O retorno a Freud de Jacques Lacan

O retorno a Freud de Jacques Lacan

Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
saiu como “Uma releitura de Freud por Jacques Lacan”,
Jornal da Tarde, 24/03/1979

Ao lançar o primeiro seminário de Lacan publicado no Brasil, Os escritos técnicos de Freud, Betty Milan escreveu para o jornal a autoentrevista que segue, visando divulgar a teoria e a prática lacanianas, quase desconhecidas no país à época.

JORNAL DA TARDE:Qual a importância da publicação dos Seminários de Jacques Lacan no Brasil?
BETTY MILAN: Com a publicação dos Seminários, vai se tornar acessível ao público brasileiro a prática teórica de um pensador que colocou em questão a lógica e as ciências humanas e toda a psicanálise através de uma releitura da obra de Freud, obra que para Lacan foi desvirtuada pelos discípulos daquele. Lacan mostra que, com a psicanálise, é um campo radicalmente outro que Freud funda, o campo freudiano, onde não é o homem que está em questão, mas o inconsciente; sublinha a necessidade de um retorno a Freud em face das interpretações da obra freudiana contrárias ao que há de subversivo nela, bem como à ética aí implícita. Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a psicanálise se transformou no que Lacan chama de human engineering, uma prática em que o analista procura modelar o paciente. Sujeita à expectativa utilitarista do ego forte, esta psicanálise norte-americana só deu ênfase à instância do ego, produzindo o desvio teórico que de todos considero o mais significativo: a psicanálise do ego (Kris, Hartmann e Loewenstein, todos os membros da Sociedade Internacional de Psicanálise). Por ter desvalorizado a tópica freudiana — três instâncias: ego, id e superego —, ela reduz o sujeito ao ego e a prática analítica à identificação progressiva do paciente com o analista, que só se ocupa das defesas a vencer e só escuta o desejo para o suprimir. Aqui, o analista se toma por aquele que sabe, e a análise se torna uma luta de prestígio, um exercício deslocado do poder. Tomar-se por aquele que sabe é o risco que todo analista corre, mas é sobretudo a armadilha na qual não deve cair. Se sabe a priori, já não está em posição de vir a saber, descobrir a verdade conforme o procedimento originário de Freud.

Considerando o desvio norte-americano, é preciso insistir num outro, no qual a prática fica reduzida a uma análise de identificações imaginárias e a história do sujeito, ao aqui e agora da sessão analítica. É o caso da escola inglesa, tanto a que se filia a Anna Freud quanto a que se filia a Melanie Klein (cuja contribuição é, contudo, inestimável), e é o caso dos que fizeram da psicanálise uma espécie de fenomenologia, escamoteando o objeto da descoberta freudiana — o inconsciente —, como a escola de Daniel Lagache na França, por exemplo.

Se para responder à questão menciono esses desvios, é que eles são constitutivos da psicanálise no Brasil, da que é dita oficial (Sociedade de Psicanálise) e de quase toda a psicanálise não-oficial, que representa mais uma oposição política à Sociedade de Psicanálise do que uma divergência teórica.

A publicação da obra falada de Jacques Lacan, seus seminários, dará subsídios para se questionar a teoria e a prática aqui vigentes — teoria e prática indissociáveis do movimento internacional de psicanálise, da história que faria de Lacan o que ele hoje representa, história datada de 1948, quando, na Sociedade Psicanalítica de Paris, Nacht, seu presidente, faz a proposta de que o diploma de psicanálise fosse reservado aos médicos. Esta proposta precipita uma crise e leva a uma cisão, encabeçada por Daniel Lagache e Jacques Lacan, que então fundam a Sociedade Francesa de Psicanálise, a qual solicita imediatamente o reconhecimento internacional para vê-lo recusado em nome do que a Sociedade Internacional de Psicanálise qualificou de “desvios técnicos dos demissionários”, de um deles em particular, Jacques Lacan. Dez anos depois, contudo, essa mesma Sociedade Francesa de Psicanálise foi reconhecida pela Internacional, tendo negociado o reconhecimento na seguinte base: garantia de que Lacan nunca mais ensinaria. Tratava-se de uma excomunhão, de uma excomunhão maior, sem retorno — a mesma de que fora objeto Espinosa no século XVII.

JT: Qual a importância do Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud em particular?
BM: Datado de 1953, o Seminário 1 é quase um manual de introdução à psicanálise. Nele, Jacques Lacan define a postura que adotou ao longo de seus seminários — a do mestre que não ensina ex cathedra uma ciência toda pronta, mas dá a resposta quando os alunos estão lá para encontrá-la. O Seminário se subdivide em cinco tópicos: “O momento da resistência”, “A tópica do imaginário”, “Para além da psicologia”, “Os impasses de Michael Balint” e “A palavra na transferência”. Nele, Lacan aborda questões fundamentais, enfatizando a diferença entre rememoração e repetição para mostrar que a história não é o passado, distinguindo a resistência que resulta da luta de prestígio entre o analista e o analisando daquela que é intrínseca à fala e marca os limites do analisável, sublinhando que a denegação (recusa da evidência) é constitutiva de toda relação com o outro e que o ego, instância fundada na denegação, é a instância do desconhecimento. Consequentemente, faz a crítica da prática centrada no ego e dá ênfase à função da palavra na análise. É o retorno a Freud, em nome do qual Lacan desenvolveu sua obra — obra que através do recurso à linguística, à lógica e à antropologia dá à descoberta freudiana o seu verdadeiro estatuto.

