O Carnaval brasileiro e o bicentenário da Revolução Francesa (1989)

O Carnaval brasileiro e o bicentenário da Revolução Francesa (1989)

 

P: Quais as suas principais teses sobre o Carnaval?
BM: A ideia básica é que o Carnaval rememora e reatualiza a fantasia dos nossos descobridores, qual seja a de que o Brasil é o sítio do paraíso terrestre. O Carnaval é a nossa memória e é isso, aliás, que é paradoxal, porque ele se diz o dia do esquecimento. Nós esquecemos brincando para mais ainda lembrar e afirmar o que somos. Isso, infelizmente, não foi levado em conta pelo saber universitário, que despreza sistematicamente o Carnaval e o futebol, considerando-os indignos da sua atenção. Se a Beija-Flor hoje vai a Paris representar o Brasil, isso é devido a uma conjunção favorável em que decisivo mesmo foi o interesse da França. O Brasil não quer se ver projetado através das manifestações culturais espontâneas do seu povo, até porque não acredita, como eu, que ele seja culto. Só o psicanalista e o escritor podem acreditar nisso.

P: O seu livro O país da bola, aliás, além de ser uma tese, é um poema. Do Carnaval você agora passou ao Futebol. Quais as suas principais teses sobre o novo assunto?
BM: O assunto não é propriamente o futebol, mas o país da bola, um país que não era o meu antes de eu escrever esse livro. Sim, porque no Brasil as mulheres torcem pelo futebol, frequentam as arquibancadas, mas rarissimamente entendem de bola ou discutem futebol, que continua a ser coisa de homem. Com o livro, eu de certa forma infringi um tabu, e o que me levou a isso foi a paixão do nosso povo por ele. O fato é que o futebol nos espelha, a tática futebolística é, aliás, o espelho de uma nação. Isso não escapou a Henry Kissinger. A seleção alemã, segundo ele, jogava como o Estado Maior se preparava para a guerra, jogadas meticulosamente planejadas, homens treinadíssimos para o ataque e a defesa, tendo considerado tudo o que era humanamente previsível. Já o Brasil se caracteriza pelos jogadores mais acrobáticos do mundo, capazes até de esquecer que o objetivo do jogo é marcar gols, convictos de que a virtude sem alegria é uma contradição. Quando digo isso, eu obviamente me refiro ao grande futebol brasileiro, o futebol de um Leônidas da Silva, de um Garrincha, de um Pelé, o que se inscreve na tradição do futebol-arte e não esse desvio que aí está, o futebol-violência, como me disse um dia Leônidas.

P: Você também foi ouvir os jogadores desta vez?
BM: Fui. Entrevistei o Leônidas, o Pelé, o Zico, o Sócrates, o Gilmar e até o Dr. Paulo Machado de Carvalho, que, apesar dos seus 88 anos, me deu uma entrevista muito interessante, que esclareceu por que um dia nós fomos vencedores e hoje já não somos.

P: Por quê?
BM: Sumariamente, porque perdemos o espírito de equipe e porque, como também diz Leônidas, nós já não construímos a jogada, nós matamos a jogada, jogamos para não perder e com isso traímos o nosso espírito.

P: Voltando ao livro, quais as suas outras ideias sobre o futebol?
BM: Escrevendo, descobri que o jogo para um brasileiro só é excepcional quando ele é irreal, quando o jogador faz o impossível acontecer e mais parece um mágico. Só o Brasil produz jogadores como Leônidas, capaz de um gol fantástico de bicicleta, como Garrincha, cujos dribles eram inacreditáveis. Descobri que o drible é uma invenção nossa. O drible inglês nada tinha a ver com o que nós fazemos, consistia em avançar com a bola. A arte da finta é brasileira, porque a nossa tradição é a do faz-de-conta. Aliás, o que o Monteiro Lobato ensina às crianças brasileiras é fazer de conta, e um dos meus entrevistados chegou mesmo a me dizer que Pelé tomava e distribuía o pó de pirlimpimpim. O futebol brasileiro não pode ser dissociado do brincar, que é a nossa paixão. Quando ele se torna sisudo, se descaracteriza e se torna perdedor. Nós brincamos no cotidiano, no Carnaval e no futebol, porque brincar é a nossa maneira de existir e foi um grande recurso integrado na formação da sociedade brasileira. O primeiro que brinca aqui é o jesuíta, adotando cantos e danças do tupinambá para catequizá-lo. O jesuíta, por assim dizer, faz de conta para chegar à sua meta. Mas, voltando ao futebol, nós podemos dizer que é através dele – e do Carnaval – que a nossa identidade nacional se molda. Os nossos heróis não são os políticos, são os jogadores e os carnavalescos. O guri brasileiro sabe de si através do Pelé, ele é o povo do Pelé, por assim dizer.

