O país da bola

O país da bola (1989)

 

P: O que te levou a escrever este livro?
BM: A paixão dos brasileiros pelo futebol, que é um rito privilegiado para saber quem somos e em que diferimos dos outros povos. O que era football match e entre nós foi primeiro um passatempo de gente rica, é agora o jogo em que nós nos espelhamos, reconhecendo o nosso estilo. Dos campos de pelada ao estádio, é um só e mesmo modo de agir – o modo de quem é manhoso e elege para ser o faz-de-conta, dribla das maneiras mais diversas e assim reinventa o jogo. O jogador brasileiro se faz brincando de bola e, depois, quando já está feito, continua a brincar. Daí a ideia generalizada entre os estrangeiros de que nos caracterizamos pela criatividade. Ouvi dizerem isso Platini (França), Beckenbauer (Alemanha), Rossi (Itália), Brindisi (Argentina) e Forlan (Uruguai). Aqui, brincam a criança e o adulto, porque a nossa cultura nos autoriza a isso, a cultura do brincar. O brincar é nosso, como o droit é dos franceses, o honor dos espanhóis e o fairplay dos ingleses.

P: Mas o que é essa cultura do brincar?
BM: Trata-se de uma contracultura de massas – como era na Idade Média a cultura do riso popular e a da praça pública. Uma contracultura presidida por um princípio cômico, que nos deu Mané Garrincha, por exemplo, o ponta-direita que também foi palhaço e justamente cognominado Alegria do Povo. Garrincha foi o nosso Chaplin. PÁTRIA BRINCAR é a nossa, como é PÁTRIA SAUDADE a dos portugueses. Nós, brasileiros, nos fazemos dissimulando a pena e exaltando a alegria. Os portugueses, rememorando a perda para tornar real o que está perdido. Seremos uns e outros o verso e o reverso da mesma medalha? Eu diria que nós só diferimos nos assemelhando, como aliás ficou patente quando, em 1950, contra todas as expectativas, o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai. Porque, como os portugueses, nós nos consideramos protegidos pela mão de Deus e achamos que o jogo estava ganho antes de termos jogado. Porque não trabalhar sempre foi para nós, como para eles, indício de nobreza, e nós quisemos ganhar sem nos empenhar. A tragédia de 1950 nos espelha tão bem que eu me detive nela para escrever sobre a nossa mentalidade. Aí, me dei conta do descaso que temos pelo nosso estilo, como se nos fosse dado ter outro!

P: E o nosso estilo é compatível com a modernidade?
BM: Graças à cultura do brincar, nós vamos reinventá-la à nossa maneira. Só por insensatez nós desvalorizamos o que temos. O paradoxo é que o estrangeiro compra o nosso futebol e o nosso Carnaval. Os Estados Unidos agora querem o samba, como quiseram Carmen Miranda, que, tendo se exportado, passou a inspirar as baianas nacionais. A cantora era brasileira, mas, esquecidos disso, nós agora queremos ser Miranda do Brazil! Amanhã, vamos querer comprar a alegoria da favela da Mocidade Independente do Museu de Arte Moderna de Nova York. A lógica que nos governa é absurda, porém, como “o Brasil é nosso” e ninguém nos convenceria do contrário, nós ainda nos exercitamos nela. O país oficial sabota o outro, é nacionalista, sendo contrário ao que é nacional.

P: E a Copa de 98?
BM: Há, no livro, entrevistas com vários campeões, inclusive Platini. Ele disse que o Brasil é o favorito da Copa de 98. Eu vou torcer pelo Brasil.

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Entrevista publicada em parte sob o título “Psicanalista repisa lugares-comuns ao escrever livro sobre futebol”, Folha de S. Paulo, 19/12/1989.