O século das mulheres

O século das mulheres

 

Alain Mangin (1)

Quero o discurso que dá o primeiro tiro
quando existe a maior das dúvidas.

Montaigne

Este século, o vigésimo, foi o nosso. Nasceu e morreu, em pleno dia, do choque dos impérios. Marcado por um relógio implacável – o tique-taque da morte –, como se a corda tivesse sido estirada para amplificar a onda criminosa desde sua primeira vibração. E, para ser ainda mais violento, o século – como um artilheiro comprimindo dinamite numa exígua câmara de explosão – foi curto: setenta e sete anos. Saiu armado dos canhões do Kaiser no dia 28 de julho de 1914 e, no dia 21 de dezembro de 1991, foi atirado por Gorbatchev numa cova em Alma Ata, na Ásia (2).

É este século que Betty Milan investiga, valendo-se da entrevista – método em que ela se exercita de maneira exemplar, por não rivalizar com o entrevistado e construir com ele um diálogo esclarecido. Os temas do livro são dez: A CIDADE, A GUERRA, A TERRA, O DESTERRO, A VIDA, AS MULHERES, O SEXO, A LÍNGUA, A ARTE e A COMUNICAÇÃO.

Esta variedade temática faz pensar na frase de Montesquieu: “Minha alma a tudo se entrega”. Só que, para sustentar a curiosidade, é preciso uma cultura sólida, que alie as ciências duras às ciências humanas e à estética. À sua maneira, a autora coloca em prática o que, segundo um dos seus interlocutores, Pierre Gourou, será o traço distintivo do próximo século: a palavra registrada. Por que, aliás, ter escrito o próximo se nós já estamos nele? Mas não nos enganemos, a autora é por demais escritora para ignorar que essa palavra registrada não tem como entrar num livro, desafiar a corrosão do tempo, se não for estilizada. É o que ela faz, sem nunca trair o pensamento do entrevistado.

O feito é tanto maior se considerarmos que todos os diálogos ocorreram em francês. O fato de Betty Milan morar em Paris não deixa de ser uma explicação, mas é incompleta. A França apresentava a vantagem de ter estado no centro do turbilhão, de ser o vencedor e o vencido. Com vinte anos de intervalo (3), tanto conheceu a vertigem da vitória quanto a humilhação da derrota. Nisso, está mais próxima da Alemanha – com a abjeção a menos – do que da Inglaterra, que, aliás, só se manteve à beira do abismo por causa de um homem, Winston Churchill. E há quem diga que a história se faz sem eles!

A Alemanha e a Inglaterra, por razões que lhes são próprias, bem como a Itália, poderiam ter servido aos propósitos da entrevistadora. Já é mais difícil imaginá-la nos Estados Unidos, porque o papel desse país – ao contrário dos outros – não se define pelo “sentimento trágico da vida”, para retomar a fórmula de Miguel de Unamuno (4).

A França bem sabe como é frágil a alegria de viver. Sabe que os 14 de julho (5) derrapam no sangue da guilhotina. Que, em vez do trigo, o belo verão de 1914 (6) ceifou a juventude europeia nos campos onde ela caía. Claro que a França não pode se entregar ao otimismo. E como poderia, se pensarmos que o novo século, o vigésimo primeiro, já começa com o massacre da ex-Iugoslávia, os genocídios da África Oriental, a interdição feita pelos talibãs às afegãs, proibidas – como diz Michèle Sarde – de se tratar nos hospitais do país? Não é por acaso que o pintor Georges Mathieu se declara otimista, mas logo qualifica de desesperado o seu otimismo. A pirueta metafísica a ninguém engana.

A entrevistadora se ocupou dos francófonos porque domina o código deles e, consequentemente, é capaz de fazer perguntas mais agudas e espontâneas. E a razão da escolha de cada um dos seus interlocutores qual é? Como todo verdadeiro escritor, a autora é sensível à palavra, à elegância do discurso, à sua consistência íntima, às inflexões da voz, em suma, à tessitura secreta do ser. Não foi o sucesso midiático que a levou a eleger um ou outro entrevistado. Alguns são frequentemente vistos nas telas da televisão francesa. Outros, nem tanto. Seja como for, as entrevistas nos fazem adivinhar o quanto eles e Betty Milan gostaram do encontro. Acho que ela faria suas as palavras de Montaigne (1533-1592): “… é bom aprender o teórico com os que conhecem a prática”.

