Paris não acaba nunca II

Paris não acaba nunca (1996)

 

II

P: Como surgiu o projeto das crônicas sobre Paris no jornal?
BM: Primeiro eu escrevi um pequeno texto de três páginas. Quebrei muito a cara até decidir escrever sobre a Paris das iluminações, a que permite criar. Quando acabei o segundo texto, me dei conta de que podia escrever crônicas e comecei a visualizá-las no jornal. Como queria ter certeza de que tinha fôlego para sustentar uma coluna, escrevi quase a metade das crônicas antes de enviá-las ao jornal. Agora, se o livro der certo, eu vou em frente, mesmo porque Paris não acaba nunca.

P: Como surgiu a ideia de reunir as crônicas em livro?
BM: Tive a ideia das crônicas e do livro ao mesmo tempo, de modo que já ia concebendo as crônicas em função do livro. O roteiro, que é bastante livre, foi surgindo à medida que eu escrevia. Comecei seguindo os passos do Hemingway em Paris é uma festa. Depois, me autorizei a andar sozinha na cidade, mesmo porque sempre “me dei comigo mesma”, como dizia Mario de Andrade. Gostaria ainda de escrever sobre outra Paris, a da noite, da ópera, do teatro, do cabaré… São outras luzes e possivelmente outras iluminações.

P: Como você definiria o livro? Acredita que ele pode funcionar como um guia para um visitante?
BM: O livro não dispensa o guia, mas ele dá o que nenhum guia dá: a possibilidade de descobrir Paris errando pela cidade. O meu livro ensina a andar pela cidade e a saber de si através disso. Digamos que ele incita à errância, mostra o quão fundamental é perder tempo. O livro, aliás, é dedicado aos que sabem errar.

P: Entre todos os escritores a que você se refere, Hemingway tem destaque especial. De certa forma, ele abre e fecha o livro, funcionando muitas vezes como guia dos passeios por Paris. Por que Hemingway e não Joyce ou Fitzgerald, que igualmente tiveram uma relação marcante com a cidade?
BM: A resposta é simples, foi por causa de Paris é uma festa. Na verdade, eu até gosto mais do livro do Henry Miller sobre a cidade, Dias tranquilos em Clichy, mas o Hemingway é mais abrangente.

P: Qual a razão para a inexistência de movimentos literários/artísticos com o mesmo peso da chamada “geração perdida” ou dos surrealistas na Paris de hoje? Por que Nova York exerce agora um poder de atração mais forte em relação aos artistas?
BM: Depois da “geração perdida” e do surrealismo, houve o existencialismo, o nouveau roman, o estruturalismo. E há hoje um movimento literário sub-reptício, ainda não reconhecido e não nomeado, um movimento que pode ser dito de transmutação literária, porque, através dele, os autores estão mudando de ser. São escritores da Europa do Leste, da América Latina, da Grécia, da China, que estão adotando a língua francesa para escrever e que, para tanto, têm um incrível jogo de cintura. É uma literatura de mestiços culturais, de quem, não possuindo a experiência da língua dos nativos, tem que se valer da manha para escrever, operar com o não-saber. O romance deles pode ser chamado de romance mestiço. Depois do estruturalismo, veio o “mesticismo”, como eu gosto de dizer, que é mais francês do que se imagina, porque a França é um país mestiço. Um desses escritores, o Hector Bianciotti, acaba de ser eleito para a Academia Francesa de Letras, o que, no caso de um argentino originário dos pampas, é um fato verdadeiramente épico… Paris continua a exercer uma grande atração sobre os escritores, mas é verdade que, para os músicos e os artistas plásticos, Nova York é melhor. Há mais dinheiro, por causa das grandes fundações, dos colecionadores, dos museus. Seja como for, a cultura francesa é muito mais complexa do que a americana, e as pessoas ficam perdidas diante da complexidade. O mais comum é terem reações nacionalistas tacanhas, que fecham definitivamente as portas.

