O educador ensina a paz e a solidariedade

O educador ensina a paz e a solidariedade

Secretaria da Educação de Goiás Velho, 2001

 

“Mas me diga: por que é que você vai justo para Goiás Velho dois dias depois de chegar ao Brasil?” “O quê?”, respondi ao amigo com quem eu estava na França, como se o amigo não tivesse direito a tal pergunta. Como se ele pudesse imaginar o que está na minha cabeça desde que lancei O clarão, no contexto do projeto Amizade no Terceiro Milênio que se realiza com exposições itinerantes na rede de bibliotecas nacionais.

“O que está na minha cabeça é muito simples. O Brasil vai do Rio Oiapoque ao Arroio Chuí, e é preciso que a ética da amizade seja difundida através desse vasto território. De tantas maneiras quantas forem necessárias, para que a difusão da amizade se faça.” Foi isso que eu disse ao amigo antes de acrescentar que, em Goiás, há uma grande arte, a do pintor e escultor Siron Franco, por exemplo, que se inspirou na tragédia do césio – decorrente da desfaçatez de um médico(1) –, tragédia que não pode ser dissociada da falta de solidariedade neste país, que, sendo nosso, não o é.

Como pode ser meu ou seu um país onde a vida não tem valor, onde nós estamos continuamente ameaçados pelo assalto à mão armada? Ameaçados de morte? Um país onde o ladrão é esperado, onde prolifera uma nova delegacia, a Delegacia Antissequestros, que difunde um comunicado como este(2):

 

“Não anote telefone residencial no verso do seu cheque, especialmente no posto de gasolina. No caso de assalto, o telefone pode ser usado para ameaça, sobretudo se você for uma mulher.

Não exiba no carro adesivo da sua faculdade, do condomínio onde você reside, da sua academia de ginástica. O extorsionário se valerá destes dados para ameaçá-lo.

Não faça compras por telefone ou pela internet fornecendo o número do cartão de crédito. O ladrão prefere pessoas desatentas.

No trânsito, mantenha-se a uma distância segura do carro da frente, para sair – se preciso for – numa só manobra, sem bater. À noite, calcule o tempo e a velocidade para não parar no farol vermelho, porque o risco de morrer em roubo de farol é consideravelmente maior do que num sequestro. E, se você for assaltado, mantenha as mãos no volante e procure se comunicar, indicando claramente o que você vai fazer. Se quiser tirar o cinto, por exemplo, informe: “Vou tirar o cinto com esta mão”. Se o assaltante pedir a carteira, diga: “A carteira está no bolso de trás, o senhor me autoriza a pegar?”

 

Neste país, que em princípio é o meu, eu sou obrigada a estar continuamente atenta, porque a fantasia – que a polícia chama de distração – pode ser mortal. Ademais, eu devo negociar a minha vida com o ladrão, cuja legitimidade eu, desse modo, indiretamente reconheço.

Noutras palavras, vivo obrigada a pactuar com o crime. Ou seja, a ser cúmplice do ladrão e suportar o medo. Quem me disser que eu pareço não lembrar do 11 de setembro, das torres crematórias, e acrescentar que o Brasil é apenas o espelho do mundo, se engana.

O mundo está às voltas com o terrorismo e o kamikaze, que não passa da caricatura do herói mas está a serviço de uma causa. Já o Brasil está às voltas com o sequestro, e o ladrão, que não tem causa, se vinga de uma situação que é o resultado da nossa tradição secular de falta de solidariedade, da denegação sistemática do problema do outro, desvio que só pode ser resolvido através da mudança de mentalidade, ou seja, da educação.

O mundo está às voltas com a guerra terrorista, o Brasil às voltas com uma guerra civil sorrateira que também nos obriga a refletir sobre a questão da paz, tema dos Encontros de Versalhes, que eu fui cobrir recentemente para o jornal Folha de S. Paulo. Trata-se de um Davos da Cultura, que reunia ministros, embaixadores e intelectuais do mundo inteiro para refletir sobre o destino do homem no terceiro milênio. O cenário dos Encontros, como o nome do congresso indica, é o Castelo de Versalhes.

Nos debates, a educação e a paz foram abordados e chegou-se a algumas conclusões importantes. A de que a educação deve se ocupar da transmissão de valores essenciais, de que não há paz sem justiça e não é possível alcançar a paz pela vitória militar, como afirmou a embaixadora da Palestina na presença do embaixador de Israel.

