A internet e a vida subjetiva

A internet e a vida subjetiva

Centro Cultural Banco do Brasil, 2007

 

A rede mudou as nossas vidas? Podemos falar de uma subjetividade nova, de um homem novo?

Que a rede mudou as nossas vidas, nós todos sabemos. Mudou a nossa relação com o espaço e com o tempo. Virtualmente, quem está na China está tão próximo de nós quanto quem está em São Paulo, e o tempo requerido para nos comunicar com um chinês ou com um paulistano é o mesmo. As mudanças introduzidas pela rede são tantas que, para repertoriá-las, seria preciso fazer um estudo psicossociológico aprofundado. Assim, prudentemente, vou me limitar à questão a que posso responder a partir da minha experiência na coluna da Folha de S. Paulo, a Fale com Ela. A questão que se impõe é “se podemos ou não falar de uma subjetividade nova”.

Para responder a ela, focalizo o amor antes e depois da net. Por que o amor? Porque ele é indissociável da vida e da morte. Como tão bem diz Quevedo: “Serás cinza, mas uma cinza sensível. Serás pó, mas um pó amoroso”. A última cena de O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, é uma ilustração perfeita dos versos do poeta espanhol. O corcunda Quasímodo e a cigana Esmeralda morrem abraçados. Quando encontrados, o esqueleto de um envolve o do outro, e, quando tocados, ambos viram pó.

A literatura mostra que o amor foi e é a nossa vocação. Quando a literatura romântica baseada na carta deixou de existir, surgiu outra literatura romântica epistolar baseada no e-mail. No passado, os amantes trocavam cartas, eles hoje trocam e-mails. A carta era incerta e a espera, dramática. Os amantes temiam o extravio do correio e falavam da tão esperada missiva. O amor implicava a paciência e a contenção. O sentimento amoroso era vivido de outra maneira. Mas será que, na sua essência, esse sentimento mudou com a internet?

La Rochefoucauld, escritor francês do século XVII, escreveu que para amar é preciso ouvir falar de amor. E há vários exemplos disso. Um deles é Cyrano de Bergerac, a peça de teatro que virou filme com Gérard Dépardieu. Quando o personagem Christian diz para sua amada “Eu te amo, eu te amo…”, ela pede que ele diga mais, “Floreia, floreia, meu bem”. Sem o floreado, o amor não existe. Quem ama quer a jura e o galanteio.

O amor, portanto, se constrói com as palavras, e é porque a palavra se materializa na tela do computador que ele pode surgir através da internet. Ou seja, a palavra é a condição do sentimento amoroso, e essa condição não mudou. Ontem e hoje, é com ela que o amante arrebata o amado. Um dos e-mails a que eu respondi na coluna Fale com Ela, pode servir de exemplo. A leitora, de 17 anos, encontra na internet um rapaz de 21. Os dois trocam e-mails durante uma semana e ela depois disso me escreve desesperada, dizendo que já não consegue viver sem vê-lo e me pergunta se a paixão pela internet existe.

Respondo que a paixão nasce, porque é com as palavras que a gente se apaixona. O amor de Romeu e Julieta foi amor à primeira vista, mas não pode ser dissociado do que eles se disseram, das palavras de Romeu: “Me chama de meu amor e eu estarei rebatizado” ou “Mulher nenhuma é mais bela do que a amada. O sol que tudo vê nada vê que possa a ela se igualar”.

Ou seja, o sujeito não muda com a tecnologia. O que muda com ela é a nossa vida. Sem a pílula, a liberação sexual não teria existido. Sem a máquina de lavar roupa, o século passado não teria sido o século das mulheres.

A experiência do amor através da internet coloca questões novas. Uma delas é a da fidelidade virtual, questão de que eu me inteirei pelo e-mail de uma leitora cujo ciberlover morava em Nova York. Entre eles, o encontro real era impossível, mas a transa era tórrida, e a moça se contentava com a fidelidade virtual. Podia ele namorar, transar com outra, desde que fosse virtualmente fiel. Ela era fiel e só não estava feliz por medo de perder o ciberlover.

O e-mail dessa leitora me levou a refletir sobre a diferença entre a satisfação sexual real e a que a internet propicia. Os ciberlovers não se tocam, um não sabe da pele, do calor da boca do outro ou do perfume do corpo. Eles se excitam e se satisfazem sem o prazer da carícia. Por que, então, há entre eles os que não querem passar do virtual para o real? Porque, com a internet, o gozo se tornou possível sem o risco da contrariedade. Ou seja, o ciberlover se vale das palavras do outro para alimentar a própria fantasia e não corre o risco de ser contrariado pela presença alheia. A internet não deu origem, porém aumentou a possibilidade da satisfação sexual pelo imaginário. Trata-se, evidentemente, de uma experiência narcísica, que tem as suas limitações. Mas nem por isso é menos válida.

Tanto o amor quanto o sexo têm na internet um recurso de viabilização, através da internet é possível aprender muito. Assim, por exemplo, ela ensina que o continente do amor não tem fronteiras e a nacionalidade não importa. Ela também ensina que a força da palavra é incomensurável e é preciso, portanto, considerá-la seriamente. Inclusive para saber se as palavras do ciberlover são ou não dignas de confiança.

Isso significa que a rede impõe uma educação sentimental nova. Ou melhor, torna premente essa educação que já se impunha na época da revolução sexual, nos anos 60. Porque a internet tanto possibilita a liberação sexual quanto pode ser uma armadilha para os incautos.

A internet mudou a nossa vida tirando a culpa do gozo sexual e propiciando encontros felizes, como o caso de uma das minhas leitoras que se correspondia com homens de diferentes nacionalidades até encontrar um português e com ele se casar.

A internet é uma faca de dois gumes. Embora possamos nos tornar mais solitários com ela, nós também podemos alargar o nosso campo de possibilidades reais. Tudo depende da educação. A internet não forma, ela só informa. Por isso, a informatização das escolas não é mais importante do que a formação dos alunos. Computador nenhum substitui o professor. Não adianta acessar o Google sem critérios de avaliação. Para ter critérios, é preciso de formação.

A internet não significa um homem novo. O homem novo depende de uma sensibilidade para si mesmo e para o outro, e isso a aldeia global não garante. Assim como a internet favorece as experiências amorosas, ela pode estar na origem da violência. Segundo um dos grandes especialistas da comunicação, Dominique Wolton, a aproximação que a internet permite pode ser causa de grandes conflitos. Porque, quando as pessoas se aproximam, se dão conta de que existem mais diferenças do que semelhanças entre elas, e nós não somos educados para aceitar a diferença e nos enriquecer com ela.

Por isso, eu preconizo uma nova educação sentimental. O trabalho dos escritores, dos jornalistas e dos intelectuais é fundamental. Eles são os intérpretes desse mundo, em que tudo é virtualmente possível, mas nós tendemos a nos cegar para a realidade. Salvo quando ela se impõe e nos aterroriza. Paradoxalmente, quanto mais protegidos nós vivemos na aldeia global, mais expostos ao mal nós ficamos na realidade. O homem novo vai se valer da internet para transformar a realidade, desacreditando o ideário da sociedade de consumo e desdizendo o time is money.

 

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Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo (SP), 13 de março de 2007.