PIERRE MAURY

PIERRE MAURY *

 

Ao ler o primeiro romance de Betty Milan traduzido para o francês, O Papagaio e o Doutor, a gente logo pensa que é a transposição de uma experiência pessoal. Assim como a autora, Seriema — a personagem principal — chegou na França, vinda do Brasil, para fazer análise. Como a autora, Seriema tem ascendência libanesa e depara com duas línguas, o português e o francês. Autobiografia? Betty Milan fala em heterobiografia.

Ela se explica com muita convicção: “Na convenção literária, a gente trabalha a psicologia dos personagens. Ora, a minha heroína não tem psicologia. Seriema se constrói através da história dos outros, e é assim que ela reinventa uma história para si”.

Mas Betty Milan não esconde que se inspirou, e muito, na própria vida. “As histórias dos ancestrais são verdadeiras e, como a heroína, eu fiz análise com Lacan na França. Só que reiventei tudo. Por um lado para fazer um romance, por outro, para escapar às histórias verdadeiras.”

Betty Milan divide o seu tempo entre o Brasil e a França desde 1974, não pára de ir e vir de um a outro continente. Publicou uma dezena de livros em português. Outros romances, claro, mas também ensaios — sobre o futebol, o Carnaval, o amor — e obras de outra natureza. Entre elas A Força da Palavra, coletânea de entrevistas com escritores, Michel Serres, Françoise Sagan, Nathalie Sarraute, Octavio Paz…

O Papagaio e o Doutor é sua primeira publicação em francês — razão pela qual prolongou o trabalho, já bastante longo, de elaboração em sua língua materna. Adaptou o texto suprimindo passagens construídas com referências ao futebol brasileiro ou modificando a abertura que citava a carta fundadora do seu país.

O resultado é um romance simultaneamente dramático e desopilante. Dramático porque Seriema sofre na sua busca de identidade. Porque vive a esperança desiludida de que o Doutor lhe indique um caminho liberador até um dia se curar do desejo de se curar. O livro é desopilante porque apresenta a análise de uma maneira inédita, por colocar em cena um personagem forte, o Doutor, que é a transposição romanesca de Lacan, e uma jovem perdida num mundo cujas convenções ela procura compreender.

Seriema retoma com uma força impressionante o destino de Dom Quixote. Quando ele renuncia a suas quimeras, ele morre. Já quando ela o faz, é porque se tornou madura para viver verdadeiramente. Por isso, O Papagaio e o Doutor é um romance que faz bem!

 

 

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* “A sem raízes e o analista”, artigo publicado no Le Soir, em março de 1997, por Pierre Maury, crítico literário belga.