Last but not least, ainda outro elemento determinou as escolhas da autora: a capacidade que o entrevistado tinha de ultrapassar o quadro nacional, e o europeu, para nos descortinar o mundo e fazer ver o universal. Nenhuma consideração neste livro sobre a “civilização industrial”, ou o irrisório “pós-moderno” – uma catchword, como diriam os anglófonos –, ou ainda a “periferia”. Os Estados Unidos seriam periféricos sob pretexto de que um partido de devotos – em ruptura com o catolicismo há 400 anos – confunde o fórum e o confessionário, o público e o privado? E a França da Terceira República (1870-1940) seria periférica por ter recusado o direito de voto às suas cidadãs? Elas só o obtiveram em 1945, e foi um general de direita, de Gaulle, quem acabou com o preconceito. As brasileiras – para não falar das neozelandesas (7) – já o exerciam há muito tempo. Mas sejamos tolerantes e raciocinemos pelo absurdo. Quem quiser manter a noção de periferia deve pensá-la de outra maneira e considerar que, no arco-íris das nações e das culturas, cada uma, mais cedo ou mais tarde, será chamada de periférica. O mundo é um círculo cujo centro está em todo lugar – e a circunferência em parte alguma, como dizia Pascal (1623-1662). Ou, citando Michèle Sarde: “O espírito paira em todo lugar”.

Nenhum dos interlocutores presentes neste livro precisou esperar a globalização – noção exclusivamente mercantil – para descobrir a prisão em que vivemos. Dominique Wolton e Claude Hagège, por exemplo, mostram os limites da identidade e os fins clandestinos da globalização. Gourou nos leva para os trópicos da Ásia e da América e se preocupa com a diminuição do campesinato, que, no longo prazo, poderá provocar a fome no mundo. O urbanista Virilio constata a existência de uma terceiro-mundialização das cidades do planeta, as revoltas urbanas que a ela se seguem e se propagam por “procuração televisiva”. O general Gallois está interessado no desequilíbrio geoestratégico da Ásia, nas aberrações geopolíticas da África Negra; enquanto Gérard Chaliand, cuja família só escapou por milagre do genocídio armênio, sublinha os limites da mestiçagem das imigrações contemporâneas. Gourou e Virilio, Gallois e Chaliand já marcam com uma cruz vermelha no mapa-múndi os campos de batalha do futuro.

Os outros entrevistados têm a mesma preocupação com o universal. No caso de alguns, isso é evidente: a psicanalista Catherine Millot, que compara a sexualidade aos partidos totalitários; o geneticista e Prêmio Nobel de Medicina François Jacob, cuja disciplina está a serviço dos mecanismos universais da vida; o linguista Claude Hagège, que vive como um drama a desaparição de uma língua, por saber que qualquer dialeto é uma estilização insubstituível do mundo. Milita na entrevista pelo trilinguismo, considerando que o inglês deve ser a terceira língua – é, aliás, apaixonante descobrir o porquê. Dominique Wolton é por demais discreto para insistir que a vida é comunicação e esta será a questão central do século XXI. Michèle Sarde nos introduz no combate das mulheres, na aventura da outra metade da humanidade. Pena que a entrevista não seja mais longa. No caso do pintor Georges Mathieu, o universal é óbvio, ainda que sua arte seja mais reconhecida na Ásia e nas Américas do que na França.

Todos esses autores se preocupam com o universal, porque são filhos de Montaigne, o mais moderno dos francófonos, o escritor que já no século XVI – o das guerras de religião – se instruía com os índios brasileiros de passagem pelos portos franceses e neles encontrava uma sabedoria nova. Betty Milan, invertendo a situação, interroga os franceses sobre o país dela, o Brasil. Seremos nós tão sábios quanto esses longínquos ancestrais das florestas da Amazônia? Sabe-se lá…

Os interlocutores deste livro conhecem o Brasil. Diretamente, como Gourou e Mathieu, ou através de leitura. E a entrevistadora, que não confunde nacionalismo com patriotismo – por conhecer bem as consequências desastrosas do primeiro e por saber que o segundo se sustenta na memória criadora, e não nas crispações de identidade –, faz sem ufanismo e sem subserviência as perguntas que são importantes para ela.

Os entrevistados respondem confessando às vezes os limites do seu conhecimento, mas nenhum nos deixa indiferentes, porque nenhum é complacente, mesmo quando se deixa levar por um entusiasmo pelo Brasil – Mathieu e o barroco brasileiro ou ainda Wolton, que detecta nos compatriotas de Betty Milan um senso agudo da comunicação. Talvez isso seja devido à sociedade multirracial e às suas complexidades, à capacidade do povo brasileiro – mais do que a de suas elites – de oferecer ao mundo uma imagem arrebatadora. A Ásia poderia tomar o Brasil como exemplo.

