor, meu romance inspirado na análise, mostra claramente o procedimento, a grande arte de Lacan.

P – É verdadeiro afirmar que a teoria lacaniana teve de ser reinventada no Brasil? Por quê?
BM – Não disse que a teoria teve que ser reinventada no Brasil. Disse que o texto teve que ser reinventado na passagem para o português. Nos tempos do Colégio Freudiano, nós nos empenhamos muito em traduzir bem. Cometemos erros, mas foi uma proeza.

P – Qual o processo interno que você utilizou para se desprender de Lacan e valorizar sua própria singularidade?
BM – Foi um processo longo e interessante. Quando voltei para o Brasil, em 1978, como todos os lacanianos, eu falava francês em português e as nossas traduções têm galicismos. Precisei escrever O Papagaio e o Doutor, romance em que eu faço a sátira de quem imita, para me apropriar no que aprendi na França e me reapropriar da língua portuguesa, reinventando-a para o texto. A história da heroína, Seriema, até certo ponto é a minha. Seriema rememora a história dos seus ancestrais imigrantes para se livrar do ancestral imaginário, que é o Doutor. Gosto do livro, porque ele mostra de forma surpreendente que o inconsciente existe.

P – Como foi sua atuação no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro?
BM – Fundei o Colégio com MD Magno em Paris, no ano de 1975. Depois, voltando para o Brasil, passei a fazer seminários no Rio de Janeiro. Até 1985, quando nós organizamos o famoso Congresso da Psicanálise da Banana e levamos Gilberto Freyre como convidado de honra. O Congresso reuniu mil pessoas no Copacabana Palace. Todo mundo que contava na área da cultura compareceu. Depois, para o encerramento, Joãozinho Trinta foi com a escola Beija Flor. Era ligado ao Colégio por causa de uma entrevista que nós fizemos com ele. Foi a primeira entrevista em que ele falou abertamente da sua homossexualidade.

P – Em sua obra, você tratou algumas vezes dos temas Carnaval e futebol. Como essas manifestações agem no imaginário popular e como influenciam no dia a dia do brasileiro?
BM – Fiz uma grande pesquisa nas escolas de samba do Rio de Janeiro, sobre o Carnaval, entre 1979 e 1981. Ia escutar os carnavalescos e este ato foi inaugural, porque ninguém dava ouvidos a eles. Graças ao meu longo diálogo com Joãozinho Trinta, me dei conta da importância da cultura do brincar para nós e me debrucei sobre ela. Publiquei um livro chamado Bastidores do Carnaval, sobre a produção da nossa grande ópera de rua, e um outro livro, que se chama O país da bola, onde falo da importância do brincar para nós. Trata-se de um recurso civilizatório. Como o humor para os ingleses, o humour.

P – Durante alguns anos, você escreveu a coluna Consultório Sentimental, no portal da Veja, onde dava conselhos sobre sexo e amor, principalmente. Essa prática de levar a público assuntos pessoais faz do brasileiro um povo mal resolvido em relação a esses aspectos?
BM – Nunca dei conselho a ninguém, pois não adianta. Analisava os e-mails dos consulentes para iluminar o consulente, focalizando o verdadeiro problema, e orientando para uma análise sempre que era o caso. O brasileiro não é nem mais nem menos resolvido. Até porque O brasileiro não existe, como O japonês não existe. A generalização é sempre falaciosa e deveria ser evitada.

P – É possível consultar sem um acompanhamento pessoal e mais aprofundado, especialmente quando se trata de assuntos tão íntimos?
BM – Depende da consulta que é feita. Nunca pretendi diagnosticar ou curar. Fazia uma análise de texto a fim de levar o consulente a se abrir para si mesmo e se escutar. Explico isso longamente na introdução ao Quem ama escuta.

P – Sua história com a Psicanálise surgiu de uma angústia que poderia ter levado você ao suicídio. Como conseguiu superar isso?
BM – Foi aos 18 anos, por causa de uma decepção amorosa. Precisei fazer análise para superar o desespero e a angústia. Hoje, retrospectivamente, acho que fui ensinada a me desesperar e não soube reagir de outra forma. Um dos ganhos da idade é a serenidade que a pessoa conquista.

P – A partir de sua experiência pessoal, como você encara o suicídio, como uma forma de fuga e covardia ou uma opção de cada indivíduo?
BM – O suicídio pode ser uma forma de fuga e covardia, mas também pode ser o resultado de uma opção lúcida, como, por exemplo, em 1970, o suicídio espetacular de Mishima, que se valeu da morte voluntária para protestar contra uma modernização do Japão que acaba com a tradição, ou seja, com o próprio Japão. Há suicídios e suicídios, e o sentido é diferente de um para outro. Considere-se, por exemplo, o suicídio de Stephan Zweig, tema de um grande romance brasileiro, Lotte & Zweig. Segundo o autor, Deonísio da Silva, Zweig teria se suicidado porque estava condenado pelos nazistas a morrer. Ou ele se matava ou o inimigo acabaria com ele. Preferiu a morte voluntária.

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Revista Psique,
Ano VI- edição 82 – out de 2012.