Já no Seminário1 vigora a ideia de que o inconsciente é estruturado como linguagem, Lacan insistindo na necessidade de diferenciar o real, o imaginário e o simbólico. Revaloriza ainda aí a noção freudiana de nachträglich (que traduzi por “só depois”) para mostrar a inversão da noção de causalidade em psicanálise, na qual é o depois que explica o que se disse antes.

JT:Qual a diferença em uma análise com Lacan?
BM: Eu diria que está na imprevisibilidade de Lacan, na inexistência de um procedimento estereotipado. Isso, tanto na sua forma de atuar na sessão quanto no que diz respeito à duração desta.

Lacan não é um observador passivo, desinteressado, a tela em branco sobre a qual as fantasias são projetadas. Não permanece sentado em sua cadeira, anda pela sala, gesticula, às vezes se aproxima do divã, mas o divã é uma conquista, não se começa a análise por ele.

A técnica repousa menos na interpretação do que na interrupção. O fluxo das palavras do analisando é como um texto sem pontuação, um texto ilegível. O analista interrompe para pontuá-lo e assim possibilitar a emergência de um ou de vários sentidos. De modo geral, Lacan interrompe a sessão dizendo: “É isto”. Na verdade, só o faz para que o analisando descubra que não é isto, descubra que não há respostas definitivas, mas só uma série de questões, cada uma sendo apenas uma meia-verdade.

Nada ilustra melhor a diferença de uma análise com Lacan do que o tempo da sessão — tema que, aliás, se tornou uma famosa polêmica na comunidade psiquiátrica e foi uma das razões pelas quais Lacan se viu excluído da Sociedade Internacional de Psicanálise. Numa carta escrita em 1953 a Rudolph Loewenstein, o analista de Lacan, este explica àquele que havia introduzido sessões curtas na análise didática por causa de uma resistência particular que ele encontrava nos candidatos a psicanalista. Sentiam-se superiores a outras pessoas que procuravam análise e não acreditavam que pudessem auxiliá-los. Tendo 50 minutos garantidos, o que quer que eles dissessem era para não dizer nada, sendo um modo de evitar um trabalho analítico sério. Tornando a terapia mais imprevisível, as sessões curtas servem para intensificar as relações entre o analista e o analisando.

Em Paris, Lacan tem a reputação de ser duro com os analisandos. Mas isto só quando o analisando tenta driblar, usar a sessão para escapar à análise. Lacan não procura convencer ninguém de suas teorias, espera que os analisandos o critiquem quando pensam que ele está errado. Parece sempre mais interessado no que possa contradizer seu ponto de vista do que em confirmações.

Para Lacan, o que interessa é que o sujeito possa agir em função do seu desejo, que ele deixe de ser uma pessoa para ser efetivamente um sujeito. Pessoa significa máscara, e o analisando só se encontra ao liberar-se das máscaras — um risco que procura às vezes evitar a todo preço. Lacan critica duramente os que mistificam a cura analítica através da ênfase no sentimento indizível, na emoção ou no afeto, pois a linguagem é a precondição do inconsciente, e o instrumento da cura é o discurso.

É disso precisamente que toda uma psicanálise se esqueceu, tendo por objetivo não o inconsciente — que só se revela através do discurso —, mas o eu do paciente, que então se torna o único interlocutor do analista. Aí, o critério do bem e do mal depende da ótica do analista, e a cura nada mais é do que a adoção desta ótica. Neste caso, se opera como na iniciação, através do poder, contrariando-se a ética da psicanálise.

Foi para diferenciar entre os processos iniciático e o da análise que procurei destrinchar minuciosamente a forma como o poder opera na iniciação.

Fiz isso num ensaio intitulado “O poder ou a promessa de si mesmo”, que faz parte do livro As manhas do poder. No ensaio, analiso o relato de iniciação do antropólogo Carlos Castañeda e procuro mostrar que, no processo de seu aprendizado sob a orientação do feiticeiro Don Juan Matus — índio yaqui de Sonora, México — o lugar do poder é ocupado por um sujeito que é suposto saber e que, contrariamente ao analista, se toma por aquele que sabe, reforçando com isso a crença na ilusão de uma garantia absoluta, produzindo a identificação sem a qual nenhum poder se sustenta.
Daí a semelhança entre o amor e o poder. Semelhança aparente, porque o amor é o desejo impossível de ser Um, impossível porque há dois — dois sexos ou dois sujeitos —, enquanto o poder é a tentativa de instituir o Um suprimindo as diferenças.