Não há só elogios nas entrevistas, há críticas também. Gourou contesta o objetivo de fazer da Amazônia um prolongamento industrial e agrícola de um país sem fim. Por outro lado, volta-se contra a ideia de que a Amazônia seja o pulmão da Terra, quando na verdade o clima do planeta é determinado pela distribuição das massas oceânicas. Gallois é reservado sobre a assinatura pelo governo brasileiro do Tratado de Tlatelolco (8), interditando a construção das armas nucleares na América Latina. De que será feito o amanhã?, pergunta-se ele. Regozija-se, no entanto, com a sabedoria do Brasil, que, ao contrário da França e da Argentina, não esposou as teses da coalizão anti-iraquiana. Assim vêm e vão as questões e as respostas, tão pertinentes quanto inesperadas. Aparece, através disso, o interesse dos franceses pelo que o Brasil poderia ter sido no século XVI, uma França Equinocial (8), não fosse o gosto pela disputa teológica – ou, como nós hoje diríamos, disputa ideológica.

Já que estamos considerando os acordos e os desacordos, autorizo-me aqui a opinar uma única vez sobre uma das entrevistas: a de Claude Hagège. Betty Milan pergunta se ele distingue os bilíngues dos biculturais. A resposta do professor do Collège de France é sentenciosa: “Quem diz bilíngue diz bicultural”. Será isso verdade? Podemos aprender uma outra língua, saber até o dicionário de cor. Daí a ser bicultural, compreender verdadeiramente o Outro, os seus meandros secretos, há uma grande distância. Lawrence da Arábia (9) escreveu um texto luminoso sobre este tema. Seja como for, a minha geração sabe que a França foi martirizada durante cinco anos por oficiais nazistas bilíngues. Obviamente, eles não eram biculturais!

Este século, que alguns chamaram de “era das tiranias” – o século de Hitler (1889-1945) e de Stálin (1878-1953), de Mao (1893-1976) e Pol Pot (1925 ou 1928–1998) –, será ele negativo a ponto de dizermos que foi o dos assassinos? Diríamos que sim, não fosse a revolução feminista pacífica – uma das únicas desde o neolítico a não merecer a palavra horror.

O homem sendo uma causa perdida, resta a mulher. Restam as mulheres. É delas que nos fala Michèle Sarde numa entrevista tão densa quanto sutil. O interesse do leitor é aí ativado pela cultura cosmopolita da interlocutora. Ela nos oferece comparações interessantes entre os diferentes feminismos que renovam o mundo ocidental – a “Declaração dos Direitos da Mulher” de Olympe de Gouges, que foi guilhotinada; o feminismo das sufragistas inglesas, que apontaram como é ridícula a sociedade masculina implacável; e o das americanas, frequentemente tão exacerbadas que morreriam pela causa.

Sendo a natureza humana o que é, as mulheres irão salvar o mundo, como imaginava André Breton? Já seria ótimo se o tornassem mais moderado. E, para chegar a tanto, não precisariam elas renunciar à figura do duplo masculino e assumir triunfalmente o feminino único? A própria emancipação poderia ajudá-las nisso. Senão, a lei de ferro do poder, cujos mecanismos são eternos – a duplicidade e a chantagem, o cinismo e a violência –, as esmagará.

Michèle Sarde atribui à mulher uma aptidão para negociar e diz que são menos agressivas do que o homem. Por que não valorizar este menos, a diferença entre elas e nós?

