Alan Sokal e Jean Bricmont: A impostura intelectual

Alan Sokal e Jean Bricmont: A impostura intelectual

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Publicado
sob o título “Livro de Alan Sokal deixa Paris
em chamas”. Folha de S. Paulo, 9/11/1997

Alan Sokal nasceu em 1955 nos Estados Unidos. Formou-se em física na Universidade Harvard e é professor na Universidade de Nova York.

Jean Bricmont nasceu em 1952 na Bélgica. Diplomou-se em ciências na Universidade Católica de Louvain e aí fez o seu doutoramento na mesma área.

Em 1996, Alan Sokal, professor de física na Universidade de Nova York, publica na Social Text, uma revista alinhada com o pós-modernismo da Duke University, meca do politicamente correto, um texto construído com citações de autores eminentes sobre as implicações filosóficas da matemática e das ciências exatas. Tais citações são os propósitos absurdos de autores franceses pós-modernos, entre os quais Jacques Derrida, cuja obra foi importada durante anos a fio pelos Estados Unidos. Depois de ter publicado o texto, Sokal conta à imprensa que se trata de uma paródia e o fato tem grande repercussão. O desdobramento da polêmica em torno do artigo em questão, “Atravessando as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, ficou conhecido como “O embuste de Sokal”.

Ato contínuo, ele se associa ao professor de física belga, Jean Bricmont, e escreve em francês um livro que trata dos abusos de autoridade de pensadores como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio.

O livro Impostures intelectuelles (“Imposturas intelectuais) é lançado em outubro de 1997, alguns dias antes da Feira de Frankfurt, e se torna capa da revista Le Nouvel Observateur. A repercussão dá origem a uma polêmica em que as intenções dos autores tanto são elogiadas quanto criticadas. Serão eles novos iluministas ou “censores”?

Para saber, fui escutar Alan Sokal e Jean Bricmont, que muito se empenharam na entrevista, embora tenham deixado algumas questões sem respostas.

Betty Milan: Vamos começar pelo começo. Por que razão você escreveu a paródia?
Alan Sokal: Ela se insere num contexto político. Eu me considero de esquerda, porque me oponho à distribuição de renda atual. Constatei que certas tendências da esquerda acadêmica americana adotaram o relativismo, ou seja, a ideia de que o conhecimento mais ou menos objetivo do mundo natural e social não pode existir, de que todo o conhecimento é subjetivo. Até as ciências naturais não passariam de mitos. Opus-me a isso, pois acho que tais opiniões estão baseadas em erros e são politicamente suicidas. A esquerda é minoritária em todo o mundo. Nos Estados Unidos, mais ainda. Nossa tarefa, se quisermos progredir, é elaborar uma análise da sociedade atual baseada no rigor, nos fatos, uma análise convincente.

BM: E por que você recorreu à tática de escrever uma paródia e só contar depois?
SOKAL: Constatei que, nas universidades americanas, os departamentos de literatura, ciências sociais e estudos femininos são fechados à crítica vinda do exterior e mesmo interna. A resposta é sempre a mesma. Ou ninguém responde, ou alguém ataca dizendo que a crítica foi feita por gente de direita. Por isso, tive a ideia de escrever uma paródia – arma, aliás, tradicional – e só contar depois. No início, achei que não ia dar certo.

BM: A Folha de S. Paulo noticiou o fato, e você foi criticado no jornal por um intelectual de esquerda e apoiado por Roberto Campos, de direita. Como é que você explica a oposição da esquerda e o apoio da direita?
SOKAL: Acho que a relação entre as posições intelectuais e as posições políticas é complexa. Fomos apoiados por pessoas de esquerda e de direita em razão de ideias que não são de ordem política. Isso posto, a paródia foi recuperada por pessoas de direita. Como você sabe, escrevi ao Roberto Campos, dizendo que eu não ridicularizava a esquerda inteira, mas apenas uma parte dela, e que havia sido apoiado pela maior parte da esquerda americana, quase oitenta por cento das revistas.

BM: Você agora publicou Imposturas intelectuais, em que se refere às “imposturas” de Lacan, Kristeva, Deleuze, Guattari, entre outros. A impostura é para você, literalmente, “o abuso reiterado de conceitos provenientes das ciêncas físico-matemáticas”, e o “abuso” se define por muitas características, entre as quais: “… falar abundantemente de teorias científicas sobre as quais o sujeito só tem uma vaga ideia”. Em outros termos, fazer supor que se tem um conhecimento que, na verdade, não se tem. Agora, no seu livro, você escreveu: “Claro que nós não somos competentes para julgar o conjunto da obra dos autores” (Lacan, Kristeva…). E, na mesma página: “Nós tentaremos explicar em que consistem os abusos cometidos no que diz respeito às ciências exatas e por que eles nos parecem sintomáticos de falta de rigor e de racionalidade no conjunto da obra”. Em outras palavras, você afirma que não é capaz de julgar o conjunto da obra dos autores, porém você julga. Não se trataria aí também de uma impostura, no sentido que você mesmo deu a essa palavra?
SOKAL: Uma impostura, não. Talvez nós não tenhamos nos explicado bem. Mas eu me explico de novo. Focalizamos o que os autores dizem quando entram em searas que nós conhecemos bem, como a matemática e a física. Observamos que eles aí cometeram abusos graves. Valeram-se, por exemplo, de conceitos em contextos sem pertinência alguma, deformaram termos científicos etc. Isso, obviamente, não prova nada a respeito do resto da obra.