O evento foi presidido pelo escritor Erik Orsenna, membro da Academia Francesa de Letras e autor de um clássico sobre a Amazônia, A exposição colonial, romance que lhe valeu o prêmio Goncourt. Nessa ocasião, Orsenna me concedeu uma entrevista da qual eu reproduzo um fragmento luminoso relativo ao papel do escritor e do educador:

 

“BM: Qual é o efeito da mundialização sobre as diferentes culturas?

EO: A pior coisa que está acontecendo hoje é a desaparição das línguas. Por causa da tendência a falar a língua de 5OO palavras que eu chamo de globês. São as 5OO palavras necessárias para sobreviver, as palavras do dinheiro, que é o equivalente geral. A existência de quinze palavras para dizer a mesma coisa não interessa à economia. Uma palavra basta e as outras vão se perdendo. Ora, a maior obra de arte coletiva é uma língua, seja ela qual for, e não há nada pior do que relegá-la ao esquecimento. Perder uma estátua do Buda é terrível, mas perder uma língua equivale a perder o budismo.

 

BM: Qual é o papel do escritor hoje?

EO: O escritor é aquele que não cede ao globês, ele é o apóstolo da diversidade, o inimigo da estandardização.

 

BM: Isso significa que o escritor é necessariamente original, não é?

EO: Os verdadeiros escritores são capazes de criar mundos e por isso o nosso trabalho é da maior importância.

 

BM: Como a educação pode preservar as diferenças culturais?

EO: Há um certo número de saberes que são os mesmos para todos os países, porque são anexos à mercadoria. Agora, há outros saberes que implicam a língua, a cultura, o território… A educação tem que dar conta desses dois saberes. O ser humano pode ser comparado a uma empresa.

 

BM: Como assim?

EO: Construir a própria vida é se construir como uma empresa, ou seja, com a criação de valores que não são os do mercado, obviamente.

 

BM: Outro tema destes Encontros é a paz. O título de um dos debates foi “Os portadores da paz”. Quem são eles hoje?

EO: Os realistas. Não pode haver paz se não levarmos em conta o território. O ser humano está profundamente ligado ao território. Veja o conflito do Oriente Médio. Por outro lado, é preciso considerar as pressões demográficas. Mas nada disso é suficiente se não reinventarmos os valores urbanos.

 

BM: Seria necessário introduzir a reflexão sobre a paz na escola. Você não acha?

EO: Acho. A educação para mim é o ensinamento da paz.

 

BM: Esta reflexão poderia ser facilmente introduzida pela amizade, um tema que é fundamental para os jovens. A amizade supõe uma ética contrária à violência, a ética da delicadeza ou, como diz o Dalai Lama, da contenção.

EO: O ensinamento da delicadeza se tornou fundamental hoje em dia.”

 

Foi precisamente por considerar este ensinamento fundamental que, depois de ter escrito o romance O clarão, eu fiz com o artista gráfico Daniel Kondo a exposição “Os Dizeres do Amigo”, com a meta de difundir o ideário da paz, que também é o ideário do amigo.

A exposição até agora passou por cinquenta bibliotecas. Seu interesse é decorrente do valor da amizade para o desenvolvimento da cidadania entre nós.

Porque o amigo ilumina, é ele que permite enxergar quando a paixão cega – a paixão do dinheiro, do sucesso, do ódio.

Porque o amigo é um anjo da guarda, ele é um protetor – ensina a não dar valor para o que é ruim. Ilumina, proteje e escuta.

E o amigo é generoso, por definição. Ganha perdendo tempo com o seu amigo.

Quem é amigo é solidário, e isso já justifica a difusão do ideário da amizade, o saber do amigo, eminentemente moderno. Valioso porque pode ensinar a conter a violência e alcançar a paz no terceiro milênio.

O amigo é o pacifista de que o tempo de hoje precisa, e ele é o interlocutor do homem atual.

Os absolutos religiosos não têm mais sentido. Ninguém mais diz esta é a tradição verdadeira ou esta é a verdade sem ser tomado por um fanático. Agora, cada indivíduo é o produtor da sua própria verdade. O homem moderno compõe a sua religião com toda a liberdade. Quem melhor do que o amigo para validar as suas crenças?

