O saber do amigo

O saber do amigo

Lançamento de O clarão, 2001

 

O clarão é um romance que eu escrevi por causa de um amigo, um mineiro de São Paulo, um paulista que foi diretor de comunicação da Rede Globo, fundador do PT e o homem que lançou a Jovem Guarda, Carlito Maia.

Se eu tivesse que falar de Carlito em poucas palavras, eu falaria através de suas próprias frases. Por exemplo: “Conta no teu jardim as flores e os frutos, mas não conta as folhas que tombaram”. Uma frase que ensina a ser leve, a não valorizar a tristeza.

O clarão, aliás, nasceu de uma frase num fax que o Carlito me enviou em 1997, quando ele adoeceu: “Venha me visitar antes que eu já não esteja”.

Por causa do medo de perder o meu amigo e do estranhamento diante da frase, eu escrevi o romance. Estranhamento, porque não é usual falar da morte. Nós consideramos mesmo que não se deve falar dela.

O fato é que o fax me levou a escrever o livro, que primeiro se chamou O amigo. Só depois O clarão, por causa de uma iluminação que eu tive enquanto escrevia. Foi quando percebi que só quem pensa na morte não perde tempo e não desperdiça a vida.

 

O texto

O clarão é um livro que exalta a amizade e o texto é extremamente simples, acessível. Me obriguei a escrever capítulos pequenos, parágrafos curtos… Dei título aos capítulos, como nos artigos de jornal.

E, como o meu personagem é um publicitário, eu me vali dos recursos da publicidade. O resultado é um livro que o leitor vai escrever à medida que for lendo. Trata-se de um convite à meditação, de um romance de sabedoria.

De todos os meus livros, O clarão é o mais simples. Felizmente, pois a amizade vai contar cada dia mais. Por causa da dissolução da família tradicional, mas não somente. A amizade vai ser decisiva no terceiro milênio, porque a paz é a vocação do amigo e nós que já chegamos à Lua ainda não conquistamos a paz. O personagem do Clarão é um pacifista, ele cultiva o flower power, o poder da flor, o poder de nos tocar.

 

O elogio da amizade

O clarão exalta a amizade por mais de uma razão.

Porque o amigo ilumina, é ele que permite enxergar quando a paixão cega – a paixão do dinheiro, do sucesso, do ódio.

Porque o amigo é um anjo da guarda, ele é um protetor – ensina a não dar valor para o que é ruim. Ilumina, protege e escuta.

E o amigo é generoso por definição. Ganha perdendo tempo com seu amigo.

Quem é amigo é solidário, e isso já justifica a difusão do ideário da amizade, que deu origem à exposição “Os Dizeres do Amigo” e ao projeto Amizade no Terceiro Milênio, que, se valendo da rede de bibliotecas públicas, se realiza em oito capitais do Brasil para difundir “O saber do amigo”, um saber eminentemente moderno. Valioso, porque pode ensinar a conter a violência e a alcançar a paz no terceiro milênio. Alcançá-la no mundo e no âmbito do país, que está mais do que nunca entregue à violência.

O amigo é o pacifista de que o tempo de hoje precisa e ele é o interlocutor do homem moderno.

Os “absolutos” religiosos não têm mais sentido. Ninguém mais diz esta é a tradição verdadeira ou esta é a verdade, porque, agora, cada indivíduo é o produtor da sua própria verdade.

O homem moderno compõe a sua religião com toda a liberdade. Quem melhor do que o amigo para validar as suas crenças? O melhor interlocutor do homem moderno é o amigo, sem dúvida nenhuma.

O declínio da religião concebida como um sistema de crenças dogmáticas e a necessidade de uma nova espiritualidade são hoje evidentes. A ciência pode ajudar a prever as consequências das nossas ações, mas nenhuma ciência é capaz de nos dizer como devemos agir numa questão de natureza moral.

A nova espiritualidade implica uma conduta virtuosa, que pode encontrar na conduta do amigo o seu modelo.

 

A ética da amizade

A amizade supõe uma ética, a ética da delicadeza, ou da “contenção”, como diz o Dalai Lama, uma ética que tanto ensina o cuidado quanto o respeito. E ela é a nossa esperança para superar a escalada de crimes no mundo contemporâneo.

Conter-se é adotar uma disciplina baseada numa avaliação das vantagens de agir de um modo e não de outro. O amigo se controla porque o controle é a condição da sua liberdade e da liberdade do outro, a condição sem a qual a amizade não existe – pois ela nasce espontaneamente, mas precisa ser cultivada para se perpetuar.

 

O tema da morte

O tema da amizade é central no Clarão, mas também o da morte. Precisamente por ser considerado um mau tema, fato que tem como consequência, por exemplo, uma incidência maior da morte violenta. Pesquisa feita recentemente no Rio de Janeiro, pela Universidade Federal Fluminense, mostra que a morte violenta rouba três anos de vida do homem brasileiro e que ela o atinge principalmente na sua juventude.

Essa morte, à qual o desenvolvimento tecnológico nos expõe, é selvagem e pode ser evitada se nós nos soubermos mortais. Se, como Ana, personagem do Clarão, nós soubermos que a morte é uma estrela, porque ela indica o caminho.

 

A amizade na educação

Como diz Xenofonte, o amigo é o mais precioso dos bens. Não só porque ele auxilia de todas as maneiras, mas ainda porque ele é uma verdadeira fonte de sabedoria. O amigo mostra o valor da vida quando a gente disso se esquece.

Por essa razão, a escola deveria incluir a reflexão sobre o tema da amizade no currículo, um tema para o qual os alunos estão naturalmente predispostos – pois o amigo é decisivo na vida dos jovens. A reflexão sobre a amizade o fará considerar a questão da ética e da virtude. Já que só é amigo quem é virtuoso e só quem é virtuoso pode ser um bom cidadão. Os que não são virtuosos não são amigos, são cúmplices.

A educação será melhor se nós nos preocuparmos menos com o aprendizado dos saberes todos e mais com o aprendizado do respeito ao próximo, respeito que a amizade ensina e requer – e que é absolutamente indispensável para o exercício da cidadania, que supõe a aceitação do limite e da lei.

Como diz Montaigne, nossos pais gastam muito dinheiro para nos mobiliar a cabeça com a ciência. Com a virtude, eles não se preocupam. A isso, o mesmo Montaigne acrescenta que prefere uma cabeça bem-feita a uma cabeça lotada. Noutras palavras, ciência sem consciência é a ruína da alma.

Na esperança de ter sido suficientemente clara para que a amizade se torne um tema privilegiado nas escolas e a solidariedade se desenvolva, eu me despeço. Obrigada.

 

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Lançamento do livro O clarão e da exposição “Os Dizeres do Amigo”, Livraria Cultura, Conjunto Nacional, São Paulo (SP), 25 de abril de 2001.