BM: Mas está escrito na introdução do seu livro que os abusos dos autores são indicativos da falta de rigor e de racionalidade no conjunto da obra…
SOKAL: Espere, eu ainda não terminei. As imposturas não invalidam a obra toda, e nós somos explicitamente agnósticos sobre a parte que não diz respeito à fisica. Claro que você pode me perguntar qual é então a importância do nosso livro, se o papel da matemática e da física é tão pequeno na obra dos autores criticados. O livro é importante porque mostra que há abusos graves numa parte da obra, e isso permite questionar o resto. Não somos competentes para dirigir o questionamento, porém desejamos que outros o façam.

BM: A sua análise me parece justa por um lado e injusta por outro. Ela é justa, por exemplo, quando você diz que os autores têm um estilo pesado e pomposo e que estão errados ao dizer que há nas obras deles uma preocupação literária e poética, pois eles não procedem como escritores. Mas é injusta, na medida em que você só cita os textos incompreensíveis dos autores, e não leva em conta o que eles fizeram compreender…
SOKAL: Nós escolhemos um tema, que é o abuso de conceitos da matemática e da física. Os autores abusaram da autoridade. Prevaleceram-se da posição de professor.

BM: Você diz que os intelectuais franceses criticados são frequentemente incompreensíveis, porque o que eles escrevem não quer dizer absolutamente nada.
SOKAL: Refiro-me a textos determinados. Não faço uma crítica global.

BM: Voltemos à questão da incompreensibilidade dos autores… Trabalhei com Lacan durante anos e sei que não era pelo fato de o seu discurso não ser imediatamente compreensível que ele não queria dizer nada. A gente podia não comprender de imediato, mas era porque o pensamento dele implicava a interpretação do ouvinte ou do leitor. Lacan se deixava determinar pela lógica do inconsciente. Ela supõe uma compreensão que só acontece num segundo tempo, só depois, nachträglich, como dizia Freud. No contexto do pensamento psicanalítico, o enigma e o tempo são fundamentais para o saber. Para você, é o contrário. Por isso eu pergunto: você acha que a psicanálise deve desaparecer?
BRICMONT: As pessoas podem ser favoráveis à psicanálise e reconhecer que nos textos citados por nós há impostura, ou seja, naqueles onde Lacan usa a matemática. Não pretendemos julgar a psicanálise dele e nem a filosofia de Deleuze.
SOKAL: Não estamos dizendo que tudo deve ser imediatamente compreensível. Noventa e cinco por cento dos trabalhos da física não são. Nós nos limitamos aos textos que se referem aos campos que conhecemos bem.

BM: Julia Kristeva disse que através dela você estava criticando a França inteira, o que é um exagero, claro. Mas ela teve razão de opor a você o argumento segundo o qual as ciências humanas e, em particular, a interpretação dos textos literários e a interpretação analítica não obedecem à lógica das ciências exatas. O que você responde a isso?
SOKAL: Claro que a lógica não é a mesma, mas nós criticamos o livro da Kristeva sobre a semiótica, no qual ela despeja coisas incompreensíveis sobre o leitor.
BRICMONT: É importante dizer que não se trata de um debate entre o pensamento anglo-saxão e o pensamento francês. Existe na França um espírito francês racionalista, que nós apreciamos. Diderot, por exemplo, era um racionalista, ao contrário dos autores que nós criticamos.

BM: Você tem certa razão de falar do terrorismo do pensamento intelectual francês. Mas será que esse terrorismo não é devido à submissão dos americanos do norte e do sul? ao espírito sistemático de papagaíce no campo das ideias? Quando a gente fala de sadismo, tem de falar também de masoquismo…
SOKAL: Nós utilizamos a palavra “terrorismo” uma única vez a propósito da Kristeva, que cita um enunciado muito técnico da lógica matemática, um enunciado que nem os matemáticos entendem. E ela citou dizendo “Sabe-se que”, quando, na verdade, ninguém sabe. Trata-se de uma forma de intimidar o leitor.

BM: Retomando a questão, gostaria de saber se existe na América do Norte, como na América do Sul, um espírito de imitação?
BRICMONT: No Sul existe. Basta alguém espirrar em Paris para as pessoas ficarem gripadas em Buenos Aires.
SOKAL: Em Nova York, é exatamente a mesma coisa. Podemos dizer que as modas intelectuais parisienses se reproduzem nas universidades americanas e talvez nas brasileiras com um atraso de dez anos.