O declínio da religião concebida como um sistema de crenças dogmáticas e a necessidade de uma nova espiritualidade são hoje evidentes. A ciência pode ajudar a prever as consequências das nossas ações, mas nenhuma ciência é capaz de nos dizer como devemos agir numa questão de natureza moral. A nova espiritualidade implica uma conduta virtuosa que pode encontrar na conduta do amigo o seu modelo.

A amizade supõe uma ética, a ética da delicadeza ou a ética da contenção, nas palavras do Dalai Lama. Uma ética que tanto ensina o cuidado quanto o respeito, e é a nossa esperança para superar a escalada de crimes no mundo contemporâneo.

Conter-se é adotar uma disciplina baseada numa avaliação das vantagens de agir de um modo e não de outro. O amigo se controla porque o controle é a condição da sua liberdade e da liberdade do outro, a condição sem a qual a amizade não existe. Ela nasce espontaneamente, mas precisa ser cultivada para se perpetuar.

O tema da amizade é central no Clarão, mas também o da morte. Precisamente por ser considerado um mau tema, fato que tem como consequência, por exemplo, uma maior incidência da morte violenta. Essa morte, à qual o desenvolvimento tecnológico nos expõe, é selvagem e pode ser evitada, se nós nos soubermos mortais. Se, como Ana, personagem do Clarão, nós soubermos que a morte é uma estrela porque ela indica o caminho.

Como diz Xenofonte, o amigo é o mais precioso dos bens. Não só porque ele auxilia de todas as maneiras, mas ainda porque ele é uma verdadeira fonte de sabedoria. O amigo mostra o valor da vida quando a gente disso se esquece.

Por essa razão, a meu ver, a escola deveria incluir a reflexão sobre o tema da amizade no currículo, um tema para o qual os alunos estão naturalmente predispostos – pois o amigo é decisivo na vida do jovem. A reflexão sobre a amizade o fará considerar a questão da ética e da virtude. Já que só é amigo quem é virtuoso e só quem é virtuoso pode ser um bom cidadão. Os que não são virtuosos não são amigos, são cúmplices.

A educação será melhor se nós nos preocuparmos menos com o aprendizado dos saberes todos e mais com o aprendizado do respeito ao próximo, respeito que a amizade ensina e requer e é absolutamente indispensável para o exercício da cidadania, que supõe a aceitação do limite e também da lei.

Como diz Montaigne, nossos pais gastam muito dinheiro para nos mobiliar a cabeça com a ciência. E, com a virtude, eles não se preocupam. A isso, o mesmo Montaigne acrescenta: “Prefiro uma cabeça bem-feita a uma cabeça lotada”.

Noutras palavras, ciência sem consciência é a ruína da alma.

Na esperança de ter sido suficientemente clara para que a amizade se torne um tema privilegiado, a solidariedade se desenvolva no país e nós possamos com isso nos livrar das Delegacias Antissequestros, eu gostaria de tecer uma última consideração sobre a relação entre a figura do voluntário e a figura do amigo neste ano do voluntariado.

O voluntário, como o amigo, é um anjo da guarda, ensina a contar no jardim as flores e os frutos e nunca a contar as folhas que tombaram. Quem se dispõe a trabalhar com usuários de drogas e portadores de Aids é um anjo da guarda? Por ser assim, a princesa Diana foi tão amada. Tornou-se um mito menos pela sua irreverência em relação à monarquia do que pela solidariedade com os infortunados do seu tempo – por levantar a qualquer hora para atender os necessitados, atravessar os campos minados da Bósnia a fim de consolar as vítimas da guerra.

O voluntário, como o amigo, ganha perdendo tempo com o outro. Para ambos, tempo não é sinônimo de dinheiro e nenhum se deixa governar pela ética do time is money, que gera a indiferença.

 

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Secretaria da Educação de Goiás Velho, dezembro de 2001.

(1) O acidente radiológico mencionado aconteceu em 1987, quando catadores de sucata adentraram um consultório médico abandonado, no centro de Goiânia (GO), e desmontaram um aparelho de Raios X, encontrando uma célula de césio que contaminou quem a tocou – algo como uma centena de pessoas. O episódio foi classificado como nível 5 de acordo com a Escala Internacional de Acidentes Nucleares, que vai de 1 a 7. O acidente com Césio-137 foi considerado o maior do mundo ocorrido fora de usinas nucleares.
(2) Comunicado divulgado na imprensa pela Delegacia Antissequestros de São Paulo em 2001.