Morrer é um direito

Morrer é um direito

Museu do Amanhã, 2016

 

Foi por ter lido um dos painéis deste museu que eu estou aqui. O painel dizia: “Seremos ainda mais numerosos, com alguns vivendo por muito tempo. Seremos mais longevos e, em muitas regiões, se viverá três vezes mais do que no Império Romano. Os idosos serão tão numerosos quanto as crianças”.

O fato é que homens e mulheres estão vivendo muito mais. Só no estado de São Paulo, em 2050, o número de centenários será dez vezes maior, segundo estimativas. O Brasil vai ocupar, no ranking internacional, o nono lugar na proporção de idosos na população. A questão da longevidade se tornou fundamental.

 

O desejo de ser longevo e a conquista da longevidade

Desde sempre, nós desejamos a longevidade. Segundo Cícero, ninguém é tão velho que não acredite que poderá viver mais um ano. Cícero escreveu isso cem anos antes de Cristo no livro Saber envelhecer.

Trezentos anos antes de Cristo, na China, durante a dinastia Zhou, Lao-Tsé escreveu o Tao Te Ching, O livro do caminho e da virtude, onde ele trata das artes do viver e do não morrer. O Tao Te Ching está traduzido em tantas línguas, porque ensina a contrariar a tendência natural do corpo, a evitar o envelhecimento e a viver mais tempo com a força da juventude.

Entre as artes do viver e do não morrer está a meditação, prática através da qual a pessoa se retira de si mesma e se concentra no próprio corpo, que é simultaneamente uma réplica do universo e um laboratório. A concentração permite voltar à natureza e recuperar as energias vitais.

A base da meditação é o não agir, que implica e ensina a paciência, sem a qual a vida não é possível, um fato que a cultura ocidental tende a ignorar porque associa a felicidade ao sucesso e incita à impaciência. Só por contrariar esta tendência, que é a maior causa do stress, a difusão do taoísmo no Ocidente é um avanço.

Além do aprendizado da paciência, o taoísmo ensina o valor da transformação. Lao-Tsé, o autor presumido do Tao Te Ching, passou por 24 transformações, que a pintura chinesa representa. Tranformar-se é um recurso vital, que também explica por que o teatro sempre existirá e por que Shakespeare é maior do que os reis e as rainhas. Os personagens de Shakespeare estão mais presentes no nosso imaginário do que os poderosos do Oriente e do Ocidente. Porque o bardo foi o rei da transfiguração. A sua obra é uma Fonte de Juventa.

Embora o taoísmo seja uma cultura do corpo e a psicanálise seja uma cultura da palavra, há entre essas duas artes muitos pontos em comum. O não agir e a paciência são os requisitos básicos da meditação e da cura analítica. O analisando deita no divã e associa livremente até o inconsciente se manifestar. Noutras palavras, ele espera acontecer.

Por outro lado, como Lao-Tsé, Freud valoriza a transformação. A repetição é, para ele, uma expressão da pulsão de morte. A cura requer a transformação, e é para reinventar a própria existência que o analisando rememora o passado na presença do analista, para se livrar dos imperativos a que ele inconscientemente se sujeitou.

De formas diferentes, o taoísmo e a psicanálise se exercitam na arte do não morrer. As duas se opõem ao imaginário conformista dos que acreditam na impossibilidade de resistir ao tempo.

 

A longevidade como problema

A longevidade é uma conquista, mas também é um problema. Hoje nos perguntamos como cuidar dos idosos. Esta questão, há alguns séculos, não podia sequer ser imaginada. No século XVI, Montaigne observou que “morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária, bem menos natural do que outras mortes; morrer de velhice é o último e mais extremo tipo de morte”. A longevidade era tão inusitada no século XVI, que as pessoas queriam parecer mais velhas e inclusive mentiam sobre a idade.

No século XVI, ninguém se perguntava como cuidar dos idosos. Hoje a pergunta se tornou fundamental. Segundo o autor do best-seller Mortais, Atul Gawande, nós atualmente projetamos para os idosos uma vida segura, porém vazia. O idoso é tratado como um problema administrativo e não humano. Nós não nos perguntamos o que faz a vida valer a pena quando o homem está velho, fragilizado, incapaz de cuidar de si mesmo.

Uma das respostas está na construção de estabelecimentos especializados, como o de Hogeweyk, uma vila próxima de Amsterdã, onde foram construídas 23 casas para pessoas que têm demência severa. As ruas são arborizadas, há restaurantes, cafés, salões de beleza, supermercados. Lá, os prédios são todos monitorados e os residentes têm a liberdade de ir para onde quiserem. Os cuidadores e os funcionários são treinados para lidar com os que sofrem de demência, uma doença que já afeta quase 50 milhões de pessoas.

A existência de estabelecimentos especializados e de pessoas treinadas é certamente importante, mas é igualmente decisivo saber o que caracteriza o velho, qual a sua particularidade. Para responder a esta pergunta, é preciso observá-lo, escutá-lo e se escutar. Só através da escuta nós podemos vencer os tantos preconceitos que temos. Mas isso não é fácil, porque, como diz Norbert Elias, no seu livro A solidão dos moribundos, a visão de uma pessoa decadente “abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a ideia da sua própria morte”. Por razões narcísicas, ninguém acredita na própria morte. Para observar o velho, escutá-lo e se escutar, é preciso vencer o narcisismo. Fui obrigada a fazer isso.

