A Mãe Eterna III

O idoso ensina paciência

 

Origem do romance

 

P: O seu último livro se chama Carta ao filho. Agora, você escreveu A mãe eterna. Que relação existe entre estes dois livros?

BM: Escrevi os dois para superar um drama pessoal. Mas Carta ao filho é um texto autobiográfico e A Mãe Eterna é um romance, que se impôs por causa da velhice extrema da minha mãe. Graças a este romance, consegui aceitar a passagem da condição de filha para a da mãe da mãe, uma passagem extremamente difícil. De repente, nós temos que cuidar de quem sempre cuidou de nós e fazer um luto antes mesmo de a pessoa morrer. Não há como escapar a isso. Mas como suportar e de que forma agir? Ao escrever A mãe eterna, deparei com um drama ao qual os filhos e os pais estão cada dia mais sujeitos – o da velhice extrema. Precisamente por isso, a longevidade é um dos temas do Museu do Amanhã, do Rio de Janeiro, um museu que deveria servir de exemplo para vários outros.  Um dos painéis diz: “Seremos ainda mais numerosos, com alguns vivendo por muito tempo. Seremos mais longevos, e, em muitas regiões, se viverá três vezes mais do que no Império Romano. Os idosos serão tão numerosos quanto as crianças…”. A longevidade, obviamente, terá consequências importantes para o planeta.

 

O maravilhoso mudo mágico

 

P :Você diz no romance que, por causa da longevidade extrema, seria necessário inventar um outro mundo para os velhos.

BM: Sim, um mundo inofensivo e mágico. Nele, o fogo não queima e o gás se apaga automaticamente. Assim, o velhinho não corre o risco de  se queimar ou mesmo de morrer  por causa de um esquecimento. Neste mundo, bastaria ter uma idéia para ela se realizar. Se, por acaso,  o velhinho imaginar que está indo  da sala para a cozinha, o chão se desloca e o leva até a cozinha. Com o deslocamento, ele terá o sentimento de andar como sempre andou etc.  Uma das grandes questões, hoje, é a nossa longevidade. Como lidar com ela sem  excluir ou maltratar o idoso ?  A  heroína  da Mae eterna procura soluções – e às vezes encontra.

 

A história do romance

 

P: Você poderia falar sobre a história do romance?

BM: A mãe da narradora está quase cega e quase surda, se locomove mal e se alimenta como um passarinho. Na impossibilidade de dialogar com esta mãe, que caminha para o centenário, a filha-narradora escreve para a mãe que ela perdeu – imaginária – e fala do drama que está vivendo. Apesar da idade, no entanto, a mãe real se conserva esperta e só faz o que bem entende. “Passa a perna” em quem tenta domá-la com orientação sobre os médicos, os remédios, a alimentação.  Ou então, demite a cuidadora, mas, quando a filha traz outra, ela “por acaso” reencontra a anterior, que cumpre sem discutir  as suas vontades. Trata-se de uma velhinha muita engraçada , que faz pouco dos medos da filha. Por exemplo, o de que ela seja sequestrada. “– Uma velha,  filha. Quem vai querer me embarcar? ” Ou, então, o medo de que a mãe beba muito. Neste caso,  a mãe simplesmente diz. “– Um vinho ótimo. Quer experimentar? Você vai gostar”.

 

O prolongamento da vida

 

P: O seu leitor vai rir, mas também vai se confrontar com  questões sérias.

BM: Isso era obrigatório. Ao refletir sobre a condição da mãe, a filha-narradora do romance se pergunta até quando a vida deve ser prolongada e questiona a conduta do médico, que procura vencer a morte a qualquer preço. A função do médico é tratar, não a de prolongar a vida indefinidamente. Sem levar em conta o custo objetivo e subjetivo disso. A partir do momento em que a pessoa perde a independência, se ela quiser ir embora, precisa ser ajudada. Por isso, o subtítulo do romance é “morrer é um direito”. A velhice extrema pode ser tão sofrida quanto a doença terminal Se quisermos humanizar o fim, temos que respeitar o direito de morrer. De um modo geral, não temos consciência deste direito, porque somos educados para aceitar o sofrimento. A narradora da Mãe eterna não aceita esta educação.

 

A obsessão terapêutica

 

P: Você é pela eutanásia?