P: Desde quando o futebol é entre nós uma paixão nacional?
BM: O futebol paixão nacional pode ser datado da derrota da Copa de 1950. O Brasil não se concebe sem se lembrar dela. Nelson Rodrigues diz o seguinte: “O brasileiro já esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da gripe espanhola… o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado frango do Barbosa… Qualquer um com esse frango estaria morto, enterrado com o epitáfio: ‘Aqui jaz fulano, assassinado por um frango’ “. Barbosa foi apenas o bode expiatório de uma tragédia de que nós fomos vítimas por uma série de mitos que eu procuro analisar. Um deles, o de que Deus é brasileiro, de que se pode viver sem fazer nenhum esforço. Isso, na Copa de 50, foi determinante. Os jogadores foram clamados campeões antes da final e assim nós sabotamos a vitória. O lugar da concentração, na véspera da decisão, se tornou um ponto de romaria; os homens não tiveram um minuto de descanso e, no dia do jogo, foram obrigados a assistir missa e a ficar de joelhos em vez de estirar as pernas e se preparar para entrar em campo. Na Copa de 50, nós fomos vítimas do nosso irrealismo. Depois de ter escrito o livro, eu me dei conta de que esse irrealismo nós herdamos dos portugueses. Pois é, Deus é brasileiro como ele também é português. Quem diz isso é Eduardo Lourenço, o autor de um livro que acaba de ser publicado na Europa e que mereceu o prêmio europeu de ensaio. O livro se chama O labirinto da saudade. Trata-se de uma análise da imagem que os portugueses têm de si mesmos, e nela nós encontramos as raízes do nosso imaginário.

P: O que significa para você morar na França e no Brasil?
BM: Estar fora e dentro, me distanciar do país e num certo sentido ficar mais protegida. O exílio interior é pior do que a ausência.

P: Que exílio interior é esse?
BM: Quando eu voltei da França em 1978, embora eu tivesse ensinado cinco anos na universidade francesa, a universidade brasileira me fechou as portas. Se a imprensa não as tivesse aberto, eu não teria tido como me comunicar. Por outro lado, nessa época, eu comecei a me interessar pra valer pelo que o povo dizia e, em vez de me fechar num consultório, me pus à escuta das mães-de-santo, dos carnavalescos, dos jogadores etc. Isso não contou com a simpatia da nossa elite intelectual, que esperava me ver no papel de divulgador da cultura estrangeira, a paixão segundo Hegel, Sartre, Lacan etc. e jamais segundo Joãosinho Trinta, Pelé, Glauber Rocha, Betty Milan etc. As pesquisas, eu fazia na mais absoluta solidão. Falar eu não podia, só escrever, e as reações ao meu texto não eram fáceis de suportar. Quando eu publiquei O que é Amor?, fui chamada de nazista, a Folha fez de mim a autora maldita. Com a minha primeira novela, O sexophuro, o Brasil parecia um iceberg, foi um gelo total, nem um só crítico se manifestou. Mas a novela foi objeto de uma tese de doutoramento na USP. Christl Brink-Friederici, uma alemã, fez um trabalho de literatura comparada entre Alemanha e Brasil e, sem me conhecer, privilegiou O sexophuro para falar da década de 70. Não preciso dizer o meu espanto e alegria.

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Entrevista de 1989.