Quando minha mãe completou 96 anos, eu me dei conta de que já não era mais possível conversarmos como antes e, embora minha mãe estivesse interessada no que eu dizia, ela não se sentia verdadeiramente concernida, e eu não podia mais contar com ela. Fui obrigada a fazer o luto da nossa maravilhosa relação e inventar outra em que eu sou a mãe da mãe. Nesta passagem, eu perdi a pessoa que imaginariamente me escudava contra a morte. Sofri com isso, claro.

Me dei conta de que o mundo em que minha mãe vivia, a sua casa, não estava mais adaptado a ela. Por causa da velhice extrema, mamãe precisaria de um mundo inofensivo e mágico. Nele, o fogo não queimaria e o gás se apagaria automaticamente. Assim, ela não correria o risco de se queimar ou mesmo de morrer por causa de um esquecimento. Neste maravilhoso mundo mágico, bastaria que ela tivesse uma ideia para a ideia se realizar. Se, por acaso, imaginasse que estava indo da sala para a cozinha, o chão se deslocaria e a levaria até a cozinha. Com o deslocamento, ela teria o sentimento de andar como sempre andou.

Imaginei este mundo mágico e tive que adaptar o mundo real da casa. Aprendi, no processo, que é preciso proteger o velho sem impedir que os seus desejos se realizem. Proteger de uma queda, de um roubo, de um sequestro… Mas como respeitar a liberdade do velho quando ele não goza de uma verdadeira independência? Quando está quase cego, quase surdo e se locomove mal? Não é possível responder a esta pergunta com uma generalização, porque cada velho é um, como cada adulto, cada adolescente, cada criança.

O fato é que não podemos deixar o longevo se expor inutilmente ao sofrimento, cair ou ser atropelado. A fratura precisa ser evitada, porque a reabilitação é difícil e, depois da queda, é a cadeira de rodas. Quem cuida tem que proteger. Isso implica uma tática e requer um aprendizado. Inútil contrariar o velhinho, que acaba se enfurecendo e se tornando agressivo. Temos que ser particularmente maneiros e podemos aprender com ele a paciência – o que não é pouco. Só a paciência ensina como agir.

O velho sofre com a perda da independência e, por causa disso, tende a ser negativista. A tudo ele primeiro diz não. A conduta só se torna menos irritante quando a gente entende que o não serve para afirmar a independência. O problema é que, ao afimar a independência, a pessoa corre o risco de fazer mal a si mesma ou corre risco de vida, saindo sozinha e se expondo a um acidente.

Diante da velhice extrema, nós enlouquecemos se não entendermos que a idade dá ao velho um alvará para fazer o que ele bem entende. O velho até pode ser comparado ao poeta, que tem licença de versificação, sintaxe e ortografia. As licenças do velho são de outra natureza, não catalogáveis, porque ele muda o jogo continuamente e obriga o mais jovem a dançar conforme a música.

 

Morrer é um direito

A longevidade nos obriga a colocar algumas questões sérias. Até quando a vida deve ser prolongada? Qual o dever do médico? Cabe a ele vencer a morte ou simplesmente cuidar da vida?

Tendo me debruçado longamente sobre esses temas, ouso afirmar que, a partir do momento que a pessoa perde a independência, precisa ser ajudada se quiser ir embora. Daí porque o meu novo romance, A mãe eterna, tem como subtítulo morrer é um direito. Sim, morrer é um direito, porque a velhice extrema pode ser tão sofrida quanto a doença terminal. Se nós quisermos humanizar o fim, temos que respeitar esse direito. De modo geral, não temos consciência desse direito, porque somos educados a aceitar qualquer sofrimento, particularmente, aliás, as mulheres.

Sou contrária à obsessão terapêutica. Quando o doente quer morrer, cabe ao médico suspender o tratamento e dispor dos recursos necessários para facilitar a morte. Disso eu já tratei num romance escrito há alguns anos, que se chama Consolação. O herói tinha câncer e não queria que sua vida fosse prolongada. O médico não deu ouvidos. Com isso, o médico exacerbou o sofrimento do paciente e dos familiares. Ninguém deseja morrer, mas pode querer a morte quando a vida se torna insuportável. Neste caso, fazer ouvidos moucos é uma forma de crueldade.

Mais de uma vez o tema da morte aparece nos meus livros. O tema é censurado em geral, mas não é a censura que nos protege e sim a consciência de que somos finitos, de que nós também nascemos para morrer.

O tema está presente em Consolação e também em A mãe eterna, inspirados pela minha mãe, quase centenária. Nele, eu não falo só do luto que a velhice extrema dela me impôs. Falo continuamente do amor, que é maior do que a morte e permite suportar a decadência do outro e inclusive rir com ele.

Isso acontece no romance, porque a velhinha de que ele trata é particularmente esperta e só faz o que bem entende. Passa a perna em quem tenta domá-la com orientação sobre os médicos, os remédios, a alimentação. Ou ela demite a cuidadora e “por acaso” reencontra a anterior, que obedece sem discutir as suas vontades. Trata-se de uma mãe engraçada, que faz pouco dos medos da filha. Por exemplo, o de que a mãe seja sequestrada: “Uma velha, filha. Quem vai querer me embarcar?”.

Nenhuma experiência foi tão importante quanto a de ter passado da condição de filha para a de mãe da mãe. Quem se dispõe a observar o seu velhinho aprende muito com ele e se torna mais humano.

O planeta requer este aprendizado, nos convida a encarar o problema da longevidade. Isso também significa aceitar que somos efêmeros e nos preparar para a morte. A borboleta da vida passa uma vez e depois não passa mais. Portanto, como diziam os antigos, Carpe diem, aproveita a tua hora.

 

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Museu do Amanhã, Rio de Janeiro (RJ), 7 de maio de 2016.