P: O cinema, a literatura, a música difundiram uma série de clichês sobre Paris. Um exemplo recente é a nova versão do filme Sabrina. Como evitar esses clichês ao escrever sobre a cidade?
BM: Não é para ser evitado. O clichê, em princípio, não é um mal. A gente precisa conseguir reinventá-lo. Os surrealistas fizeram isso. Para escrever sobre as cidades de maneira nova, é bom partir da subjetividade, não ter medo dela. Hemingway procedeu assim, Miller também.

P: É senso comum a ideia de que o Rio de Janeiro se parece com Paris, assim como São Paulo com Nova York. Na verdade se trata também de um clichê. Seria ele verdadeiro? Por quê?
BM: O senso comum está certo no que diz respeito ao Rio de Janeiro e a Paris, elas se parecem. Tanto os moradores do Rio quanto os de Paris adoram as suas cidades e aproveitam qualquer momento livre para passear. São cidades onde há sempre algo para olhar e um lugar para a gente se sentar. Ambas, ademais, são literárias. São Paulo pode ser comparada a Nova York pela eficácia, mas não pela beleza. O passeio pelo Hudson é lindo. Já o Tietê, eu o chamei de Credo num dos meus romances.

P: O livro faz algumas comparações entre as características das culturas francesa e brasileira. Você poderia explicitar por que o Carnaval se tornou uma imagem recorrente em todo o livro?
BM: A gente sempre procura compreender o outro através de si mesmo e daquilo que já conhece. Tempos atrás, observei muito o procedimento dos carnavalescos para escrever Os bastidores do Carnaval, e uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi a criatividade deles. O Carnaval brasileiro não acaba nunca, ele não cessa de se reinventar. Quantos sambas-enredos, quantas máscaras, quantas alegorias! A gente só não sabe da riqueza que tem por causa dos comentaristas cativos, que são uns preguiçosos e se recusam a estudar a produção dos artistas antes do desfile, nos barracões. A nossa elite não está à altura do nosso povo. Um dos meus grandes sonhos é ser comentarista de Carnaval. Para isso, eu formaria uma equipe de historiadores da arte e do Brasil. É preciso mudar o discurso sobre o Carnaval brasileiro para mudar a imagem do Brasil no mundo. Quem sabe um dia alguém me abra esta porta. Depois de ter assistido este ano ao desfile das escolas de samba pela televisão, estou convencida de que o Carnaval não prescinde dos escritores. Só outra versão dos fatos, que seja de algum modo literária, pode dar a ele o estatuto que merece.

P: Você escreve que “Paris imortaliza os escritores para se imortalizar” ou, então, que “o exílio é um arco-íris”. Mas o “cidadão comum”, ao exilar-se em Paris, descobre uma certa xenofobia dos franceses. Nem é preciso falar dos imigrantes islâmicos (argelinos, marroquinos etc.)… É uma ideia razoavelmente generalizada que os franceses tratam mal os estrangeiros. Por que esse tratamento diferenciado para artistas e outros cidadãos? Você não acha esse fato elucidativo do caráter francês?
BM: Vamos por partes. A xenofobia, infelizmente, existe em todo lugar. Estrangeiro é estrangeiro, a menos que esteja num hotel de luxo para turista. Escrevi um romance, O Papagaio e o Doutor, cujo tema é a xenofobia dos brasileiros. Vivi-a na pele por ser descendente de imigrantes libaneses, dos que eram chamados “come-gente”, quando desembarcaram no Novo Mundo e eram pobres. Seja como for, a xenofobia é menor na França do que na Itália, na Inglaterra ou na Alemanha, onde chegaram a incendiar residências de turcos. O fato de os franceses privilegiarem os artistas, e sobretudo os escritores, é revelador de uma característica da alma francesa, como o é o fato de os cariocas privilegiarem os músicos, e os nova-iorquinos e paulistas privilegiarem os business men. Para quem não veio ao mundo a negócios, como eu, e acima de tudo quer escrever, é uma ótima estar em Paris.

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Sem referência.