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1. Alain Mangin, historiador. Prefácio do livro.
2. No dia 28 de Julho de 1914, a Áustria declarou guerra à Sérvia, alegando que o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro e sua esposa em Sarajevo, um mês antes, tivera envolvimento do governo. Seria o estopim da Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918, envolvendo a Tríplice Entente (Império Britânico, França, Império Russo) e a Tríplice Aliança (Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano). Em 29 de julho, a Rússia pôs suas tropas em prontidão. Em 30 de julho, em Berlim, Guilherme II (1888-1918), rei da Prússia e imperador (kaiser) da Alemanha, fazia o mesmo. Na madrugada de 1º de agosto, a Alemanha declarou guerra à Rússia, sendo imitada pelo governo austro-húngaro. A Grande Guerra provocou o colapso de quatro impérios e mudou completamente o mapa do mundo. Já o dia 21 de dezembro de 1991 assinalou o fim da União Soviética, decidida em reunião dos líderes de 11 das 15 repúblicas soviéticas ocorrida em Alma Ata, capital do Cazaquistão. Mikhail Gorbatchev(1931-), que governava a então URSS, tornou-se seu último presidente.
3. Vinte anos de intervalo. Referência ao período de entre-guerras, de 1918 a 1939.
4. Do sentimento trágico da vida (São Paulo: Martins Fontes, 1996) é obra do filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), também poeta e romancista. Como pensador, Unamuno dedicou grande atenção aos problemas de seu tempo, tendo sido precursor do existencialismo em seu país. Mais do que não apresentar caráter sistemático, sua filosofia primou por negar a possibilidade de qualquer sistema, assim como sua literatura fugiu aos gêneros convencionais. Foi professor de grego e reitor na Universidade de Salamanca.
5. O 14 de julho é a data nacional da França, dia que comemora a queda da Bastilha (1789), um dos principais eventos do início da Revolução Francesa. O prédio da Bastilha, hoje demolido, ergueu-se para servir de portão para o bairro de Saint-Antoine e depois foi ampliado como fortaleza para defender o lado leste de Paris. Também funcionou como prisão nos séculos XVII e XVIII. Sua tomada pela população revoltosa representou simbolicamente a queda da monarquia francesa, embora as lutas durassem de 5 de maio de 1789 a 9 de novembro de 1799. A monarquia foi abolida de fato apenas em setembro de 1792, e os soberanos, Luís XVI e Maria Antonieta, foram executados em 1793 – ele em janeiro, ela em outubro.
6. Em pouco mais de um mês, entre 28 de julho e agosto de 1914, logo após o atentado que vitimou o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando em Sarajevo (ver Nota 1), a Europa entrou em guerra. Verão no hemisfério norte, tempo de colher; a Primeira Guerra Mundial, em vez de trigo, passou a ceifar a vida da juventude europeia.
7. Na Nova Zelândia, primeiro país do mundo a conceder o direito de voto às mulheres, no ano de 1893, estas já exerciam direitos políticos em âmbito municipal desde 1886. Na Europa, o primeiro país a adotar o voto feminino foi a Finlândia, em 1906. Tanto na França (1945) como na Inglaterra (1918) e nos Estados Unidos (1920), a luta das sufragistas foi longa e difícil. No Brasil, somente após a Revolução de 30 a mulher pôde votar e ser votada em âmbito nacional. A primeira vez aconteceu em 3 de maio de 1933, na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, quando a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982) foi eleita e se tornou a primeira deputada brasileira.
8. Tratado de Tlatelolco, foi como ficou conhecido o Tratado para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe, concluído na Cidade do México (a antiga Tlatelolco, capital do império asteca) em 14/02/1967. Foi assinado pelo Brasil e colocado em vigor em 16/09/1994 por decreto do presidente Itamar Franco, incluindo as modificações feitas pelo Organismo para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Opanal) mediante as Resoluções nº 267 (E-V), de 3/07/1990; nº 268 (XII), de 10/05/1991; e nº 290 (VII), de 26/08/1992.
9. França Equinocial foi a tentativa de colonização francesa da América do Sul na altura da linha do Equador (antigamente denominada “linha equinocial”) no século XVII. Uma parte do Brasil poderia ter-se tornado francesa se Daniel de La Touche, Senhor de la Ravardière, tivesse conseguido manter sob seu domínio as terras do Maranhão, que invadiu em 1612 com três navios, trazendo cerca de 500 colonos. Ele foi o fundador da cidade de São Luís. A capitulação francesa na região se deu em 1615. Antes dessa incursão, houve a invasão francesa na costa do Rio de Janeiro, comandada pelo oficial naval e diplomata francês Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), que conseguiu se fixar na Baía da Guanabara entre 1554 e 1567.
10. O britânico Thomas Edward Lawrence (1888-1935), mais conhecido como T.E. Lawrence e Lawrence da Arábia, foi arqueólogo, militar, agente secreto a serviço da derrota do Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), diplomata e escritor. Ficou famoso por seu papel na Revolta Árabe de 1916-1918, quando comandou 10 mil homens para expulsar os turcos que ocupavam os territórios árabes. Sua fama como herói militar deve-se em boa parte a seu livro autobiográfico Os sete pilares da sabedoria, base para o roteiro do filme Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) e às conferências sobre ele feitas na Europa e nos Estados Unidos em 1919 e 1920 pelo viajante e jornalista americano Lowell Thomas (1892-1981), que o entrevistou durante sua cobertura da Revolta Árabe com o fotógrafo Harry Chase.