BM: Sou contrária à obsessão terapêutica. Quando a pessoa quer morrer, cabe ao médico  suspender o tratamento e dispor dos recursos que ele tem para facilitar a morte.  Disso eu já tratei no romance que se chama Consolação. O herói tinha câncer e não queria que  sua vida fosse prolongada. O médico não deu ouvidos. Com isso, ele exacerbou o sofrimento do paciente e dos familiares. Ninguém deseja morrer, mas pode querer isso quando a vida se torna insuportável. Neste caso, fazer ouvidos moucos é uma crueldade.

 

P: Mas é difícil se separar de uma pessoa querida…

BM: Claro que é difícil. Por isso, a filha da Mae eterna diz: “Quando você diz que quer morrer, eu me digo que seria melhor, para você não sofrer. No entanto, procuro silenciar o seu voto”. A heroína é sempre muito ambivalente, porque, nesta situação, não há como não ser.

 

O drama de se tornar mãe da mãe

 

P: Você pode falar do drama de se tornar a mãe da mãe ?

BM: Ser a mãe da mãe significa perder a mãe, não ter mais a pessoa que cuida e, imaginariamente, nos escuda contra a morte. Trata-se de um luto dificílimo de fazer, porque a gente se confronta com a decadência  da pessoa. No romance, a narradora fala da mãe como de um passarinho que quebrou a asa.

 

A particularidade dos muito idosos

 

P: Quais as dificuldades ao cuidar de  um idoso?

BM: Além das dificuldades objetivas – como a reorganização do espaço físico  e o cuidador especializado –, existem as dificuldades subjetivas com as quais a maioria dos cuidadores não está preparada para lidar.  O velho sofre com a perda da independência e, por causa disso, tende a ser negativista. A tudo ele primeiro diz não. A conduta se torna menos irritante quando a gente entende que o não serve para afirmar  a independência. O problema é que, ao afimar a independência , a pessoa corre o risco de fazer mal a si mesma ou ou corre risco de vida,  saindo sozinha na rua, por exemplo. No meu romance, são muitas as cenas em que a filha se desespera por não conseguir controlar a mãe. Conclui que a idade deu a esta um alvará para fazer o que bem entende. O velho pode ser comparado ao poeta, que tem licença de versificação, sintaxe e ortografia. As licenças do velho são outras, não catalogáveis, porque ele muda o jogo continuamente. Quem se ocupa  de uma pessoa idosa tem que saber disso e dançar conforme a música.

 

A importância da escuta

 

P: No romance, o irmão da narradora diz que ela não respeita a liberdade da mãe.

BM: Não se pode deixar a pessoa se expor inutilmente ao sofrimento, cair ou ser atropelada. A fratura precisa ser evitada, porque a reabilitação do idoso é difícil e, depois da queda, é a cadeira de rodas. Quem cuida tem que proteger. Isso implica uma tática e requer um aprendizado. Inútil contrariar o idoso, que acaba se enfurecendo e empaca. O cuidador tem que ser particularmente  maneiro. Tem que escutar, porque cada um é um e é preciso descobrir a forma de agir

 

O aprendizado da paciência

 

P: Isso significa que é possível aprender com o velho…

BM: Aprender a ter paciência, a não se irritar. A narradora da Mãe eterna diz, inclusive, que tem medo de se comportar “como uma megera, em vez de ser o cordeirinho do bom pastor de que a mãe precisa”. Teme perder o controle. Acredito que, em nenhuma outra situação, eu tenha aprendido tanto quanto nesta passagem de filha para mãe da mãe – e isso talvez sirva de consolo para os que estão numa situação análoga. Mas o meu romance não fala só do luto, ele fala continuamente do amor. Porque a filha ama a mãe e a mãe  é apaixonada pelo sentimento amoroso, evoca  continuamente a   correspondência com a marido.

 

A mãe eterna é um romance de amor

 

P: Você também é apaixonada pelo amor, autora de O que é amor, Paixão de Lia, O amante brasileiro…

BM: O amor nos leva ao céu, embora também possa nos levar ao inferno. Me debrucei sobre o tema a vida inteira e escrevi uma peça para Nathalia Timberg,  Paixão, que ela faz há vinte anos. A mae eterna  fala da morte e também do amor. O tema da morte, em geral, é censurado, mas não é a censura que nos protege, e sim a consciência de que somos finitos e de que a vida é sempre completa, independentemente da sua duração.

 

 

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Blog da Editora Record, Rio de Janeiro, (RJ), 26 de abril de 2016. (http://www.blogdaeditorarecord.com.br/lancamentos/)