O Brasil contemporâneo: a identidade cultural

O Brasil contemporâneo: a identidade cultural

 

P: Qual o papel do intelectual hoje em ambientes distintos como o Brasil e a França?
BM: No Brasil, o intelectual, queira ou não, é um herói civilizador. Não tem como não fazer crítica social. Precisa insistir na ética, por causa da falta de espírito igualitário e da falta de solidariedade. Na França, o intelectual pode se especializar mais na sua área. Quem faz psicanálise, por exemplo, se ocupa das questões subjetivas e não precisa estar continuamente atento às questões sociais. Lá, cada macaco pode ficar no seu galho, aqui, isso não é possível. Vou dar um exemplo da medicina datado de muitos anos atrás. A minha tese de psiquiatria na USP foi sobre uma doença que se chama eclâmpsia. Uma doença em que as mulheres morrem de convulsão no parto e que pode ser evitada com um pré-natal bem-feito e alimentação adequada. Essa doença já não existe há muito tempo nos países civilizados. No Brasil, o médico que quiser tratar da doença precisa agir através da política, exigindo outro tratamento para as mulheres grávidas pobres. Se ficar na sua área, ele estará sendo negligente, como aliás os médicos eram. Houve até uma tese sobre como evitar a morte na eclâmpsia. O que é um absurdo, já que é possível evitar a própria doença. Dessa falta de solidariedade eu trato no meu romance O Papagaio e o Doutor.

P: Para um intelectual, que experiências – militância política, literatura, artigos em jornais e revistas – atualmente iluminam feito um clarão, feito Paris?
BM: A condição da iluminação é diferente para cada pessoa. O que me ilumina são as falas das pessoas e o texto que eu própria escrevo. Curioso que você tenha utilizado a palavra clarão na sua pergunta, porque é o título de um livro que eu acabei de escrever e que ainda está inédito – um livro sobre a amizade e a morte. Trata-se de um romance de sabedoria, também escrito para que as pessoas possam se iluminar.

P: O Papagaio e o Doutor descreve problemas de identidade enfrentados por uma intelectual brasileira na França, que às vezes não se sente muito brasileira por ser neta de libaneses. O que é “ser brasileiro”?
BM: Ser brasileiro é ser mestiço. Quando a gente é neta de imigrantes, como eu, precisa para ser brasileiro reinventar as raízes. Isso porque o imigrante quer esquecer o passado, o drama da separação que ele viveu, quer que o passado seja o prólogo do futuro e consequentemente sonega a história, não a conta para os descendentes. Ora, para que esta recusa não se tornasse a minha história, eu tive que reinventar as minhas raízes e foi o que eu fiz ao escrever o romance O Papagaio e o Doutor, no qual a heroína tanto rememora o passado dos ancestrais imigrantes quanto a análise com um célebre doutor, um doutor que Jacques Lacan poderia ter inspirado. Tive o privilégio de ter feito a minha análise com ele na década de 70. Foi aliás para isso que eu fui à França, onde no começo eu tinha problemas de identidade, porque o cartesianismo é contrário ao nosso estilo, que não se filia à linha reta, ele tende a ser oblíquo. O nosso sim não quer necessariamente dizer sim e o mesmo pode ser dito do não.

P: De que formas as máscaras – nos carnavais, nas tribos indígenas – ajudam a compor a nossa identidade?
BM: O brasileiro não se concebe sem a máscara. A prova disso é o que acontece no nosso Carnaval. No Carnaval de Veneza, por exemplo, há um número limitado de máscaras, aqui, o número é infinito. Em Veneza, o sujeito usa a máscara para dissimular a sua identidade, aqui, ele faz isso para se tornar outro. Para existir, nós, brasileiros, precisamos brincar, e isso tanto explica a importância da máscara quanto do drible, que é a característica do nosso grande futebol. Num dos meus livros, O país da bola, eu digo que a cultura francesa se define pelo droit – o direito – e a brasileira, pelo brincar.

P: São Paulo tem forte presença de imigrantes italianos, japoneses, árabes. O Rio Grande do Sul também: italianos e alemães, majoritariamente. O que nessas culturas ajudou a amenizar a sensação de desterro dos estrangeiros?
BM: O que amenizou o drama da imigração – no caso dos libaneses, que eu conheci – foi o fato de que eles reproduziram aqui a cultura mediterrânea. Além de fazerem a comida libanesa, que aliás se difundiu pelo Brasil, eles eram contadores de histórias, como no Líbano. A minha infância tem o cheiro das especiarias que só eles usavam, o zátare a pimenta árabe, que mistura o doce e o salgado. Ela está associada às imagens evocadas pelas histórias, aos palácios orientais e aos cenários das Mil e uma noites. Os imigrantes trouxeram consigo os sabores e os sons. Minha tia dançava o dabki. A dança amenizava as nossas horas e a memória dela é uma carícia. Quando a gente não tem a realidade, a gente dispõe da imaginação. E eu acredito mesmo que o imaginário seja tão importante na cultura brasileira por causa dos tantos desterros que nos precederam, dos imigrantes e dos escravos.

P: Há duas frases de que gostei muito no livro O Papagaio e o Doutor: “O sexo do nosso povo é a paciência” e “As religiões todas não ensinam mais do que as confeitarias”.
BM: As duas frases de que você gostou são geniais e eu adoraria que fossem minhas. A primeira é do Mario de Andrade e eu me sirvo muito dela. Antigamente, eu considerava que a paciência era o nosso defeito. Hoje, eu acho que é uma qualidade, porque a paciência é uma forma de coragem. Quanto à segunda frase, ela é de Fernando Pessoa, do poema “Tabacaria”. Trata do ensinamento pelo prazer, que é essencial. É esse ensinamento que a gente recebe quando mama. O modo como ele se passa determina até certo ponto a existência. Há crianças que só aprendem a deglutir, degustar, não. Os alcoólatras em geral são incapazes da degustação.

P: Como e quando foi sua convivência com Lacan? Por que a senhora considerou importante apresentá-lo aos trópicos e que tipo de dificuldades e de prazeres resultaram disso?
BM: Encontrei Lacan pela primeira vez em 1972. Depois, de 1974 a 1978, eu fiz a minha análise com ele. Lacan me abriu muitas portas. Sobretudo a do meu inconsciente, que até certo ponto eu pude domesticar. Isso significa que eu deixei de ser objeto do desejo alheio para me tornar sujeito do meu desejo. Com a análise, eu aprendi o quão apegada à minha língua e ao meu país eu sou. Aprendi a aceitar e a amar esse apego e com isso eu me libertei. Considerei importante apresentar Lacan para que outros brasileiros pudessem deixar de viver no culto do que é produzido no exterior, pudessem valorizar o que é produzido aqui. A minha independência criou muitas dificuldades, fez com que eu frequentemente me sentisse uma estrangeira entre as pessoas do meio social do qual eu sou originária. Mas ela me trouxe muitos prazeres, os que resultaram da escuta das pessoas do nosso povo – os carnavalescos, os jogadores de futebol, os músicos – e do convívio com os grandes artistas que eu encontrei por causa da minha posição, como o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o romancista Deonísio da Silva, a poeta Neide Archanjo.

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“O intelectual como herói civilizador”, entrevista concedida a Cris Gutkoski, Zero Hora, Porto Alegre, Cultura ,19/04/2000.