A cultura do brincar

A cultura do brincar

Seminário Carnaval e Identidade Cultural, 1995

 

O título do nosso debate é “O Carnaval e a Cultura do Brincar”. O Carnaval todo mundo sabe o que é. Já a Cultura do Brincar ainda precisa ser explicada. Antes disso, eu gostaria de rememorar a história através da qual descobri que o Carnaval faz parte da cultura do brincar que, por sua vez, faz parte de uma cultura do riso datada da Renascença – a chamada cultura rabelaisiana ou da praça popular.

Foi em 1979 que o Carnaval me arrebatou, passou a ser o meu tema. E isso por causa da eclosão no Brasil de uma frase. Uma frase de uma audácia então inusitada, que foi mesmo uma espécie de aparição. A frase era: “Quem gosta de miséria é intelectual. O povo gosta de luxo”. O autor, como se sabe, é Joãozinho Trinta, que, na época, parecia suspeito à nossa intelligentsia.

Precisamente porque parecia suspeito, fui ter com ele para saber o que a frase significava e, então, Joãzinho me explicou que a intelligentsia se enganava ao se opor ao Carnaval, cujo luxo não é o do dinheiro, mas o da imaginação.

Nessa mesma ocasião, eu, que pertencia à dita elite intelectual, perguntei a ele se o Carnaval não era um fenômeno marginal; e ele me respondeu, sem mais, que marginal era eu. Foi aí que eu me amarrei. Quis entender por que Joãozinho se autorizava a dizer isso e passei então a ouvir os carnavalescos das diferentes escolas de samba do Rio de Janeiro. De 1979 a 1981, eu me pus à escuta de um Brasil ao qual a elite ainda não havia dado ouvidos, embora Joãozinho Trinta já fosse considerado um fenômeno e já tivesse ocupado as páginas amarelas da revista Veja(1).

Foi dessa escuta que resultou o livro Os bastidores do Carnaval, que eu levei cinco anos para conseguir publicar e é agora editado pela terceira vez na Empresa das Artes, com o patrocínio das Secretarias de Cultura de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Também foi graças à escuta dos carnavalescos que eu tive a ideia central de um outro livro, E o que é o amor?, inúmeras vezes reeditado pela Brasiliense, no qual eu introduzi a ideia de que nós, brasileiros, temos uma paixão que nos é característica, a paixão do brincar, exemplificada pelo Macunaíma. O herói nacional e sua amada brincavam que mais brincavam, escreveu Mário de Andrade, apontando um traço nosso. Eu cito: “Os dois brincavam que mais brincavam num deboche de amor prodigioso (…) despertados inteiramente pelo gozo, inventavam artes novas de brincar”(2).

Descobri a cultura dionisíaca do brincar ouvindo Joãozinho Trinta me dizer, em 1980, que a cultura brasileira é a cultura fluindo através da brincadeira, é Grécia, Egito, Roma na Marquês de Sapucaí, os deuses, as deusas, as vestais…

O que mais caracteriza a cultura macunaímica do brincar? Sumariamente, eu diria que ela não se manifesta através de dogmas, como a cultura oficial, mas de um estilo que se diferencia incessantemente, evitando toda coincidência definitiva consigo mesmo, promovendo, antes, a ambivalência, exaltando a alegria e solicitando o riso. A exemplo disso, o travesti carnavalesco, que se vale do masculino para ridicularizar o feminino; em outras palavras, faz uma sátira da alternativa implícita na diferença sexual, de ser isto ou aquilo, para, travestindo-se, ser isto e aquilo, ser ambivalente.

A cultura do brincar, que se manifesta no jogo, na festa, na literatura, se prevalece dos mesmos recursos presentes na elaboração do sonho. Por isso, ela é indiferente ao princípio da não contradição e ao tempo cronológico. O Colosso de Rodes, os Jardins Suspensos da Babilônia e as Pirâmides do Egito podem coexistir num mesmo enredo de escola de samba, como, por exemplo, no da Beija-Flor em 1981. À diferença do museu, que valoriza a cronologia, o Carnaval faz coexistirem as representações de todos os passados, do presente e do futuro. Ele é atemporal.

Distraidamente sacrílega, a cultura do brincar reverencia irreverentemente as outras culturas que ela, brincando, dessacraliza. Celebra, devorando a diferença, para criar e recriar a nossa identidade. Interessa-se pelas realizações do resto do Ocidente, mas não se deixa inibir, apropria-se de tudo o que estiver à mão. O mundo é dela, que é do mundo. O Hamlet de Shakespeare com José Celso vira Ham-let, que, do Brasil, agora vai à Inglaterra(3).

Quanto ao Carnaval brasileiro, que também não cessa de se exportar, ele não é senão uma das expressões da cultura do brincar e, nos bastidores da festa, no lugar onde ela se prepara, o espaço secreto do barracão, eu me dei conta de que o Carnaval é a memória deste país desmemoriado, de que ele é um culto paradoxal do esquecimento através do qual o Brasil se reinventa incessantemente, narrando a sua verdadeira história.

É disso que eu trato no Bastidores do Carnaval. No livro, o Carnaval não é analisado através do desfile mas do discurso dos carnavalescos e das alegorias, fotografadas no barracão por um grande fotógrafo, Jorge Bodansky, cujas fotos retrabalhadas por uma artista plástica e uma diagramadora de gênio, Denise Milan e Emilie Chamie, permitiram criar uma metáfora visual do Carnaval.

Culto paradoxal do esquecimento, o Carnaval tanto rememora a história do Brasil quanto a fantasia dos descobridores, a de chegar ao Paraíso. Assim, coloca em cena os elementos da geografia fantástica do Paraíso, a flora e a fauna antropomórfica, os homens-gatos que são os mensageiros do Eldorado e os homens com cauda de pavão. Traz os reinos áureos e argênteos, faz de novo ressurgir o imaginário mítico dos nossos antepassados. À sua maneira, o Carnaval é um culto dos ancestrais e é por isso que, malgrado tantas dificuldades, ele vinga todo ano e a República do Samba é sempre gloriosa, não é nunca uma republiqueta.

Dela tanto faz parte o desfile carnavalesco, que Joãozinho Trinta chamou de ópera de rua, quanto o teatro produzido pelo Oficina, um teatro que é o nosso musical, que já deu o Hamlet e, com a mesma fé em Dionísio, proximamente vai nos dar As bacantes.

Da República do Samba, fazemos parte nós e os outros todos do extremo norte ou sul que também estiverem identificados com o que é genuinamente brasileiro. A cultura macunaímica e antropofágica do brincar, de tão nacional, não precisa ser contrária ao estrangeiro, não é nacionalista, porque ela é indiscutivelmente universal.

 

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Seminário “Carnaval e Identidade Cultural”, Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo (SP), 13 de setembro de 1995.

(1) Páginas amarelas são uma seção inicial da revista Veja, dedicada a entrevistas sobre um assunto ou um personagem relevante.
(2) Andrade, Mário de. Macunaíma. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
(3) Referência à excursão da montagem de Hamlet feita pelo Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.