BM: Em resposta ao seu livro, Bruckner escreveu, em Le Nouvel Observateur, que existe incompatibilidade entre uma cultura americana baseada no fato e na informação e uma cultura francesa que se vale mais da interpretação e do estilo. O que você acha disso?
SOKAL: Afirmar que os franceses não levam em conta os fatos e a informação é confundir alta cultura com alta-costura, que só se interessa pelo estilo.
BRICMONT: Trata-se de um trocadilho. Nós, obviamente, apreciamos a alta-costura.
SOKAL: O pensamento, em qualquer domínio, implica a argumentação. Não pode ser apenas questão de estilo. Se for, então, é poesia.

BM: Vocês são mais realistas do que o rei, mais insistentes na separação radical dos gêneros do que os clássicos franceses.
BRICMONT: É verdade que eu me irrito quando encontro um filósofo, como Lyotard, e ele diz que Deleuze é literatura, quando é filosofia. Tenho tendência a achar que essa história de dizer que não é nem uma coisa e nem outra não é possível.
SOKAL: Dissemos isso na televisão ontem…
BRICMONT: Paris Première… E eles vão passar de novo…

BM: Seja como for, a contribuição dos pensadores de língua francesa para a história das ideias não é propriamente negligenciável. Gostaria que vocês fizessem um balanço da contribuição dos americanos.
BRICMONT: Balanço é impossível, mas quero citar Chomsky, que é um racionalista e teria gostado do nosso livro.
SOKAL: Quando o Le Monde disse que há um imperialismo americano e que eu estou querendo impor a cultura da Disneylândia na França, respondi que a América que nós apoiamos é a de Chomsky.

BM: Quais são as condições necessárias para a instauração de um verdadeiro diálogo entre as ciências físico-matemáticas e as ciências humanas, entre o que vocês chamam no livro “as duas culturas”?
BRICMONT: Há certos ensinamentos resultantes da leitura sistemática dos autores que criticamos. É preciso saber do que a gente está falando. Se alguém quer falar das ciências exatas, deve se informar seriamente. Tudo o que é obscuro não é necessariamente profundo. É fundamental distinguir entre os discursos que são de difícil acesso por causa do assunto tratado e aqueles cuja banalidade fica escondida pela deliberada falta de clareza dos propósitos. A ciência não é um “texto”. As ciências exatas não são um reservatório de metáforas prontas para serem utilizadas pelas ciências humanas, que têm os seus método próprios s e não precisam seguir as mudanças na física ou na biologia. Não se deve usar o argumento de autoridade etc.

BM: Você diz que critica as ideias obscuras porque elas reforçam o anti-intelectualismo fácil existente na população. Você acha que se trata de fazer uma ciência que seja clara e assim possa se tornar popular no próximo século?
SOKAL: Popular no sentido da vulgarização?
BRICMONT: A vulgarização pode ser bem-feita…
SOKAL: No livro, a cada vez que abordamos um domínio científico, procuramos nos referir a bons textos de vulgarização.

BM: Qual é a relação entre a vulgarização e o mercado?
SOKAL: Uma parte da literatura de vulgarização peca por excessos em virtude do mercado. Insiste, por exemplo, nas teorias mais especulativas, apresentando-as como decorrentes da ciência estabelecida. A vulgarização é difícil, é uma tradução de conceitos científicos. Em nosso livro, nós explicamos a Teoria da Relatividade para um público que não é de cientistas.

BM: Você termina o seu livro dizendo “… lembremo-nos de que há muito existiu um país em que os pensadores e os filósofos se inspiravam nas ciências, pensavam e escreviam claramente, procurando compreender o mundo natural e social, esforçavam-se para difundir os seus conhecimentos entre os cidadãos e questionavam as iniquidades da ordem social. Essa época era a do Iluminismo – Lumières – e esse país era a França”. Gostaria de saber o que nós podemos esperar, o Novo Iluminismo ou outra coisa?
BRICMONT: O fim do livro foi para lembrar os franceses de que o nosso pensamento não é antifrancês. Tendo a pensar que o espírito do Iluminismo deveria voltar, a crítica aos abusos de poder que existem na sociedade. O que as pessoas de esquerda chamam de “pensamento crítico” é obscuro, relativamente obscurantista. Somos contra isso.
SOKAL: Houve um progresso cognitivo inacreditável no século XX, que levou a um progresso tecnológico, mas os progressos cognitivo e tecnológico não implicaram um progresso moral. É preciso estabelecer distinções claras. Dizer que Auschwitz é consequência do Iluminismo é ridículo.
BRICMONT: Os fascistas utilizavam a tecnologia, mas eram contra o Iluminismo.